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Avós da Plaza de Mayo: soberanas da memória, exemplos de resistência

Avós da Plaza de Mayo: soberanas da memória, exemplos de resistência

E se o mundo sobrevive, os professores de história explicarão o século XX através de seus símbolos: mostrarão a seus alunos a garrafa de Coca-Cola, a bola de futebol, o televisor, o computador, a bomba de nêutron. E para explicar a dignidade, mostrarão o lenço branco das rondas da Plaza de Mayo.
Eduardo Galeano

Durante os últimos 40 anos, um grupo de bravas mulheres argentinas lutaram e lutam para encontrar seus netos e netas, desaparecidos junto com seus filhos/as, genros e noras durante a ditadura militar na Argentina (1975-1983).

As Abuelas perceberam que uma ausência é uma ausência de toda Argentina, e por isso há um povo que as declara soberanas da memória.” Assim descreveu Mario Bravo, um dos netos nascidos em cativeiro, o trabalho das Abuelas, durante a noite do 40º aniversário da APM, em outubro de 2017.  Graças a este incansável trabalho de busca e denúncia, as resistentes Abuelas da Plaza de Mayo já encontraram quase 130 de seus netos e netas.

Organizadas na Associação Civil Avós da Praça de Maio (APM), uma organização de direitos humanos com sede em Buenos Aires,  las Abuelas, além de tentar localizar e restituir todas as crianças sequestradas ou desaparecidas durante a ditadura, também lutam pela punição dos responsáveis e para denunciar esses crimes contra a humanidade, na esperança de que eles jamais voltem a acontecer, não somente na Argentina, mas em qualquer outro lugar do planeta.

Segundo Maria Fernanda Garbero de Aragão Ponzio, “a Praça de Maio é o palco que abriga  nas tardes de quinta-feira, as Madres [agora avós] que marcham e rondam, respectivamente como Asociación Madres de Plaza de Mayo e Madres de Plaza de Mayo – Linha Fundadora,  em busca da verdade, da justiça e da memória. Contra o tempo e ao revés do ponteiro do relógio, elas desfilam com seus lenços brancos, redesenhando uma história que não pode ser esquecida. “Paridas por seus filhos” é discurso emergente das feridas abertas dessas mulheres que, com o desaparecimento forçado de seus entes queridos, saem da esfera privada para desestabilizar e reinventar o espaço público.”

Ao longo desses últimos 40 anos, aprendemos muito com as Avós da Plaza de Mayo. Aprendemos, sobretudo, a persistir na resistência. Todos e todas nós temos na memória a presença delas em frente à Casa Rodada, com seus lenços que sempre falaram por mil palavras, com seus discursos públicos, com o encontro de seus netos e netas, e com a denúncia contantes dos bárbaros crimes cometidos pela ditadura argentina contra suas suas famílias, contra o povo argentino, e contra a humanidade.

Em dezembro de 2003, Estela Barnes de Carlotto, presidenta da Associação, recebeu o Prêmio de Direitos Humanos de ONU. Em maio de 2008, las Abuelas foram nominadas para o Prêmio Nobel da Paz. Em agosto de 2014, Estela anunciou à imprensa que seu neto Guido, filho de sua filha Laura, presa em 26 de novembro de 1977, com uma gravidez de dois meses e meio, e assassinada pela ditadura depois de o bebê nascer, havia sido encontrado.

Os dados a seguir contam trazem registros da resistência de três das Abuelas da Plaza de Mayo.  Esses registros, em sua maioria documentados pelo jornal El País, nos ajudam a traçar um perfil das mulheres que, coletivamente e pela dor, construíram esse movimento-exemplo para a história.

Avós da Plaza de Mayo: soberanas da memória, exemplos de resistência

Estella de Carlotto: Uma entrevista memorável (brasil.elpais)

Estela de Carlotto é uma personagem chave na Argentina e referência mundial na luta pelos direitos humanos. Aos 86 anos, e depois de 40 lutando nas Avós da Praça de Maio, mantém sua enorme influência. Sua organização conseguiu recuperar 120 netos, incluindo o dela, localizado em 2014. Em sua maioria foram tirados de suas mães depois de as terem assassinado, e entregues a famílias próximas à ditadura. Carlotto, tão encantadora como firme, diz que a Argentina é um exemplo para o mundo em direitos humanos exatamente porque ali estão as Avós e outros grupos que pressionam todos os governos.

Pergunta: Depois de 40 anos, a senhora tem a sensação de missão cumprida?

Resposta: Não. Por isso estou aqui. Tenho 86 anos, estou cansada e uso bengala para caminhar. Mas tenho de continuar, porque faltam centenas de netos [cerca de 400]. E é preciso deixar tudo muito claro, para que nenhum governo consiga apagar tudo que é memória. Este Governo, por exemplo, quer esquecer. Questionaram o número de desaparecidos. Por isso não posso cruzar os braços, porque eu encontrei meu neto. Mudou meu coração, minha alegria, a família está completa e os vejo crescer. Tenho uma bisneta, que é a neta de minha filha Laura. Mas minhas companheiras ainda estão esperando.

 P. Não é fácil para os netos. O seu, inclusive, pede que seja chamado de Ignacio, como foi chamado pelos apropriadores. Isso doeu?

R. Doeu porque o mundo inteiro o procurou como Guido. Foi o nome dado por sua mãe, em homenagem a seu pai, meu marido. Temos que nos conhecer, ele não me conhece e nem eu a ele. Doeu, mas entendi. Está em processo e é o ego. Coitado, calhou de ser justamente neto de Estela. Eu complico sua vida social e política.

P. Agora há um neto, Bacca, que conseguiu que a justiça lhe conceda o direito de continuar usando os sobrenomes de seus apropriadores e que não quer saber das Avós. Ele tem direito a isso?

R. Você tem direito de não saber desde que não prejudique ninguém. Se você é casado e sua mulher é infiel, e você não quer saber, não prejudica ninguém. Mas este é um crime de lesa-humanidade. Para nós, ele é uma vítima. Gostamos dele. Para ele ainda não caiu a ficha de que essas pessoas não são seus pais e cometeram um crime ao não permitir que vivesse com sua família e apoiar os que o tornaram órfão.

P. Deve ser difícil admitir que a pessoa que o criou é um criminoso…

R. Quando é preciso fazer justiça, é preciso. Com o garoto temos paciência, carinho e amor, mas com a justiça estamos muito zangadas. Nunca consegui aceitar algo que é estritamente proibido, que é consentir que se mantenham os sobrenomes. Os sobrenomes são os de seu pai e mãe.

P. Estão aparecendo muitos casos, isso tem a ver com o fato de os apropriadores estarem morrendo e se sentirem liberados para denunciar?

R. Pode ser, em parte. Não foram criados com liberdade, foram enganados, e quando não há mais remédio, porque são adultos de 40 anos, dizem que eles os criaram para que não fossem mandados à prisão. Vitimizam a vítima e isso é uma maldade enorme. Muitos netos não querem que aconteça nada aos que os criaram por afinidade.

P. Qual foi o pior momento desses 40 anos?

R. Quando a polícia nos chamou, a mim e a meu esposo, para dizer que lamentava nos informar que Laura tinha falecido. Chamei-os de assassinos e mostrei a eles um Cristo grande que tinham pendurado, disse a eles que seriam julgados por Ele se nós não pudéssemos. Meu marido não me permitiu vê-la, estava desfigurada. Depois a desgraça de festejar o retorno à democracia e ver que o Governo [de Menem] fizesse duas leis de perdão, isso foi um horror. Ver esses assassinos livres.

P. Quando começou a mudar?

R. Éramos muito inocentes. Íamos a uma casa, tocávamos a campainha nos passando por vendedoras e esperávamos que a mãe saísse com o menino para que outra avó atrás de uma árvore tirasse uma foto. A quem íamos apresentar essa evidência dizendo: ‘me parece que esse é meu neto?’ Uma vez segui uma senhora por duas quadras, porque tinha nos braços um bebê idêntico a um de meus filhos. Depois a olhei e era idêntica a seu filho. Então descobrimos que o sangue poderia nos revelar a verdade. Em 1983 fizeram um seminário internacional muito grande e chegaram à conclusão de que o sangue das famílias materna e paterna servem para reconstruir o mapa genético dos pais. Dizem que a ciência avançou muito graças a nós.

P. Por que a sra. acredita que a sociedade argentina mudou tanto desde aquelas leis de ponto final até agora?

R. Porque nós não abandonamos um só dia a presença social. Eu era professora e continuo sendo. Foi um movimento social único na América Latina para esse tipo de assunto. Não sei por que não surgiu algo assim nos outros países onde houve ditaduras. Cada vez é mais gente que nos acompanha. Até as crianças estão sabendo do assunto. A Argentina é um modelo para o mundo por estar julgando e condenando os genocidas em tribunais comuns. Temos consciência de que aqui se avançou a passos largos em relação à região. Recebo telefonemas do mundo todo.

P. A sra. sentiu que foi usada politicamente?

R. Nunca permiti que me usassem. Ofereceram-me cargos políticos e me perseguiram. Não só aqui, mas também na Itália, porque tenho cidadania. Quando essa gente que governa hoje diz que os Kirchner nos usaram, eu digo que, ao contrário, nós usamos os Kirchner, porque conhecíamos sua sensibilidade para esse assunto. Quando Kirchner decidiu tirar os quadros dos genocidas da casa militar, me convidou a acompanhá-lo. Respondi que de forma alguma. Não somos revanchistas, queremos o caminho bem claro. Por isso o respeito que temos, porque nunca mentimos, nem afrontamos, jamais acusamos ninguém sem ter prova antes, porque seria muito feio acusar de apropriadores um casal que realmente não merecesse.

P. A sra. se reconciliou com o Papa?

R. Quando foi escolhido Papa, a expressão da instituição foi de indignação. E eu tive o pouco acerto de manifestar isso à imprensa. Depois, quando a verdade veio dita por quem merece nossa total confiança, como Alicia Oliveira, mudei de opinião e retifiquei. Creio que agora está mostrando sua verdadeira personalidade. A igreja nunca nos ajudou. Com exceção de sete bispos que arriscaram suas vidas, o resto era silêncio e cumplicidade. Agora há uma mudança muito grande.

P. A sra. apoiou muito o kirchnerismo. Quando vê os escândalos de corrupção, se ressente?

R. Acredito que é injusto. Aqui há uma perseguição política tremenda à ex-presidenta Cristina e a Néstor. Se pudessem ressuscitá-lo para colocá-lo na cadeia, o fariam. Sei sobre a sacola de dólares [o ex-secretário de Obras Públicas, José López, foi preso com nove milhões de dólares] mas é uma pessoa. É como se eu aqui tivesse alguém que fizesse o mesmo. Vão colocar a culpa em mim? O que você faz se tem funcionários desonestos? Eu pessoalmente tenho a confiança de que [os Kirchner] não eram pessoas desonestas. Têm muito dinheiro. Mas não significa que roubaram.

Avós da Plaza de Mayo: soberanas da memória, exemplos de resistência

Raquel Radío de marizcurena: Outra avó coragem, outra entrevista memorável

(Luciana Taddeo | 30/04/2013 )

No dia em que o filho de Raquel Radío de Maricurrena, Andrés, fez 24 anos, militares à paisana invadiram sua festa de aniversário e o levaram junto com a esposa Liliana, então grávida de quatro meses. Era outubro de 1976, Buenos Aires, ditadura militar argentina, umas das mais sangrentas da América Latina.  Entre março daquele ano, quando o general Jorge Rafael Videla depôs Isabel Perón, e o fim do regime militar, em 1983, um total estimado de 30 mil pessoas desapareceram. Muitas eram grávidas ou mães de recém-nascidos. E esses bebês, recolhidos nos centros de detenção, foram entregues a outras famílias ou oferecidas para adoção. depois de 32 anos, Raquel segue procurando seu neto.

Em 1977, período de repressão violenta, ela fundou as Abuelas de Plaza de Mayo (Avós da Praça de Maio), associação que se dedica a localizar essas crianças tomadas ilegalmente por militares e policiais. Para driblar a vigilância, as avós se reuniam em confeitarias, onde fingiam festejar aniversários, ou em parques públicos, como inofensivas senhoras a passeio. Nos protestos, foram muitas vezes dispersas a golpes de cassetete. Mas, graças a essa investigação, encontraram 97 bebês (muitos já adultos), desde a volta da democracia, há 25 anos. Infelizmente, calcula-se que ainda existam 400 jovens com idades entre 28 e 33 anos que não conhecem sua identidade: filhos de desaparecidos. Entre eles pode estar o neto de Raquel, que, aos 77 anos, foi proibida pelos familiares de ir a manifestações, mas não perdeu a esperança de recuperá-lo.

Como surgiram as Avós da Praça de Maio?

Primeiro, vieram as Mães da Praça de Maio, em 1977, que também ajudei a fundar. Íamos à praça protestar [contra o desaparecimento de seus filhos, presos políticos, em frente à Casa Rosada [palácio do governo]. Um dia, uma das avós perguntou quem de nós tinha filhas ou noras que haviam desaparecido grávidas. De uma em uma, fomos nos apresentando e chegamos a um número de 12, com ela. Listamos os netos desaparecidos e essa foi nossa primeira pasta de informações, que, por desgraça, rapidamente engordou.

E como conseguiam atuar?

Nosso trabalho inicial foi compilar fotos e dados sobre os bebês, como data estimada de nascimento em cativeiro ou idade que tinham quando foram levados. Nós mesmas redigíamos os habeas corpus, pedindo que nossos filhos tivessem o direito de se apresentar a um juiz, comunicando a existência dos netos e exigindo a suspensão de todas as adoções. Também preparamos documentos com essas informações para pedir ajuda a organizações internacionais. Para não levantar suspeitas, nós nos encontrávamos em confeitarias, como na Las Violetas, El Molino ou na da estação de trem em Retiro, e simulávamos festejar um aniversário. Ou nos juntávamos no zoológico ou no jardim botânico. Às vezes, os encontros terminavam mal, com o Exército e a polícia tentando nos dispersar.

Como juntavam as pessoas para as marchas? Elas não tinham medo?

Sempre fomos reprimidas, nunca tivemos uma marcha tranquila. Mas estávamos com famílias e amigos de milhares de desaparecidos, não tínhamos medo. Os militares nos empurravam com fuzis e cassetetes de madeira. Mesmo assim, voltávamos a nos encontrar. Íamos a tribunais, prisões e quartéis para ver se havia notícia dos nossos filhos ou de algum desaparecido. Mas eu nunca consegui. Diziam a mesma coisa a quase todas, que eles não figuravam como desaparecidos. O padre do Exército não nos dava informações e houve um, de uma igreja em San Isidro, na Grande Buenos Aires, que se recusou a nos receber. A Igreja Católica não ajudou nada. E lembro que fui a um tribunal com outra avó, e uma juíza nos disse que os bebês desapareceram por nossa culpa, porque deixamos nossas filhas e noras engravidarem de propósito, para que não fossem levadas ou não apanhassem quando presas. Saímos dali furiosas. Ela não era militar, mas, nessa época, os juízes também eram terríveis.

Como seu filho e nora foram presos?

Foi no dia 11 de outubro de 1976, aniversário do meu filho, Andrés. No fim da festa, os mais velhos jogavam cartas na sala de jantar e ele estava com amigos no quarto. Às 11 da noite, seis pessoas vestidas como civis bateram na janela e mandaram abrir a porta. Meu filho obedeceu e eles entraram, alegando que vinham buscar uma caixa de livros. Minha nora, Liliana Caimi, tirou a caixa do armário para entregá-la. Mas eles disseram que os dois teriam de acompanhá-los para uma acareação, e que estariam de volta em duas horas. Essas duas horas já duram 32 anos. Nunca mais os vi. Tínhamos comido nhoque e o bolo de aniversário era de cereja marasca, que meu filho adorava. Nhoque, eu só consegui comer muitos anos depois, e o bolo, nunca mais.

Quais eram os livros e o objetivo da acareação?

Eram livros proibidos. Ela estudava Direito e meu filho trabalhava para a administração municipal de Buenos Aires. Os dois participavam da Juventude Guevarista. Atrás da porta do quarto, ela tinha desenhado um imenso Che Guevara. Quando os homens viram, quebraram a porta em pedaços. Eles queriam colocá-los frente a frente com outro casal, também da Juventude Guevarista, que estava preso havia 15 dias, sem falar. Depois, soubemos que a menina os denunciou porque ameaçaram matar seu bebê.

Não há pistas sobre o que aconteceu com seu filho?

Nada. Quando foram levados, ficamos a noite toda na casa deles, próxima à delegacia. Na ocasião, meu marido ouviu um tiroteio entre os policiais no edifício em frente e, no dia seguinte, retiraram de lá um casal morto. Meu marido morreu em 1988, convicto de que, nesse momento, mataram os meninos. Ele perdeu as esperanças, mas eu acredito que meu neto nasceu. Há quem diga que devíamos buscar os netos como mortos. Mas eles estão vivos. Tanto que localizamos 97 deles.

Como foram as primeiras buscas?

Nos primeiros anos, cada avó procurava por si, sozinha. Quando suspeitávamos que alguma criança pudesse ser nosso neto, ficávamos paradas nas esquinas, observando-a sair para o colégio. Geralmente, as mulheres se encarregavam disso. Não queríamos o envolvimento dos maridos, com medo de que fossem presos. Então íamos sozinhas. Passamos por maus momentos: fomos atropeladas por cavalos, atacadas com gás lacrimogêneo, e sofremos muitos tipos de penúria.

Vocês eram ameaçadas?

Temos uma pasta cheia de ameaças. Ainda hoje, quando encontramos um neto, recebemos ameaças pelo telefone. Os militares reagem mal às buscas. Algumas das crianças localizadas foram adotadas por civis que não sabiam que eles eram filhos de desaparecidos. Muitos nos procuraram para dizer “tenho um menino adotado e quero saber se ele é nosso ou não”. Somente os militares não se apresentam.

Como vocês procuram os netos desaparecidos?

Temos uma equipe de investigações, uma de advogados e uma de apresentação espontânea, que recebe os jovens que nos procuram. É uma barbaridade a quantidade de jovens que se apresenta porque deseja saber sua identidade. Quando estamos bem seguras de que um deles pode ser um dos netos procurados, passamos o caso para a Justiça. Temos de estar completamente seguras da sua identidade e nunca tomamos nenhuma atitude antes disso, para que os jovens não sofram muito.

Como surge um indício?

Quando recebemos uma denúncia, em geral é de um vizinho que se deu conta de que um casal mais velho ou uma mulher que nunca esteve grávida apareceu de repente com um bebezinho. Então investigamos. Algumas avós iam como vendedoras de livros olhar a casa, outras se passavam por empregadas ou enfermeiras, o que era um risco enorme. Eu atuava muito, mas nunca me disfarcei. Havia perto da minha casa uma menina que suspeitávamos ser “neta”. Bem cedo, todo dia, antes que ela saísse da escola, eu parava na esquina do colégio com aquela que acreditava ser sua avó verdadeira para ver quem a buscava. Até que tivemos certeza de que a menina era mesmo a neta que procurávamos. Acionamos a Justiça e ela foi recuperada. Agora, as coisas mudaram. Quando temos alguma dúvida, conseguimos uma ordem judicial para entrar na casa e coletar material para exame de DNA. Comparam o DNA da criança com o da avó e, se bate, a chance é de 99,99% de que seja seu neto. Então levamos o caso ao juiz, que se ocupa de dizer a verdade ao jovem.

Como foi o caso da primeira criança encontrada?

Seu nome é Paula Logares, de Buenos Aires. Havia desaparecido em 1978, com 2 anos, em Montevidéu, no Uruguai, para onde seus pais haviam fugido após o golpe militar. Deu muito trabalho encontrá-la, porque era plena ditadura, e ela havia sido apropriada por um policial, que a registrou como filha no momento da detenção de seus pais. Ela soube sua identidade no fim de 1983. E, em agosto de 2008, encontramos dois netos seguidos, o 94º e o 95º; em dezembro, o 96º; e, em fevereiro deste ano, o 97º. Foi fantástico. Quando encontramos um neto é como se fosse de todas nós, uma alegria imensa.

Quando alguém tem dúvidas sobre sua identidade, qual é o procedimento?

Quando a pessoa nos procura para saber se é filha de desaparecidos, chama-se apresentação espontânea. Nós a transferimos aos nossos psicólogos, que a orientam a trazer todos os documentos que tiver sobre sua identidade, para começarmos a investigar. Muitos nos procuram, mas não têm nada a ver com isso.

Quanto demora a investigação?

Antes, levava anos. Era desesperador. Mas os governos de Néstor e Cristina Kirchner [respectivamente o ex e a atual presidente da Argentina] foram de grande ajuda. Até então, quando íamos procurar a certidão de nascimento de bebês levados com as mães para detenção clandestina, todos se negavam a ajudar. Esses presidentes foram os únicos que nos apoiaram. Imagine que o golpe completou 32 anos em 22 de outubro de 2008, e recentemente encontramos o 97º neto. Precisamos acelerar as buscas, porque já somos velhas e queremos conhecer nossos netos. Mas, quando já não estivermos aqui, estarão nossos outros filhos e os netos que encontramos. Isso não vai parar até encontrarmos todos.

Imagino a angústia de ver o tempo passar…

É terrível, porque já faz 32 anos que levaram meu neto e quero conhecê-lo antes de morrer. Também quero saber onde estão os restos do meu filho – a essa altura, não posso esperar que ele esteja vivo. São muito poucas as que puderam enterrar seus filhos.

E como estão as buscas por seu neto?

Estamos desesperadas, porque não temos nada. São raras as avós que atuam nas buscas e encontraram seus netos. A maioria das crianças localizadas está ligada a avós que são de fora de Buenos Aires ou que nunca vêm à associação. Isso dá tristeza porque nós, que estamos todos os dias buscando, não encontramos os nossos. Agora, temos bastante trabalho e somos em menor número, porque muitas já morreram ou estão com problemas de saúde. Eu tenho 77 anos e sou a mais jovem. Mesmo assim, faz três anos que eu não protesto mais, porque meu outro filho não deixa.

Deve ser difícil para alguém saber que seu pai não é realmente seu pai…

E que pais, Deus meu. Os ditadores. Mas muitos desses jovens passam a ajudar nas investigações. Com um dos últimos netos encontrados foi extraordinário. Após a conferência de imprensa em que anunciamos a localização do 94º e do 95º identificados, um deles ligou para agradecer o fato de não termos revelado de onde ele era e não termos divulgado informações públicas sobre ele. O rapaz tinha pedido paciência, que respeitássemos sua vida e o tempo que seria necessário para ele absorver a notícia. A avó conta que, agora, ele liga todos os dias para saber como ela está e pedir que se cuide bem. Espero que isso aconteça comigo e com todas as outras que continuam procurando.

Rosa Tarlovsky de Roisinblit: Outra avó coragem, outro exemplo de resistência

Rosa Tarlovsky de Roisinblit tem 89 anos e anda de cadeira de rodas. Mas é a vice-presidenta da APM e ainda comparece todas as terças-feiras às reuniões da diretoria. Usa ajuda, mas especialmente usa sua força. A mesma que emprega para encontrar os netos de suas companheiras, visto que ela encontrou seu próprio neto, Guillermo Pérez Roisinblit.

“Os primeiros anos foram muito difíceis, porque não sabíamos como fazer para encontrar nossos filhos, e finalmente percebemos que também levavam nossos netos. Tudo estava contra nós. Estávamos diante de uma ditadura feroz, que não parava por nada, e sobre nossos netos não sabíamos nem o sexo, porque tinham nascido num campo de concentração. Também não sabíamos se nossas filhas sequestradas tinham chegado ao fim da gravidez, pelas torturas e castigos”, lembra Rosa.

“Concluiu-se que com o sangue dos familiares se poderia saber a identidade dos nossos netos”, recorda. A informação hoje soa como natural, mas naquela época era novidade. E ainda faltava a outra ponta do novelo: cutucar o DNA daqueles que circulam pela vida sem saber sua origem. Os que estão nas praças, no metrô, na rua. Os que votam, trabalham e estudam. Tirar o véu de centenas de pessoas que não se permitem ver além do conforto, picar como uma mutuca até encontrar a dúvida sobre a própria identidade. Ou, como diz Ignacio Montoya Carlotto, neto da presidenta, Estela de Carlotto: “As avós são pessoas que trabalham para fazer se encontrar”.

Com todo esse sangue se criou o Banco Nacional de Dados Genéticos, por decreto do ex-presidente Raúl Alfonsín. “Quanto mais familiares se apresentavam, mais chances havia de identificar uma pessoa”, explica Rosinblit. “Não são recuperados, são netos que pudemos identificar e que aceitaram sua nova, mas verdadeira, identidade. Dessa maneira, podem conhecer realmente sua verdade”, completa. “Enquanto houver uma avó, ela fará o que tiver que fazer, mas temos um grupo de pessoas jovens que estamos ensinando, e quando já não restarem avós, eles vão cuidar. Isso não termina até que se encontre o último neto, e o banco de dados genéticos vai existir até 2050 ou mais”, desafia Rosa.

Como acontece em Córdoba com Sonia Torres, a última das avós que restam na segunda província mais importante da Argentina. “Sequestraram minha filha Silvina Parodi e seu marido dois dias depois do golpe, porque integrava uma lista feita pelos militares sobre ‘jovens revoltosos’. Ela estava grávida de seis meses, e cheguei a percorrer sozinha todas as prisões do país para encontrá-la. Quando vim para Buenos Aires conheci as outras avós e nunca me separei delas”, rememora a mulher de 88 anos. E promete a si mesma antes de entrar no auditório: “Vou encontrar meu neto antes de partir”.

Avós da Plaza de Mayo: soberanas da memória, exemplos de resistência

Conheça o site das avós da Plaza de Mayo:  abuelas

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