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A TRANSÄLIEN: utopia e mistério, com Ana Giselle

A TRANSÄLIEN: utopia e mistério, com Ana Giselle

A TRANSÄLIEN: utopia e mistério, com Ana Giselle

De Pernambuco, a entrevistada para a seção #ArtistaFOdA é artista transmídia, produtora cultural, curadora de arte, corpo-espetáculo, DJ, idealizadora da coletividade MARSHA! e articuladora pelos direitos das pessoas trans e travestis no Brasil…

Por Marcelo Mucida/via planetafoda

Como ela pontua, Ana Giselle é também quem dá vida a TRANSÄLIEN: identidade pós-humana híbrida de uma alienígena e transexual, que ressignifica os pressupostos equivocados de abjeção acerca das corporeidades trans.

Com criações que transitam por diversas linguagens e sem categorizações pré-estabelecidas, o seu trabalho traz estéticas muito singulares que revelam outras possibilidades de vida e existência.

Para a Mídia NINJA / FOdA, ela conta como iniciou os seus processos de investigação na arte, além de falar mais sobre a coletividade MARSHA! e apontar para projetos futuros.

Confira a seguir a conversa na íntegra.

Foto: JEAN @je0an

Como a Ana Giselle passou a perceber e a compreender A TRANSÄLIEN?

Na adolescência, nada era tão importante para mim do que não ser mais uma a suprir as expectativas da engrenagem, mas, ao invés disso, vomitar em seus valores. Aprendi o que queria ser partindo do não ser como todo mundo espera.

Me interessava mais navegar pelo fluxo orgânico da vida e ir me descobrindo no meu próprio processo, do que pré-estabelecer alguma coisa.

Sempre tive uma mente e estética disruptiva para os padrões de Camaragibe, onde nasci. Então desde cedo começo a questionar o mundo ao meu redor para que eu pudesse tentar me libertar das prisões impostas pela cis-heteronorma.  Um tempo após a minha transição, por volta dos 15 anos, reproduzir alguns códigos e signos de feminilidade binária já não faziam mais sentido pra mim, logo, intuí a necessidade de transcender a minha existência dentro da experiência da travestilidade, para então apossar-me do não-lugar que o meu corpo ocupa.

O livro Pedagogia dos Monstros vai dizer que a ameaça do corpo monstro é a sua propensão a mudar. Assim nasce A TRANSÄLIEN:  inconforme com o ‘’pertencimento’’, para poder me pertencer.

Se eu tivesse que pertencer a alguma categoria, seria a que inventei para mim mesma.

E o que essa identidade provoca / estimula entre as suas criações?

A TRANSÄLIEN surge para que eu possa formar outros tipos de corporeidades a partir da minha performatividade. Consequentemente, a máscara foi o dispositivo que encontrei para dar vazão à minha constante transmutação. Essa pergunta é interessante porque me faz relembrar dos conflitos que sentia quando era confrontada – principalmente em São Paulo e nos espaços de arte – a definir ou traduzir o que pra mim é indefinível, por não se tratar de um mero trabalho ou pesquisa, mas sim de uma vida pulsante. Hoje tenho noção de que A TRANSÄLIEN precisou nascer para que Ana Giselle pudesse existir em toda a sua singularidade, exuberância, infinitude e contradição. E sendo essa identidade a minha primeira grande criação, tudo que vem depois são ramificações. Foi essa semente que me permitiu florescer e compreender que eu poderia ser, criar e fazer literalmente tudo que eu quisesse.

Foto: Gustavo Damas

Como se iniciaram os seus processos de investigação na arte? Foi através dos trabalhos como DJ?

Antes mesmo de vislumbrar uma profissão ou carreira, eu já era fascinada por belas imagens e naturalmente comecei a criar as minhas próprias, inicialmente, através de autorretratos em casa. Depois, no ensino médio, com mais ousadia e o início da transição, a escola foi o meu primeiro palco onde pude extravasar toda a minha irreverência, que serviu e serve até hoje como ornamento de defesa, proteção, armadura contra as violências que tentam me atravessar. Quando Amy Winehouse fez a passagem em 2011, no dia seguinte, me vesti dela para ir à escola e parei o bairro. Foi hilário, me diverti horrores. Também era a minha forma de escrachar e deixar eles tão chocados que nem conseguiam me atingir, por mais que tentassem. Eles nem conseguiam me ler.

Quando comecei a trampar na cena noturna recifense como DJ, foi despertando o desejo de ser ainda mais diferente de tudo o que estava acontecendo ali naquele momento, então passei a confeccionar meus próprios looks, com tudo que eu encontrava e achava interessante nas ruas que pudesse levar pra casa e ressignificar em indumentária, de plantas a uma antena parabólica. Com isso, fui me destacando por oferecer outras experiências do que se espera de um DJ, e assim entendi o que era performer e artista visual: sendo.

A verdade é que a arte nasceu em mim, eu sinto; e com o tempo fui aprendendo a elaborá-la dentro e fora… Acredito ser boa mesmo em criar estéticas, projetar utopias, sejam elas em quaisquer formato ou seguimento. O que eu quero é impactar o mundo de maneira positiva, independente do meio.

Acesse aqui: PORTAL TRANSÄLIEN

Eu vi que você nasceu em Pernambuco, certo? Como se deu o processo de mudança para São Paulo? Está relacionado com os caminhos que foi trilhando na sua trajetória artística?

Nordestiny Child com muito orgulho sim, haha. Vir para São Paulo foi a realização de um objetivo que eu tinha desde quando, muito cedo, as violências sofridas em Camaragibe me diziam que aquele não era o meu lugar.

Também não me identificava com o contexto de um povo com mentes limitadas e enquadradas, não havia espaço pra mim, então sabia que precisava voar.  Acredito que, quando você está sensível à sua intuição, suscetível aos ventos que o universo te traz como sussurros no ouvido te guiando para o lugar certo, tudo acontece como tem que ser. Quando pisei em SP pela primeira vez, pensei: ”Aqui é o meu lugar!” E senti, naquele instante, onde eu deveria estar e tudo que precisaria fazer pra chegar onde queria. Hoje eu sei que tenho feito as escolhas certas porque estou em movimento e feliz com as minhas conquistas. São Paulo foi só o primeiro passo, ainda há muito & muitas…

Foto: Danilo Sorrino

Como o seu trabalho percorre diversas linguagens, você consegue apontar o que tem te despertado interesse para experimentar atualmente?

Sou movida a desafios. Como boa ariana, me interessa experimentar tudo que ainda não fiz. Tô sempre aberta a novas propostas, haha.

Mas posso dizer que tenho amado trabalhar com produção, estar no backstage tramando, organizando cenários, me excita de verdade (rs).

Também sinto muito prazer com a curadoria, ou como gosto de chamar, curandeiria, que pra mim parte de um modus operandi pautado na ética travesti dissidente, na sensibilidade e dignidade com as humanidades que trabalho. Pode parecer simples, mas esses são pontos que muitas vezes se perdem em processos curatoriais que vejo por aí, então é preciso estar atenta pra reformular essas lógicas.

Eu gostaria que você falasse um pouco sobre o desenvolvimento da coletividade MARSHA! e sobre a importância que você atribui para a realização do festival ‘’MARSHA ENTRA NA SALA’’ no ano passado.

Gosto de pensar na MARSHA! como um portal, um movimento de restituição para a população transvestigênere brasileira. O que era pra ser apenas uma festa de enaltecimento da arte e vida trans, em julho de 2018, veio a se tornar a continuidade de uma luta iniciada há muito tempo por Jovanna Baby, Brenda Lee e tantas outras, somos crias dessa linhagem. Talvez o pontapé para uma consciência política coletiva tenha vindo através da Lista TRANSFREE, política de inserção que promove entrada gratuita a pessoas trans e travestis em espaços privados, que criei em 2015, ainda no Recife.  Trago o transfree porque foi essa bagagem que me fez atinar, logo no início da pandemia, que ficar parada não era uma opção. O Festival foi uma articulação natural do instinto de sobrevivência e das tecnologias de vida que a experiência da travestilidade nos faz desenvolver para nos mantermos vivas.

”Não adianta só ser bonita, tem que ser ligeira!” – aprendi desde cedo.

Enquanto as estruturas patriarcais e cisgêneras da sociedade estavam ruindo e sendo sufocadas por um vírus, a gente tava sendo oxigênio pra nós e para as nossas. E enquanto um Estado de poder governado por um genocida pulsa morte, nós pulsamos vida.

Não era sobre visibilidade, sabe?! É um dever! A MARSHA! é uma missão de vida!

Campanha ”Tá Mais Que Na Cara” – Divulgação Avon

E sobre novos projetos, o que você tem desenvolvido atualmente que gostaria de divulgar nesta seção?

Na MARSHA! estamos muito empolgadas com o Circuito ARTI, projeto em parceria com o coletivo AfroBapho de Salvador, que será realizado através do Edital Natura Musical 2020, no qual fomos contempladas. Será lançado nas próximas semanas e tá lindo, com formação, oficinas, podcast e, claro, um Festival de encerramento pra fechar esse 2021 pesado com muita chuva de vida trava. Fiquem atentes nas redes da @marshaoficial e @afrobaphooficial.

Você gostaria de compartilhar algum pensamento / entendimento voltado para artistas LGBTQIAP+ que estão iniciando os seus processos agora?

Tem um poeminha que escrevi ano passado no dia do meu aniversário, 24 de março, e inspirado na Elke Maravilha, que diz assim:

ser bruxa é saber conhecer a grande magia da vida
ser bruxa é não se desligar da natureza
que é a própria vida
tento todos os dias não me desligar
e quem nunca se desligou
não precisa de religião para religar.

Siga o perfil da artista no Instagram para acompanhar o desenvolvimento dos seus projetos: @atransalien

Produção cultural por pessoas trans, com Ana Giselle:

#ArtistaFOdA é um espaço criado pela Mídia NINJA / FOdA desde 2020 que, através de entrevistas, apresenta e conecta trabalhos desenvolvidos por artistas LGBTQIAP+. Acesse aqui as conversas que já foram publicadas.

*@planetafoda é a página de conteúdos LGBTQIAP+ produzidos pela rede FOdA, da Mídia NINJA, junto a colaboradores em todo o Brasil.

Block

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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