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A crise institucional do Exército

A crise institucional do Exército

A crise institucional do Exército

As pessoas que, como eu, advogaram, ao longo de anos, em prol da maturidade institucional e democrática das Forças Armadas estão sendo questionadas por familiares, amigos e colegas de trabalho, diante de persistentes sinais de leniência profissional e distorção funcional por parte do Exército, que não envolvem a Marinha e a Aeronáutica…

Por Márcio Santilli

Há um incômodo generalizado, que também avança entre militares, com a excessiva nomeação dos seus pares para funções de confiança, de caráter técnico, estranhas à sua formação. Não se questiona a legitimidade do exercício, por militares, de funções para as quais disponham da devida formação, mas há abundantes situações inversas. O caso mais evidente é o de Eduardo Pazuello, general da ativa, responsável solidário pelas mortes e sequelas evitáveis da pandemia. Há milhares de distorções desse gênero.

O presidente Jair Bolsonaro, em recente reunião com oficiais do Exército, em São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do Amazonas, vangloriou-se por comandar um governo mais inchado de militares do que nos tempos de . Um tipo de fisiologismo superlativo que, no caso dos oficiais mais graduados, vai além do inócuo teto salarial constitucional de R$ 40 mil.

É falsa a presunção de que o militar, pelo simples fato de ser militar, aporte vantagem comparativa em relação ao civil. Veja-se o caso dos militares que traficavam cocaína no avião presidencial, cuja audácia criminosa tampouco deveria manchar a imagem da instituição militar. O que deve valer é a competência e não o vínculo corporativo do servidor nomeado.

O proselitismo corporativista do presidente carrega a intenção deliberada de amortecer a corporação, fisiologicamente, para obter lealdade pessoal acima da própria Constituição. Forja uma impressão de força para ameaçar os demais poderes e camuflar a sua perda de popularidade.

Flagrante impunidade

Supostamente, os comandantes militares sempre estiveram incomodados com a presença de um general da ativa num ministério técnico, como o da Saúde. A aplicação do preceito hierárquico de “um manda e o outro obedece”, não é simples assim, em nenhuma hipótese, muito menos no contexto de um governo negacionista, durante uma epidemia catastrófica. Trata-se de cumplicidade genocida.

Fato é que Pazuello não só se lixou para as sinalizações para se transferir para a reserva, como também o Exército se prestou a produzir e a distribuir cloroquina e outras drogas cuja ineficácia contra a Covid-19 ficou comprovada. Admitiu, assim, por outra via, a sua vinculação com a deturpação política da crise sanitária.

Ao contrário, o incômodo resultou na substituição arbitrária e intempestiva do ministro da Defesa e dos comandantes das três armas, com o deslocamento de Braga Neto para a Defesa. O novo ministro, por sua vez, não se constrangeu em perambular alegremente entre manifestantes golpistas na Esplanada dos Ministérios. É claro o intuito presidencial em fragilizar o profissionalismo e infectar a corporação com o vírus do extremismo ideológico.

A atitude de Pazuello de subir no palanque eleitoral de Bolsonaro em outra manifestação extremista no Rio de Janeiro, como um pré-candidato a qualquer cargo, depois de sair queimado do Ministério da Saúde e de mentir em depoimento à CPI do Senado que apura responsabilidades pela tragédia sanitária, foi uma afronta deliberada ao novo comandante do Exército, general Paulo Sérgio de Oliveira.

E o pior foi que o comandante aceitou a humilhante postura de engolir a afronta e de, simplesmente, inocentar Pazuello, aceitando a sua explicação de que não se tratava de um ato político, já que o presidente, assumidamente em campanha pela reeleição, está sem filiação partidária. Paulo Sérgio foi leniente com o uso político do Exército, gerando um péssimo precedente. Na última terça-feira, o Exército atribuiu 100 anos de sigilo ao processo disciplinar que inocentou Pazuello. Assim, reconheceu como impublicável sua decisão.

Omissão amazônica

Além do fisiologismo degradante e da tolerância com a sua utilização política, o Exército tem negligenciado a , sua principal missão em tempos de paz, que sofre com o roubo de ouro por empresas de garimpo, associadas ao crime organizado. Facções criminosas, que disputam o controle dos presídios em Manaus, Boa Vista e outras cidades amazônicas, também  têm se financiado através da mineração predatória. Porém, o Exército tem desativado bases de fiscalização e tolerado atividades ilegais em áreas próximas a batalhões de fronteira.

Foi-se o tempo em que havia garimpo de bateia. Agora ele tem escala empresarial, utiliza enormes dragas e escavadeiras, requer logística aérea, armamentos pesados e pagamento de propinas para políticos, servidores públicos e índios cooptados. A mineração predatória não paga impostos, não respeita leis trabalhistas e deixa um passivo gigantesco de devastação nas áreas em que atua e para o conjunto da população.

O Exército tem negado apoio logístico à Polícia Federal (PF) em operações recentes de destruição de garimpos nas terras indígenas Munduruku (PA) (RR) determinadas pelo STF. A sua omissão tem colocado em risco a vida de policiais federais e de lideranças indígenas contrárias à mineração predatória. O Exército alega falta de recursos, mas o Ministério da Defesa foi o único que teve aumento de orçamento e o Congresso aprovou uma Medida Provisória autorizando o repasse de diárias do Ibama para o Exército. Falta o quê?

Nos últimos dois anos, vem sendo cada vez mais frequente a associação da área militar com a economia predatória. A excessiva presença militar em cargos e atribuições diversas num governo que promove essa economia, contribui para essa associação. No contexto amazônico, significa um desastre estratégico diante da ameaça das mudanças climáticas globais.

Na semana passada, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, respondendo a inquérito sobre a sua atuação para liberar a maior carga de madeira ilegal já apreendida pela PF, declarou que foi o chefe da Casa Civil, general Luís Eduardo Ramos, quem lhe encaminhou políticos e madeireiros interessados na liberação da madeira. A operação da PF derivou de uma denúncia do governo dos EUA, que determinou a devolução ao Brasil de uma carga de madeira em toras, sem comprovação de origem.

A extração predatória de madeira não opera com o mesmo grau de ilegalidade da mineração predatória. É feita por empresas formalmente constituídas, que requerem autorização dos órgãos ambientais para o manejo florestal, mas utilizam planos de manejo falsos, não fiscalizados, que “lavam” a madeira extraída ilegalmente de unidades de conservação, terras indígenas e outras áreas públicas.

De qualquer forma, não há como se desenvolver empreendimentos legais e sustentáveis, minerais ou florestais, em regiões dominadas pela produção predatória, com a qual concorrem em franca desvantagem. A predação beneficia poucos, produz miséria e devastação, e impede uma economia compatível com as necessidades do país e os padrões atuais do mercado global.

Além disso, a violência é um elemento intrínseco da produção predatória. As empresas de garimpo, por exemplo, têm promovido ataques armados contra comunidades indígenas e bases operacionais dos órgãos ambientais, queimado casas de lideranças e sedes de associações que a ela se opõem, além de oferecer reação armada às operações policiais desprovidas do apoio logístico do Exército. Destrói a natureza e ameaça a vida alheia.

Desorientação estratégica

O aumento contínuo da temperatura média na superfície da Terra nos leva a um cenário inédito para a humanidade no decorrer deste século. Qualquer instituição estratégica considera os efeitos da mudança do , e o seu enfrentamento, como fundamentais para o futuro dos povos e para uma nova conformação das relações entre os países. Esse olhar estratégico fortalece-se na China, Índia, Rússia, União Europeia, e em instituições como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Não é questão de ideologia, mas de sobrevivência presente e de posicionamento futuro.

Num contexto de escassez crescente de recursos naturais, de água doce, em particular, e de migrações em massa, a devastação da Amazônia, com incentivos à ocupação de terras públicas, mineração e extração madeireira predatórias, é a maior estupidez estratégica da história. Não é um tiro no pé, mas um míssil no coração. É o Brasil jogando fora seu próprio futuro.

O governo tenta negar a contribuição direta do aumento das e do para os desequilíbrios climáticos que estamos vivendo, como a crise hídrica no Sudeste e no Centro-Oeste e as enchentes inéditas no norte da Amazônia, atribuindo-os ao efeito “La Niña” ou à mudança genérica do clima, como se fosse um fenômeno divino. Mas o cerco está se fechando, também, sobre o Brasil.

Estima-se em torno de 50% o aumento da média anual de emissões oriundas de desmatamento e incêndio florestal no biênio do governo Bolsonaro até agora, em relação ao quinquênio anterior. O dano fere o território e o povo brasileiro, mas tem escala para afetar o clima mundial e para prejudicar os esforços diplomáticos visando um novo acordo climático internacional, com metas mais ousadas para reduzir emissões, na COP-26, em novembro próximo, em Glasgow, Escócia.

A retórica nacionalisteira de que o Brasil tem o direito de destruir as florestas para desenvolver sua economia, assim como teriam feito os países mais ricos, não se sustenta. Entre 2006 e 2012, o Brasil promoveu significativa redução no desmatamento na Amazônia, enquanto havia crescimento efetivo do PIB, sendo que, agora, a economia patina enquanto o desmatamento explode.

Do isolamento à retaliação

EUA e China têm as maiores economias e são os maiores emissores de gases-estufa. Ambos mantêm conflitos e disputas geopolíticas, comerciais e tecnológicas, mas investem pesado na mudança das matrizes energéticas e convergem, assim como a União Européia, para um novo acordo climático. O Brasil está na contramão dos seus principais parceiros comerciais.

O governo Bolsonaro alcançou um grau inédito de isolamento, com instabilidade democrática, armamentismo, devastação ambiental, desrespeito aos em geral e gestão catastrófica da pandemia. O isolamento agravou-se com a vitória de Joe Biden, que espera do governo brasileiro resultados ainda este ano na redução do desmatamento, em troca de apoio financeiro dos EUA. Porém, o envolvimento de Salles com a exportação de madeira ilegal e alertas crescentes de desmatamentos na Amazônia minam as conversas bilaterais.

A inadimplência socioambiental está barrando o acesso do Brasil à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o acordo comercial entre o Mercosul e a União Européia. A inadimplência sanitária também não ajuda e o potencial de produção de novas cepas do coronavírus mantém o país isolado, enquanto outros controlam a epidemia e as suas economias recuperam-se.

Ao persistir nas ameaças à democracia, no negacionismo científico e na devastação da Amazônia, o governo Bolsonaro acabará sujeitando o Brasil a sofrer sanções políticas e comerciais por prejudicar os esforços internacionais para enfrentar a pandemia e a mudança do clima. Seria uma situação inédita, impondo um novo grande obstáculo para o país sair do fundo do poço.

Reconstrução institucional

Não há mal que dure para sempre, mas Bolsonaro quer continuar. Percebe a perda de popularidade, mas se mantém em campanha permanente para reter apoio suficiente para disputar a reeleição. Ao mesmo tempo, avança sobre o Exército como o último bastião da sua própria idolatria, para sujar de vez as mãos e a alma na aventura do auto-golpe, caso o povo o rejeite nas urnas. Recorre à Força, para compensar a própria fraqueza.

Pode até ser que alguma facção militar atreva-se a golpear poderes constituídos ou o resultado da eleição, mas enfrentaria rejeição majoritária e imediata dentro e fora do país. Não há nada na conjuntura atual comparável à do golpe militar de 1964. O desastre seria total.

Nem mesmo na decadência da ditadura houve tantas críticas aos militares e ao Exército como nesses dias. Elas não vêm só de políticos, mas de todos os que se sentem traídos e decepcionados com a atuação dos personagens que estão atrelando a imagem da corporação ao pior momento da nossa história recente. Vêm, inclusive, militares das três armas, da ativa e da reserva.

Livrar o Brasil desse presidente, nas urnas de 2022, será apenas um primeiro passo para recuperar o atraso. Sua passagem desastrosa pelo poder deixará sequelas de todas as ordens. Políticas e instituições de Estado terão que ser reconstruídas ou reinventadas, para que o Brasil tenha como encarar os enormes desafios do século.

Nesse contexto, o Exército terá que se rever, ou será revisto. O envolvimento com esse governo e as atitudes e declarações dos seus representantes mais visíveis, aparentes ou efetivos, mostram a necessidade urgente de incorporar conteúdos contemporâneos, estratégicos e civilizatórios à formação dos oficiais, que está substancialmente defasada e tem sido perigosamente manipulada.

Márcio Santilli – Ambientalista/ Dirigente do Instituto Socioambiental. Matéria originalmente publicada pela Mídia Ninja. 


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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