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As escatologias contemporâneas

As escatologias contemporâneas: guerra nuclear, pandemia, extinção de espécies e mudanças do clima 

Por Gilney Viana

Pensem nas crianças/Mudas telepáticas

Pensem nas meninas/Cegas inexatas

Pensem nas mulheres/Rotas alteradas

Pensem nas feridas/Como rosas cálidas

Mas, oh, não se esqueçam

Da rosa, da rosa/Da rosa de Hiroshima

A rosa hereditária/A rosa radioativa/ Estúpida e inválida

A rosa com cirrose/Sem cor, sem perfume/Sem rosa, sem nada

 A Rosa de Hiroshima – Vinicius de Moraes

De repente estamos tomados por visões escatológicas do fim do mundo e/ou da humanidade a partir da percepção de eventos ou acontecimentos globais com forte materialidade como a pandemia da Covid-19, a possibilidade de uma guerra nuclear, a extinção massiva das espécies e a catástrofe climática.

Diferente da escatologia bíblica do Apocalipse, com suas bestas, cavaleiros e exércitos do bem contra os exércitos do mal alinhados para a batalha final no Armagedon, não incluem nem Arrebatamento nem Parúsia, que possibilitariam a salvação dos fiéis. As escatologias presentes são totalizantes, atingem crentes e não crentes, e seu enfrentamento e superação exigem a salvação de todos. Não sem riscos. Não sem lutas. Não sem esquecimentos, como diz o poema de Vinicius de Moraes sobre a “rosa de Hiroshima”.

A pandemia da Covid-19, que ainda está presente, infectou cerca de 500 milhões de pessoas e provocou a morte de mais de 6,1 milhões de pessoas, perturbando nossas mentes e corações e alterando nosso cotidiano. Rapidamente se disseminou a percepção da morte e da possibilidade da morte em quase toda a humanidade.

Em determinado momento passou pela cabeça de muitos de nós que a morte era inevitável e, depois, a certeza de que a maioria das mortes era evitável se fosse outro o comportamento de alguns governos (como o do Brasil,

que negou a gravidade da pandemia e depois retardou a vacinação da população) e dos monopólios farmacêuticos, cegos ao drama da humanidade, movidos pela busca de mais lucros, impondo a distribuição desigual das vacinas em desfavor dos países mais pobres, revelando a desumanidade do sistema de produção e da ordem geopolítica global. Mas também nos mostrou a potência da informação e colaboração da população, cuja mudança de hábitos junto com a vacinação barrou a progressão geométrica da infecção e deteve a curva ascendente de mortes.

Essa mesma percepção ainda não ocorreu com a crise ecológica, embora os cientistas e os representantes dos estados reunidos na Convenção sobre a Biodiversidade em Kunming, China, em 2021, tenham constatado que as 20 Metas de Aichi, firmadas em 2010, não tinham sido cumpridas, e denunciaram em alto e bom som que continua a marcha acelerada da extinção das espécies. E diante da pandemia remeteram a continuidade da COP para 2022. A ver.

Mais grave ainda foi o comportamento dos estados e instituições multilaterais na COP 26 da Convenção sobre Mudanças do Clima, em Glasgow, 2021 que deliberadamente não cumpriram as metas anunciadas em Paris, em 2015; e mesmo diagnosticando e datando a emergência climática não ajustaram suas metas nacionais e globais de redução do CO2eq ao nível suficiente para deter a tempo a elevação da temperatura média do planeta a 1,5º C acima da temperatura média do período pré-industrial. Adiaram o ajuste para 2022.

Nesse meio tempo, desencadeou-se a guerra na Ucrânia, e a mídia global hegemônica diz incorretamente ser a única em solo europeu depois da guerra de 1939–45, tentando fazer esquecer as guerras pela dissolução da antiga Iugoslávia, no coração da Europa.

Não divulgam nem analisam as guerras ainda em curso no Iêmen, no Mali, e em 20 países africanos; como não fala mais das guerras do Afeganistão, Iraque e Síria, decorrentes de intervenções norte-americanas. A principal diferença da Ucrânia de outras guerras contemporâneas é a percepção de que poderá ser o estopim de uma guerra nuclear, entre os Estados Unidos e a Rússia – motivação geopolítica da mesma.

É simplesmente escandaloso, amoral, que, em 3 de janeiro de 2022, as cinco potências nucleares com assento permanente no Conselho de Segurança da ONU – Estados Unidos. Rússia, China, França e Inglaterra – tenham assinado e divulgado uma declaração solene de que “não pode haver vencedores em uma guerra nuclear e ela jamais deve ser desencadeada”, e cerca de dois meses depois, em 22/03/2022, a Rússia tenha declarado, pelo seu porta voz, que “se for uma ameaça existencial ao nosso país, então elas podem ser usadas”; e o que é mais grave, em 24/03/2022, o porta voz dos Estados Unidos respondeu que “poderia usar armas nucleares em circunstâncias extremas, mesmo que a Rússia não as utilizasse primeiro”.

Ora, a chantagem da guerra nuclear foi explicitada e sua possibilidade se tornou real. Tanto a Rússia como os Estados Unidos sabem muito bem que estão colocando em risco toda a humanidade, e não apenas seus respectivos povos (o que já seria motivo para evitá-la). Sabem também que uma guerra nuclear global, além de causar morte direta de centenas de milhões de pessoas e das mais variadas espécies de seres vivos, provocaria mudanças climáticas radicais de longa duração que colocariam em risco a vida no planeta. É a escatologia mais perigosa que vive a humanidade, sendo ela uma das primeiras motivações para a existência do movimento ambientalista lá pelos idos da década de 1970. Só superada com a total extinção das armas nucleares.

Ora, aprendemos com a dor de milhões de mortes e outros milhões de sequelados que o enfrentamento da Covid-19 só foi exitoso aliando-se a participação popular com a ciência. Então porque adiar o enfrentamento da emergência climática, da contenção da extinção acelerada das espécies, da paz na Ucrânia e da eliminação total das armas nucleares?

Gilney Viana – Ambientalista. Professor Universitário. Escritor.

 

 


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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