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Novembro: A violência racista estrutural e os desafios da reconstrução democrática

Novembro: A violência racista estrutural e os desafios da reconstrução democrática

– Por Pedro Tierra via Democracia Socialista

Nesses dias finais de novembro – mês marcado por palestras, mobilizações e debates em torno do tema da “Consciência Negra” e do racismo estrutural –, um ano depois de Beto Freitas, um homem negro de 40 anos, ser espancado até à morte, no Carrefour de Porto Alegre, é incontornável levantar a questão das maiorias negras e sua inserção no projeto de reconstrução da democracia no Brasil, interrompido pelo golpe de 2016. 

Não se trata de um debate teórico, mas de um debate político, concreto que se trava na sociedade enquanto as famílias retiram do mangue e contam os corpos dos seus mortos, na chacina – mais uma – promovida pela Polícia Militar, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio, nos últimos dias deste novembro.

A Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro – Faferj citou 14 mortes, entre elas três meninas, as famílias afirmam ter recolhido até agora 11 mortos, a Polícia admite 10. Esse descompasso dos números por si só levanta um véu sobre o reduzido significado das vidas humanas que transitam nesse front onde o Estado brasileiro se bate contra os marginalizados que a sociedade expeliu.

Em 2020 foram assassinados 5.092 negros em operações policiais. Cerca de 79% das 6.416 mortes do período (Dados do Anuário de Segurança Pública). O maior índice desde 2013. Evidentemente deixou de ser apenas um processo de exclusão social em massa. Trata-se de extermínio. Uma política de aniquilamento de um grupo, social e racial ao mesmo tempo, levada a efeito pela força armada do Estado equipada e treinada para alcançar esse objetivo.    

Gasta-se muito verbo, impresso pelos veículos convencionais ou circulando pelas redes sociais sobre a indesejável polarização   da sociedade brasileira. Mais ainda, quando se aproxima o último ano do mandato de Jair Bolsonaro. Essa experiência para a qual convergiram a radicalização do modelo econômico ultraliberal com o projeto político neofascista para cristalizar as desigualdades sociais e raciais nesta sociedade, herdeira de 380 anos de exploração do trabalho escravo, anestesiada pela indiferença.

Numa sociedade econômica, social e culturalmente fraturada ao ponto de assistir como se fosse natural tais níveis de violência, não deveria ser uma surpresa a polarização política que se observa há anos nas disputas sobre os rumos do país. Não é desprovida de razão a grande dificuldade de se afirmar uma Terceira Via. Ainda que seus proponentes sejam sócios cativos do programa neoliberal e neofascista em curso.   

Ao contrário do que desejavam os golpistas, que se utilizaram de todos os instrumentos midiáticos e judiciais ao seu alcance, para criminalizar a atividade política em nome da moralidade – que afinal se revelou, mais uma vez hipócrita, a sociedade brasileira, hoje, respira política. 

A política permeia todos os assuntos, da conversa de bar que retorna, depois do isolamento provocado pela pandemia, às redes sociais, aos telejornais, ou as palestras nas academias. Do preço do gás ao exame do ENEM, da COP 26 aos números do desmatamento, dos dados sobre o desemprego, às panelas vazias, dos números catastróficos da pandemia da covid-19 à defesa do SUS, da violência policial estrutural contra os pobres à última chacina. Tudo passa pelo debate político porque simplesmente não há outra forma de enfrentar os problemas sociais, econômicos, políticos e culturais não resolvidos. 

Para escapar da visão simplista que se atém à ignomínia do presente, é necessário voltar o olhar para esse peso histórico que arrastamos entre a Casa Grande e a Senzala e se perpetua nas relações quotidianas que estabelecemos, traduzidas pela indignação de nossos melhores intérpretes: “A mais terrível de nossas heranças é essa de levar sempre conosco a cicatriz do torturador impressa na alma pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem nas mãos.” (Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro, 1995).

E mergulhar nas raízes da trajetória que nos legou os traços básicos das relações oligárquicas de mando que predominam na sociedade brasileira e nos mantém historicamente sitiados pela barbárie: 

  “A escravidão atingiu o seu ponto mais alto, como fator de acumulação interna de capital, não antes, mas depois que se constituiu um Estado Nacional. Isso pode parecer um paradoxo. Mas não é. As estruturas coloniais de organização da economia, da sociedade e do poder só conheceram sua plenitude quando os senhores de escravos organizaram sua própria forma de hegemonia.” (Florestan Fernandes, “Significado do protesto Negro”, Expressão Popular e Fundação Perseu Abramo, S. Paulo, 2017).

  A experiência histórica ensina que a emancipação coletiva dos trabalhadores deve ser realizada pelos próprios trabalhadores. “Essa afirmação também é verdadeira com referência aos negros. Cabe-lhes conquistar a sua auto-emancipação coletiva, liberando-se de uma situação desumana, ultrajante e insustentável, que nos prende ao passado e a padrões de dominação racial obsoletos.” (idem).

Nesse momento de resistência ao neofascismo, quando o aparelho repressivo do Estado não deixa dúvidas sobre sua política de extermínio, como vemos em S. Gonçalo, é indispensável, para as esquerdas reafirmar com nitidez programática sua compreensão: 

“A revolução dentro da ordem é insuficiente para eliminar as iniquidades econômicas, educacionais, culturais, políticas etc., que afetam os estratos negros e mestiços da população. Mesmo quando o negro não sabe o que é socialismo, sua luta por liberdade e igualdade possui uma significação socialista. Daí ser ele uma vanguarda natural entre os oprimidos, os humildes, os explorados, 

enfim, o elemento de ponta daqueles que lutam por um “Brasil melhor” ou por “uma sociedade mais justa.” (idem). 

E expressar sem temor nos debates com nossos adversários a convicção de que o Brasil só será capaz de vencer a barbárie quando os setores populares assumirem que “A democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigmatização e de segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça.” (idem).

Não basta não ser racista. É necessário combater o racismo, de todas as formas. A guerra que o Estado brasileiro move contra os negros e contra os pobres, no mínimo, fez mais dez corpos no Salgueiro, em S. Gonçalo. Interpelado a respeito da chacina, o governador do Rio expeliu uma frase que o define à perfeição como homem público: “Boa coisa não deveriam estar fazendo.” 

O que a sociedade tem a dizer sobre isso? Que espécie de democracia desejamos construir? Essas são questões que exigem respostas imediatas não apenas teóricas, das forças políticas democráticas e populares que se recusam a aceitar como inevitável a barbárie em que o neofascismo e o ultraliberalismo nos mergulharam. 

Retomar, numa perspectiva de longo prazo, a reconquista da democracia no Brasil passa necessariamente por incluir no programa do Governo de Reconstrução Nacional a redefinição das funções do aparato de segurança do Estado, hoje voltado estruturalmente para o extermínio dos pobres, dos negros, dos excluídos. O Brasil jamais será um país democrático se não abolir o caráter estruturalmente racista de suas forças de segurança. No país com a segunda população negra do mundo é incontornável constituir uma Polícia estruturalmente antiracista.    

Brasília, 29 de novembro de 2021.

  • Pedro Tierra, poeta. Escreveu a “Missa dos Quilombos” com Pedro Casaldáliga e Milton Nascimento. Ex-Presidente da Fundação Perseu Abramo.

Foto: Todos Negros/Luiz Morier – Prêmio Esso de jornalismo de 1983. A imagem, que lhe rendeu o prêmio mostra uma blitz policial na estrada Grajaú-Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Todos os homens, negros, estão amarrados pelo pescoço. Publicação original: Pragmatismo Político
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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

 

 

 

 

 

 

 

 
 
 
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