Bolzonaro instaurou uma guerra contra as mulheres”, diz Amelinha Teles
RAFAEL CISCATI – FUNDO BRASIL DE DIREITOS HUMANOS
Perseguida pela ditadura militar, Amelinha Teles se diz uma feminista das pequenas causas. Para enfrentar tempos sombrios, defende o diálogo. Mesmo com aqueles avessos à conversa
No final de 2019, a ativista Amelinha Teles — referência na luta feminista e contra a ditadura militar no Brasil — se envolveu em uma breve discussão com um de seus vizinhos. A coisa toda aconteceu por causa de uma festa. No começo dos anos 1980, Amelinha ajudou a fundar a União de Mulheres do Município de São Paulo. Um dos primeiros grupos feministas a surgir no Brasil pós-ditadura, a organização ocupa o mesmo imóvel — uma casa ampla, repleta de plantas— há quase 40 anos. Todo mês de dezembro, o aniversário da União de Mulheres é marcado por festividades que extravasam os terrenos da casa para ocupar a rua, numa celebração que envolve a vizinhança. Em 2019, o bloco Ilu Obá de Min presenteou a organização com um cortejo. “Eu convidei todos os vizinhos para assistir, e contei que aquele era um bloco de mulheres negras”, conta Amelinha, entre divertida e indignada. Um dos vizinhos desaprovou a ideia. Disse a Amelinha que preferia distância porque, nas palavras dele, “esse povo faz muita coisa errada”. Amelinha lembra que não disfarçou a irritação. Na resposta, reuniu toda a paciência e didatismo desenvolvidos durante seus anos de magistério: “Muita coisa errada? Mas coisa errada de que tipo?”, lembra de ter perguntado, para desconcerto do interlocutor. “Por acaso o senhor conhece o Ilu Obá de Min? Saiba que é muito bonito”. O vizinho não conhecia. Contrariado, encerrou a conversa. A festa aconteceu sem ele: “E foi linda”.
Aos 75 anos ( “quase 76”, ela se apressa em dizer), Maria Amélia de Almeida Teles é uma senhora de cabelos muito brancos, que usa curtos — a não ser por uma única mecha de fios mais longos que partem da nuca. Sua voz é serena e firme. É festeira e gosta de conversar. Gosta tanto que se esforça para manter diálogos mesmo naquelas situações em que o interlocutor — como no caso do vizinho ranzinza — parece avesso à conversa (ou pobre de argumentos) : “Eu cheguei num ponto em que acho que a gente precisa ser muito didática” diz, sentada no sofá de uma sala estreita e apinhada de cartazes de caráter feminista. Junto à porta, dando as boas-vindas a quem chega à União de Mulheres, um auto-retrato da mexicana Frida Kahlo . Na parede oposta, uma imagem da personagem Mafalda estampa um estandarte roxo. A peça aconselha quem observa a “lutar como uma menina”. “ Precisamos ser didáticas porque é importante que as pessoas entendam a gravidade do que está acontecendo”.
As coisas graves a que Amelinha se refere são principalmente aquelas relacionadas à presidência da república. Conhecido por suas declarações misóginas desde os tempos de deputado federal, o presidente Jair Bolsonaro já afirmou que sua filha foi resultado de “uma fraquejada” e que cabe às mulheres “edificar o lar”. Dias antes da entrevista de Amelinha à Brasil de Direitos, o presidente insinuou que uma jornalista da Folha de S. Paulo trocara sexo pelas informações publicadas em uma reportagem. As declarações fizeram Amelinha lembrar do general João Baptista Figueiredo. Último dos presidentes militares, Figueiredo afirmou, nos anos 1980, que “cavalo e mulher, só depois de montar ou casar”. “Mas a declaração de Bolsonaro é ainda mais grave”, afirma ela. “Figueiredo não chocou ninguém. Na época, se pensava que isso era natural. Mas a sociedade mudou. Todo mundo sabe que esse tipo de comentário não é mais aceitável — e que os efeitos disso reverberam na vida da gente”.
Na avaliação dela, Bolsonaro cerrou fileiras contras as mulheres: “Ele instaurou um clima de guerra contra nós”. Elegeu ainda outros alvo, que ataca com frequência: os povos indígenas, as populações tradicionais, a população negra e LGBTI+. “Os comentários do presidente estimulam atos de violência contra essas pessoas”, diz. O quadro geral, no entanto, não a desanima. Mesmo indignada, Amelinha permanece serena: “Participei do movimento feminista durante a ditadura”, explica. ” A experiência me ensinou que, em momentos assim, precisamos permanecer organizados. Promover debates, trabalhar com a educação. Para que as pessoas entendam esse processo e reajam”.
Em 1972, Amelinha e o marido foram levados à Operação Bandeirantes (Oban) onde foram torturados. Uma vez fora da cadeia, caiu na clandestinidade (Foto: reprodução Facebook)
Foi para promover diálogo e reagir a tempos bicudos que Amelinha e suas companheiras criaram a União de Mulheres em 1981. Quando o grupo se formou, o Brasil caminhava para o fim da ditadura militar, e havia a expectativa de uma nova Constituição. A organização participou ativamente dos debates que culminaram na Carta de 1988. A movimentação garantiu que o texto incluísse reivindicações defendidas pelos movimentos de mulheres desde meados dos anos 1970. Coisas que hoje talvez soem naturais, como a igualdade jurídica entre os gêneros, mas que as leis ainda não asseguravam. Na época, a participação dos grupos feministas foi estimulada pelo governo federal, através do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher : “Mas, feita a Constituição, o governo decidiu que não precisava mais apoiar os movimentos de mulheres. Porque os direitos, disseram, estavam garantidos”, lembra Amelinha. O revés político fez a União de Mulheres repensar sua atuação. Desde então, o grupo trabalha no campo da formação popular feminista. O objetivo é municiar mulheres com informação, para que lutem por seus direitos. Pela casa, na região central de São Paulo, passaram diferentes coletivos — ou coletivas, no feminino mesmo — ao longo dos anos, que procuraram o espaço para realizar rodas de conversa e eventos: “Essa casa sempre esteve aberta para a mulherada”, diz Amelinha.
A abertura já fez do imóvel palco de embates entre diferentes correntes do feminismo: “Lembro quando a casa ficou cheia de feministas jovens. Elas nos achavam, feministas velhas, muito arcaicas”, conta Amelinha. “Eu achei ótimo. As jovens deram novo ritmo ao movimento”.
Desde 1994, a União de Mulheres é também uma das organizações brasileiras responsáveis pelo projeto Promotoras Legais Populares (PLPs) . A ideia surgiu no Chile e consiste em oferecer formação em direito a mulheres que possam atuar como lideranças em suas comunidades. Chegou ao Brasil em 1992, durante um seminário organizado pelo Comitê Latino Americano para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem) de que Amelinha participou: “Na hora em que ouvi a ideia, olhei para uma colega que me acompanhava e disse — é isso o que precisamos fazer”. Anualmente, a União de Mulheres reúne pouco mais de 100 interessadas para discutir direitos e participação popular por cerca de 10 meses, todos os sábados. Parte das aulas acontece na Câmara Municipal de São Paulo. Os encontros falam sobre a história da Constituição Brasileira, explicam o funcionamento de leis (como a Lei Maria da Penha) e ensinam como acessar serviços públicos. As aulas são gratuitas, e ministradas por pesquisadoras, ativistas, juízas e promotoras.
Fonte: Brasil de Direitos
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