Num certo palácio, a ceia do amigo oculto
“Que o entusiasmo conserve vivas / suas molas,/ e possa enfim o ferro / comer a ferrugem / o sim comer o não”. (João Cabral, Cartão de Natal. 1994)
– Comecemos pelo 1 – ordenou rispidamente o Messias, depois de encher a pança com picanha e filé mignon.
O Bajulador, que era o primeiro, declarou servilmente: “É simples assim: um manda e o outro obedece”. Obediente, recomendou o uso de cloroquina, negou a eficácia da vacina, que causa aids, e retirou do ar os dados estatísticos para ocultar o número de mortos pela pandemia. Anunciou:
– Meu amigo oculto é um paraquedista que recebeu do ministro demitido do Meio Ambiente o apelido de “Maria Fofoca”.
Em seguida, entregou-lhe um embrulho. A galera gritou: – Abre! Abre! Lá dentro não havia cloroquina, mas vacinas contra a covid que foram negadas às pessoas sem oxigênio no Amazonas.
O “Maria Fofoca” tomou a vacina, escondido, para não contrariar o chefe, e proclamou:
– O meu amigo oculto é aquele que na campanha eleitoral disse: “Se gritar pega centrão, não fica um, meu irmão”. Uma vez no poder, aliou-se com quem chamava de ladrão.
Entregou a ele o presente: um envelope com autorizações de exploração de ouro em área indígena na Amazônia. A galera que identificou imediatamente o dito cujo, gritou seu apelido.
Augusto Veneno – esse era o apelido – revelou quem era seu amigo oculto: o comandante do “Meu Exército”, que politizou a farda e ameaçou impedir as eleições em 2022 se o Congresso não aprovasse o voto impresso.
– Dou-lhe de presente toneladas de filé mignon e picanha comprados com R$ 535 mil destinados ao combate à epidemia da covid-19 – disse Augusto Veneno montado no cavalo de Tróia.
Calabar – esse era o codinome do quarto da lista – justificou o mimo recebido:
– Filé mignon e picanha combatem o vírus melhor do que a vacina. Por isso, o meu amigo oculto é um cardiologista, que está protelando a vacinação de crianças entre 5 e 11 anos, já autorizada pela Anvisa, cujo técnicos foram ameaçados de morte por contrariarem ordens superiores.
Os olhares todos se voltaram para Queirodes, chamado também de “Pazuello de Jaleco” – um manda, os outros obedecem – que ganhou brinquedos infantis: maletas médicas para curar as crianças, cujos óbitos “estão absolutamente dentro do patamar”.
Queirodes – (nervoso, com medo da CPI da Covid) – Meu amigo oculto engoliu em seco a violação do teto de gastos e a reforma da Previdência com manutenção de privilégios dos militares e comemorou duas vitórias: empregada doméstica não viaja mais pra Disney e filho de porteiro sem financiamento do FIES não estuda mais na universidade. Com a gasolina a R$ 7,49, ele se tornou um Posto Ipiranga sem gasolina. Deixo-lhe de presente uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, para que fuja da tributação no Brasil.
O Posto Ipiranga Offshore, alcunha do sexto da lista, traçou o perfil do seu amigo oculto para adivinharem quem era: juiz probo que odeia roubalheira e, por isso, manteve a condenação de uma mulher presa em flagrante ao furtar em Boa Esperança (MG) 18 barras de chocolate e 89 caixinhas de chicletes avaliados em R$50, destinados à venda no sinal de trânsito. Votou a favor do marco temporal que pretende entregar as terras indígenas aos ruralistas e às mineradoras.
– Kássio Conká – gritaram todos. Ele se levantou e recolheu seu presente: um diploma de um curso de quatro dias que fez como ouvinte na Universidad de La Coruña da Espanha. (Ao longe, o fiofó de uma cotia assoviou) Hic culum cotiae sibilare – falou Conká em latinorum para demonstrar que era versado na ciência do direito. Nem precisou definir o perfil do seu amigo oculto. Bastou exibir os presentes, que todos olharam para o dito cujo e começaram a gritar:
– Mito! Mito! Minto! Minto!
Conká entregou então ao amigo do peito três regalos: uma Constituição rasgada, um jet ski e muitas caixas de cloroquina.
O Abominável – como era conhecido o Messias de igarapé – fez arminha com a mão e revelou que seus amigos não eram ocultos. Em primeiro lugar, os três “Rachadinhas”: 01, 02 e 03, além do 04 a quem presenteou com uma mansão luxuosa no Lago Sul, avaliada em R$ 3,2 milhões, com 800 metros quadrados, suíte master, piscina, acabamentos em mármore e granito.
Em seguida, para mostrar que era tudo farinha do mesmo saco, ou como diria Conká: ejusdem farinae mandiocae paneirorum, destacou outros amigos a quem chamou pelos nomes e não por apelidos: Fabricio Queiroz e seus micheques: 27 depósitos totalizando R$89.000,00; o blogueiro Allan dos Santos, investigado em dois inquéritos do STF e Luciano Hang, a quem deu de presente a nomeação de Larissa Dutra, diretora-presidente do Instituto Nacional do Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN) com ordens expressas para anular o embargo feito a uma obra do Véio da Havan.
Dessa forma, o Abominável confirmou com seus atos aquilo que Rosângela Moro, a “conge do conge”, havia declarado ao Estadão (16/02/2020):
– Eu vejo Sérgio Moro e Jair Bolsonaro como uma coisa só.
Uma coisa só. Só uma coisa.
A festa foi encerrada com a frase do Messias de igarapé, tão verdadeira quanto a terra é plana, que fez o Brasil inteiro gargalhar:
– “Brasil, três anos sem corrupção”.
Que o diga o Centrão e a rede criminosa de vender vacinas!
P.S. – O Brasil completa no novo ano dois séculos de existência como estado-nação. Aos raros e escassos leitores que conseguiram ler até o final, desejo um Feliz Ano. Que não seja preciso gastar TANTA ENERGIA. brigando com o governo para fazer as coisas certas: vacinar crianças, não aglomerar, usar máscaras, exigir o certificado de vacinas aos estudantes universitários, proteger a floresta das queimadas na Amazônia, impedir a morte dos rios causada pelo garimpo, receber ajuda da Argentina aos desabrigados da Bahia e reafirmar nas escolas que a terra é redonda.
Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.
Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário.
Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também. Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, ele escolheu (eu queria verde-floresta).
Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Já voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir.
Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. A próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.
Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar cada conselheiro/a pessoalmente (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.
Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo.
Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.
Outras 19 edições e cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você queria, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.
Zezé Weiss
P.S. Você que nos lê pode pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapui.info. Gratidão!