A latitude da moralidade
A mulher maometana, se acaso se deixa surpreender por um estranho, mesmo quando sumariamente vestida, o seu primeiro gesto é cobrir o rosto e não o corpo…
Por Clarice Lispector
Achamos isso estranho, embora o gesto dela seja consistente com o nosso hábito de usar uma máscara no Carnaval, quando nos parece oportuna a proteção do anonimato. O véu que as muçulmanas usam em público é a exaltação desse mesmo desejo de encobrir a personalidade, ainda que as suas motivações sejam diferentes das de um folião.
Há não muito tempo, em Damasco, uma turba enfurecida, atirando pedras e disparando tiros, forçou a entrada em um teatro onde se exibia uma companhia francesa, em protesto contra o rosto – e não o corpo – despido das atrizes. Da mesma forma, em fins do século passado, por ocasião de um baile de máscaras em Nova York, os convivas foram apedrejados exatamente pelo motivo oposto. E ao recorrerem à polícia, essa os advertiu que não tinham direito à sua proteção, pois estavam fora da lei.
A intensidade do senso de vergonha, como se pode deduzir dos exemplos acima, varia conforme a região. Entretanto, os modernos meios de transporte, encurtando distâncias e tornando acessíveis localidades anteriormente isoladas, tendem cada vez mais a equiparar o senso da moral. Há não muitos anos, era hábito de vários povos banharem-se em público, sem roupa alguma. Mas esse costume está rapidamente desaparecendo devido a protestos de viajantes estrangeiros.
À primeira vista, a virtude parece ser uma virtude tão absoluta e indivisível quanto, digamos, a honestidade. Na realidade, porém, a decência apresenta uma variedade de formas que dependem de fatores divergentes, como idade, hábitos, costumes, leis, época, clima, hora do dia (já imaginaram um biquíni num baile de gala?) e outros. Cada fator traz um significado adicional que desafia uma interpretação diferente.
Assim, são vagos e confusos os limites da moral, que só pode ser julgada de acordo com a sua latitude geográfica e histórica. E, mesmo assim, o julgamento é sempre precário…
Clarice Lispector – Escritora, em Correio Feminino. Organização Maria Aparecida Nunes. Editora Rocco, 1977.
Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.
Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.
Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.
Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.
Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.
Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.
Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.
Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.
Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.
Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.
Zezé Weiss
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