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A incrível história da Nega Fufús

A incrível história da Nega Fufús

Maria de Jesus, amazonense, casada, 24 anos, residente na Matinha, com um filho de três anos – uma gracinha! – morena cor de jambo, caboca-do-pé-roxo sim senhor, como toda amazonense, assumida com muito orgulho. Conhecida na família como “Nega” ou simplesmente Fufús.

Por José Bessa Freire/taquiprati/ (crônica 643 – 1988).  

O Marido da Fufús
 
Fufús não está montada na grana, porque o marido é gente honrada, nunca se meteu em mamatas do ´colarinho verde´, não conhece o Carlos Alberto Di Carli, não faz parte de nenhuma quadrilha ou sigla partidária no poder, está longe das negociatas, vive do seu trabalho assalariado como eu e você, leitora.
 
O marido da Fufús trabalha como técnico numa empresa do Distrito Industrial. O seu salário não é de marajá, mas é suficiente para que o filho da Fufús – o Wagner – tenha seu iogurtezinho diário garantido (de polpa de fruta, leitora, de polpa de fruta), talquinho Johnson no bum-bum, fralda descartável, pediatra competente e, qualquer problema mais grave, corre pedindo socorro a esse maravilhoso feiticeiro que é o doutor Contente. (Que garantia – não é leitora? – saber que o doutor Contente existe e está aí mesmo!). 
 
O irmão da Fufús

Deixa agora eu apresentar pra vocês o irmão da Fufús. A Fufús tem quinze irmãos, todos eles inteligentíssimos. O mais velho, engenheiro hidráulico, é talvez o único amazonense e um dos poucos brasileiros com diploma de doutor pelo Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT), nos Estados Unidos.
 
O MIT (eme, ai, ti) é barra pesadíssima, pra entrar lá até mesmo americano tem que se rebolar. Os critérios de seleção são extremamente rigorosos, eles só admitem neguinho que tenha um Q. I. – quociente de inteligência – mil pontos acima do Ronald Reagan e do Amazonino.
 
Por isso, o irmão da Fufús, hiper-dotado, é motivo de orgulho de todos. A mãe, quando fala dele – nossa mãe! – tufa o peito de orgulho. A madrinha Regina, então, fica que parece um sapo inchado e para a avó, o neto devia ser nome de cursinho de vestibular, assim como tem o Einstein.
 
Mas o orgulho não é exagerado não. O irmão da Fufús é consultado por todo o mundo e acaba de ser convidado, por exemplo, para compor uma banca examinadora de doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para onde irá com os pés metidos em suas modestas sandálias.
 
Enfim, leitora, encurtando a apresentação para poupar teu precioso tempo, podemos concluir dizendo que o irmão da Fufús é a Rita Loureiro da engenharia hidráulica. 
 
O filho da Fufús
 
Vai daí, a Fufús pensou com os seus botões: “Puxa vida, eu queria tanto que o Wawá (é o apelido do filho) fosse como o tio dele e um dia pudesse entrar no MIT, publicasse artigos nas revistas científicas da Memérica e fosse também convidado para examinar doutores por todo o Brasil”.
 
É uma fofura, o Wawá, olha! Acontece que ele só tem três aninhos. Mas como é de pequenino que se torce o pepino, a Fufús saiu perguntando, aqui e ali, qual era o melhor Pré-Escolar de Manaus para estimular a inteligência do Wawá.
De posse da resposta, não duvidou. Foi lá no tal do Pré-Escolar. O preço da mensalidade é alto prá caceta, negócio de barão. A Fufús pensou, pensou, e decidiu não trocar de carro, fazer um sacrificiozinho, mas o seu Wawá, o seu pretinho bilú-bilú, teria a melhor escola de Manaus.
 
“A coisa mais valiosa que a gente deixa pros filhos é a educação”, a Fufús comentou com a Glória, que ouviu tudo e nada comentou.
 
A Cor da Fufús
 
– Quero matricular o meu filho, disse Fufús à supervisora nariguda do Pré-Escolar.
 
A supervisora nariguda supervisorou a Fufús, medindo-a de cima abaixo, xeretando a roupa dela, cheirando tudo e parecia até que seu nariz estava aumentando de tamanho. Insinuou que a Fufús não poderia pagar o preço. A Nega – te mete! – puxou logo o talão de cheque pra dar um xeque-e-mate. Aí a supervisora pegou uma ficha e foi anotando os dados: nome, filiação, data de nascimento…até que chegou a um item inusitado da ficha:
 
– Cor? Perguntou a supervisora nariguda.
 
– O quê?
 
–  É isso mesmo: cor.
 
– Cor como? De quem?
 
– Cor. Cor da pele do seu filho, insistiu a supervisora.
 
– Morena.
 
A supervisora ficou com a caneta no ar, sem escrever.
 
– Morena como? Mais ou menos morena que a senhora?
 
– Mais morena.
 
– Então, infelizmente, me desculpe, mas não posso matriculá-lo, disse a supervisora nariguda, com a cortesia e a finura de um Rambo Caboco, tipo Carrel Benevides. E ainda acrescentou:
 
– A nossa escola tem de manter um padrão de qualidade.
 
A nega Fufús, fufustacor, ficou branca. Tímida pacas! Tão tímida, que se não fosse filha da Glória, eu a denunciaria aqui pros leitores como devota fiel de Santa Etelvina, daquelas que acendem vela no dia de finados. Ficou tão arrasada, que nem conseguiu raciocinar. Ainda se despediu educadamente, murmurando:
 
– Muito obrigada!
 
Dali, saiu chorando, foi embora, aos prantos. Sentia-se humilhada e discriminada, numa sociedade mestiça, caboca, como a nossa, no ano do centenário da abolição dos escravos e da promulgação de uma Constituição, que considera o racismo como crime inafiançável. 
 
A Família da Fufús
 
A família da Fufús, que é daquelas famílias amazonenses onde todo mundo briga entre si, mas que se une ao menor sinal de ameaça externa, soltou as macacas. Sogra, mãe, irmã, irmão foram até a escola, armaram o maior quilombo da paróquia, ameaçando denunciar na delegacia. Mas era a palavra da Fufús contra a palavra da supervisora.
 
A mãe da Fufús, indignada, contou ontem o fato, tim-tim por tim-tim, prá tia Helena, vizinha dela no Beco da Indústria. A tia Helena, que não é túmulo e nem guarda segredo, pegou o telefone, revoltada, e passou o bizum – sem aumentar uma vírgula – pra Regininha do Merthiola, que por sua vez, irada, deu um toque completo pra Tequinha, que não gosta de fofoca e por isso não se apropria de nenhuma delas, passa tudo adiante, Enraivecida, a Tequinha, encontrou ontem a dona Elisa, na porta da igreja de Aparecida, antes da missa das 18:00 horas e deu todo o plá, tendo o cuidado também de avisar pra tia Dedé, o que significa espalhar pra toda Manaus.
 
Dona Elisa, enfurecida, com sua sede de justiça, buzinou tudo na minha orelha, na hora do jantar e decidiu com aquela autoridade que todo mundo conhece:
 
– “Meu filho, isto merece um artigo”. E completou, usando a primeira pessoa do plural: “Vamos denunciar”.
 
Eu, indignado, peguei a máquina de escrever pra transmitir pros leitores. Mas só saía palavrão e dona Teresa Nóvoa, leitora fiel, não iria gostar de ler. Então, procurei pessoalmente a Glória e confirmei que a cadeia de transmissão fora fidedigna. Decidi passar a história pra vocês de uma maneira leve, mas fiquei preocupado se desta forma não acabava limitando a dimensão da minha vergonha e da minha raiva. Continuo ainda perplexo com tanta estupidez.
 
P.S. 1 – Se eu menti, quero que o meu nariz cresça. Quem  duvidar de que uma imbecilidade dessa possa ter ocorrido em dezembro de 1988, na cidade de Manaus, logo numa escola, telefone pra 232-7175 e fale com a mãe da Fufús, a dona Glória. Ela poderá dar mais detalhes. O fato fala por si só, mas mesmo assim fico devendo aos leitores e leitoras uma análise sobre a questão. Quando a cabeça estiver mais fria.
 
 
P.S. 2 – Ah, ia me esquecendo, leitora. A partir de agora, a nossa crônica voltará a ser publicada religiosamente todas as semanas, às quartas-feiras [hoje a crônica sai aos domingos]. Ela será enviada do RJ por telefone, instantaneamente, por um sistema, um tal de fax, que até hoje eu não entendi, mas o Umberto Calderaro jura que funciona.
Observação em 22/01/03: Quase quinze anos depois de publicada esta crônica, o seu protagonista principal, o filho da Fufús, me escreveu, pedindo que a colocasse no site. Fiquei emocionado, porque o seu nome, no endereço eletrônico, é vavá preto @ etc. e tal. Só esse detalhe, já mostra que ele foi bem educado, felizmente em outra escola. De lá para cá, o mundo mudou. O fax, que era uma novidade, tornou-se uma velharia. A máquina de escrever virou peça de museu. Dona Elisa, hoje, é uma foto que me olha, saudosa. O que não mudou, no entanto, foi a nossa indignação diante da estupidez do racismo. Essa crônica vai dedicada ao Nego Nestor, um jornalista amazonense, corajoso e inteligente, bem humorado, fundador do Movimento Alma Negra (MOAN), comprometido com as lutas do nosso povo. Baseado no que escrevi, Nestor escreveu um artigo se solidarizando com a Fufus, mas deu nome aos bois. Foi processado, eu me apresentei como corréu. A mãe da Fufús, corajosamente, se apresentou como testemunha de defesa, mas o processo foi arquivado.

José Bessa Freire – Professor. Indigenista. Antirracista. Cronista. Conselheiro e colaborador voluntário da Revista Xapuri. Neste mês da mulher, em março de 2023, reproduzimos esta crônica do professor Bessa Freire, datada do ano de 1988, como testemunho e denúncia de um racismo que, infelizmente, persiste em nosso país. Que a história de Fufús nos faça seguir firmes na Resistência.


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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