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Áurea Martins canta e celebra sua ancestralidade em Senhora das Folhas

Áurea Martins canta e celebra sua ancestralidade em Senhora das Folhas

Áurea Martins canta e celebra sua ancestralidade em Senhora das Folhas

ÁUREA MARTINS faz mergulho no universo do das rezadeiras e benzedeiras, num repertório que vai de bendito medieval a Projota, de Flaira Ferro a Arlindo Cruz. O álbum ‘Senhora das Folhas’ contendo 11 faixas, chegou na terça-feira (8/3/2022), Dia Internacional da Mulher, nas plataformas musicais.
 Por Revista Prosa e Verso
“Fiz esse disco com as rezadeiras, essas matriarcas. Sem elas o Brasil não sobrevive. São uma força da natureza” – Áurea Martins (O Tempo, 8.3.2022).

SOBRE ELA   

ÁUREA  MARTINS é uma artista diamantífera, única. Nascida para a música no contexto da bossa-nova, uma das únicas cantoras negras da cena, com mais de 50 anos de shows, 9 discos solo, inúmeras participações em outros, Prêmio de Melhor Cantora no PMB 2009, um curta metragem sobre sua vida com mais de 21 prêmios (inclusive de melhor atriz), em 2022 Áurea comemora 82 anos como se debutasse, cheia de vigor e energia telúricos, lançando disco e fazendo lives ao lado de parceiros cinco décadas mais jovens. “A vida toda tive que me reinventar. A volta ao em 80 dias é para os fracos, a volta ao mundo é em 80 lives!” diz ela. Áurea sabe que seu tempo de colher é hoje. Ela está vivíssima. E dando frutos. #Saiba mais sobre Áurea Martins AQUI! 

SOBRE O DISCO

Em SENHORA DAS FOLHAS (Biscoito Fino / Natura Musical), ÁUREA MARTINS encarna o feminino curador em canções que homenageiam as rezadeiras, curandeiras e benzedeiras do Brasil, mulheres-matriz fundamentais no esgarçado tecido social deste país profundo. No repertório, Incelenças do sertão de Minas Gerais e bendito medieval ganham roupagem luxuosa e camerística que une viola caipira, violoncelo e viola da gamba e se unem a canções ultrajovens como “A Rezadeira” do rapper Projota e “Ponto das Caboclas” de Camila Costa”, à um canto do povo Parakanã e um poema da etnia Macuxi, sambas de lá do recôncavo e daqui do Rio de Janeiro, compondo um disco surpreendente e contemporâneo, reverente e iconoclasta, que tece como num bordado o diálogo entre os imaginários urbano e rural do país. Unindo os vários Brasis e as duas pontas da vida, Áurea visita sua ancestralidade e ganha o terreiro do qual é rainha por herança e direito: o solo fértil das miscigenações afro-indígenas, caboclo-encantadas, orixás-pajé, recebendo de braços abertos o novo. O disco faz contato com a nossa essência formativa e ilumina o lugar da mulher como protagonista e guardiã dos saberes deste país diverso. Estabelecendo a possibilidade real de elevar a potência do seu alcance na cena nacional, para ser universal, Áurea fala da sua aldeia. 

“E nossa própria alma nunca se redimirá sem a voz sagrada de Áurea Martins”  Aldir Blanc  

Áurea Martins - foto ©Sergio Caddah
Áurea Martins – foto ©Sergio Caddah

RAÍZES, TRONCO E FOLHAS – Por Leonardo Lichote 

RAÍZES – ancestralidade     

Foi como cantora da noite que Áurea Martins construiu o refinamento curtido de sua voz. Vê-la encarnada agora, aos 82 anos, como sacerdotisa da , benzedeira, ialorixá, anciã , tia da comunidade, ao longo das 11 faixas deste álbum, é revelador porque nos apresenta uma face de sua alma até então oculta — para nós e para a própria Áurea.  

Seu canto em “Senhora das folhas” soa novo em folha por nos revelar com nitidez sua essência — o disco, dedicado ao universo amplo das rezadeiras — é atestado dos tempos, ventos e folhas que cabem na voz de Áurea.

ÁUREA nos conta que o universo das rezadeiras reside em sua memória na figura de dona Francelina, sua avó, senhora centenária que a rezava (“fui rezada por folha”) quando ela era em Campo Grande, bairro carioca onde nasceu e cresceu e para onde pretende voltar um dia. Lembra Justina, que sucedeu Vovó Francelina na função — e depois foi sucedida por Tia Zélia, que ensinou Áurea a ler e a escrever.  É esta matrilinearidade que atravessa seu canto em todo o álbum. 

ÁUREA evoca essas memórias na sala de sua casa, microcosmo deste universo amplo: Santo Antônio no altar; vaso com espada de São Jorge à porta; numa banqueta, apoiados lado a lado, os livros “Escravidão: volume II”, de Laurentino Gomes, e “Plantas medicinais”; e na parede retratos de Ghandi e Mokiti Okada, fundador da Igreja Messiânica, da qual ela é fiel.  

TRONCO – o projeto

“Senhora das Folhas” nasceu do desejo de Renata Grecco, idealizadora e diretora artística do álbum, de lançar luz sobre este recorte da teia invisível de saberes populares tradicionais femininos, que atravessa o Brasil.

—  É uma sororidade silenciosa — define.  — Uma teia de afetos e fazeres que, no Brasil profundo, nos lugares onde pouco chega o poder público, ajuda a manter coeso o frágil tecido social. São mulheres que se dedicam ao cuidar da comunidade, das plantas, do que nasce e precisa ser protegido, do que morre e precisa renascer. De qualquer um que chegue em dores às suas portas. Exercem seus dons de maneira gratuita e graciosa. São mulheres-matriz. Avós, guardiãs. Pontes tangíveis entre o visível e o invisível. Foi guiada por esse olhar que comecei a pesquisar e definir o repertório.

—  A parceria do NATURA MUSICAL foi fundamental para que realizássemos o projeto exatamente como idealizado, com todo o cuidado, liberdade e respeito que precisávamos. Somos muito gratos também à Biscoito Fino também, que foi casa e acolhimento para o disco, declina Renata. 

—  A música propõe debates pertinentes, que impactam positivamente na construção de um mundo melhor. Acreditamos que os projetos selecionados pelo edital Natura Musical podem contribuir para a construção de um futuro mais bonito, cada vez mais plural, inclusivo e sustentável, afirma Fernanda Paiva, Head of Global Cultural Branding.  

Lui Coimbra, que assina a produção e também a direção musical de “Senhora das folhas”,  construiu a sonoridade do álbum com uma ideia central em mente:

—  Parti da voz de Áurea, sempre. Mesmo ela nunca tendo cantado esse tipo de repertório, era esse o norte — conta o arranjador, que alcançou assim uma sonoridade refinada e enraizada como o canto de Áurea, usando de programações eletrônicas a viola da gamba, mas sem perder de vista a “essência das canções”. — Não queríamos um disco apenas de resgate, de registro de campo. Meu jeito de pensar música é esse, honrando e reverenciando a tradição, mas sem engessá-la, o ritual e o disco são lugares diferentes. 

FOLHAS – as faixas do disco

A vinheta “Incelença da chuva” com as vozes das Cantadeiras do Souza, instaura o universo de “Senhora das folhas”. O canto, registrado pelo pesquisador Sérgio Bairon, é um apelo à chuva feito por mulheres da cidade mineira de Jequitibá. Ele serve de introdução a  “O ramo”, canção de Socorro Lira que abre o disco, que fala do apanhado de folhas que as rezadeiras usam, imagem que perpassa todas as canções do álbum. “Salve, salve a fé no amor que cura tudo, o mal, a dor” professa a voz sábia de Áurea, apoiada sobre o chão leve de violoncelo e violas.

Em seguida, a “Prece do ó” louva Santo Antônio do Categeró, um santo negro, africano escravizado que, levado como mercadoria para a Itália, tornou-se monge e trabalhava em hospitais. Por suas curas milagrosas, foi santificado e ainda hoje é cultuado na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na Bahia. A música traz a marca das sincronicidades. Sua letra é uma prece tradicional recolhida por Cassiano Ricardo. Já sua melodia é dos compositores galegos do grupo Berroguetto mas não foi feita para os versos: quem descobriu a coincidência da métrica perfeita foi o pesquisador, violeiro e cantador mineiro Dércio Marques. 

O arranjo da canção tece uma delicadeza ibérico-hindu nas mãos de Lui (violoncelo, violões e harmônio indiano); Marcos Suzano (derbak e samplers) e Eduardo Neves (flautim). 

“A rezadeira”, originalmente um rap de Projota, é representante ultra contemporânea do tema, um poema rítmico sobre renascimento que se passa na periferia paulistana. No arranjo de Lui, ganhou belas linhas melódicas, mais definidas, e profundidades outras — na citação a “Relampiano” (de Moska e Lenine), no clarinete, violinos e guitarras. O  dueto de Moyseis Marques e Áurea realça a beleza trágica da canção ao contrapor a perspectiva maternal à voz jovem que se acolhe à sombra dessa . E é curioso perceber na canção a amplitude do tema das rezadeiras: sua personagem-título é evangélica, como aponta o verso “Cantando alto e claro aquele bonito louvor” .

O encontro de “Salve as folhas” — de Gerônimo e Ildázio Marques, no disco cantada por André Gabeh — com “Sem folhas não tem orixás” cantada por Áurea, cruza Ossain com samplers, guitarras e bandola venezuelana. Ao ouvir a gravação, Áurea comenta, com sua risada de menina: “Adoro um roquenrol”. 

Em paralelo, “Ponto das caboclas”, de Camila Costa, celebra as mulheres das matas em roupagem afropop, nas palavras de Lui. Iaras, Jussaras, Jupiras e Jandiras rodopiam ao batidão do pandeiro magnético de Marcos Suzano eletrizadas pelas guitarras e Fred Ferreira. Experiência mais radical do disco no uso de timbres e ritmo eletrônico, o arranjo não busca propor um choque entre futuro e ancestralidade. Ao invés disso, ergue um tempo circular, espiral, mântrico, no qual Iracema e Jurema são tão jovens quanto o som que as embalam.     

Em “Folha miúda”, de Roque Ferreira, Áurea se reconhece como a menina do samburá cheio de estrelas, nos versos em primeira pessoa que carregam uma síntese possível de “Senhora das folhas” :  “Sou eu! Eu com meu samburá cheio de estrelas, a mão de afagar pra lhe benzer” num medley rural buliçoso materializado com desenvoltura na garganta privilegiada da cantora.  

No mesmo diapasão se afinam os violões sedosos de Lui e os vocalises cristalinos de Gabeh em  “Araruna” (Nahiri Asurini e Marlui Miranda) um canto da etnia Parakanã do Pará. Sobre ela, Áurea declama o poema “Vô Madeira” da Julie Dorrico, pertencente ao povo Macuxi — os versos carregam a compreensão feminina, que atravessa o disco, de Terra e como um só e reverencia o saber ancestral dos povos originários. O poema publicado em 2020, soa premonitório ao mencionar as dragas que matam rio e homem — uma descrição quase literal do acidente que vitimou levou dois meninos yanomami no Rio Parima, em Roraima, em outubro de 2021.

“Senhora Santana”, canção de origem medieval em louvor à Santa Ana, a avó de Jesus, segue no terreno (e nas águas) do sagrado e da reverência `às mães de nossas mães, o arquétipo da velha, depositária dos saberes, que perpassa todo o conceito do disco e deságua nas vozes das Cantadeiras do Souza em uma “Incelença de Nossa Senhora”. 

Em outra das belas convergências de “Senhora das folhas”, Áurea conta que aos dez anos teve uma visão da santa a quem agora dedica sua voz. A atmosfera do arranjo é interiorana e etérea, desenhada no diálogo de violoncelo e moringa, nos arpejos de viola e violões, nos comentários sutis da guitarra.

“Me curar de mim”, de Flaira Ferro, é uma reza de autocura. É impressionante a dimensão que ganham os versos de Flaira, escritos quando a compositora tinha apenas 23 anos, quando saem com tanta franqueza da voz de uma mulher de 82: “Sou má, sou mentirosa/ Vaidosa e invejosa/ Sou mesquinha, grão de areia/ Boba e preconceituosa/ (…)” Um canto ao mesmo tempo seco e exuberante, como o arranjo assinado por Fred Ferreira, que toca todos os instrumentos (viola caipira, viola da gamba, guitarra). Os vocais, que ecoam os Tincoãs, sacralizam e humanizam a canção.   

A voz de Vó  Joaquina, rezadeira de Serra Talhada no Sertão de Pernambuco, avó do compositor PC Silva, introduz “Na paz de Deus”, samba nascido nas margens do Rio — e dos rios que desaguam na cidade. Alfredo Del Penho (arranjo, violão de 7 cordas e violão), Thiago da Serrinha (cavaquinho e percussão) e Paulino Dias (tambores e percussão) garantem o sotaque ao lado do coro de jovens sambistas da geração lapiana que ecoam a voz de Áurea e a reverenciam como matriarca e madrinha, súditos cientes de sua realeza: Alice Passos, Mariana Baltar, Eliza Addor, Vidal Assis, Pedro Miranda e João Cavalcanti transmutam espinhos em flores, clareiam as trevas como querem Arlindo Cruz, Sombrinha e Beto Sem Braço, autores da canção carioquíssima.

O mesmo time avança em “Banho de manjericão”, sucesso na voz de Clara Nunes,  (faixa-bônus), trazendo o canto de Áurea listando pequenas mandingas tão íntimas das casas populares brasileiras, uma ode `a beleza do sincretismo que nos aproxima de todos e sintetizam o “ecumenismo popular” que atravessa o álbum. “Ecumenismo” que, como na sala de Áurea, aproxima Gandhi, Santo Antônio e espadas de São Jorge: “Em casa um galho de arruda que corta/ Um copo d’água no canto da porta/ A vela acesa e uma pimenteira no portão”. 

Leia também: Áurea Martins – o diamante negro da música brasileira

É ÁUREA distribuindo bênçãos com a autoridade de quem é senhora dos tempos,  dos ventos.  E das folhas.

NATURA MUSICAL, Aquarela Carioca e Biscoito Fino apresentam ÁUREA MARTINS em SENHORA DAS FOLHAS

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Capa do CD “Senhora das Folhas”. Áurea Martins. Selo Biscoito Fino (2022) / foto: Sérgio Caddah / Design: Rafael Grecco

Disco “Senhora das Folhas” •  Áurea Martins •  CD • Selo Biscoito Fino • 2022

 
Músicas/faixas:
1.  Incelença da chuva * / O ramo (Socorro Lira)
2. Prece do Ó*/ Ausência (Anxo Lois Garcia Pintos, Dércio Marques, Guilherme Fernandez Garcia, Isaac Palacin Losada, José Enrique Comesaña Pedreira, Santiago Cribeiro Galego e Xaquin Lopez Fariña)
3. A rezadeira (Projota) / Citação: Relampiano (Lenine e Paulinho Moska) | Participação: Moyseis Marques
4. Sem folhas não tem orixás / Citação: Salve as folhas (Gerônimo e Ildazio Marques)
5. Folha miúda / Menino do Samburá (Roque Ferreira)
6. Ponto das caboclas (Camila Costa)
7. Poema: Vô Madeira (Julie Dorrico) / Araruna (Marlui Miranda e Nahiri Asurini) | Participação: André Gabeh
8. Senhora Santana – Bendito de origem medieval (Domínio público) / Vinheta: Incelença de Nossa Senhora (Domínio público)
9. Me curar de mim (Flaira Ferro)
10. Na paz de Deus (Arlindo Cruz, Beto Sem Braço e Sombrinha) | Participação: Rezadeira Vó Joaquina
11. Banho de manjericão (João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro) – Faixa Bônus
———-
*“Incelença da chuva” – domínio público. canção recolhida e registrada pelo pesquisador Sérgio Bairon {um apelo à chuva feito por mulheres da cidade mineira de Jequitibá}).
**“Prece do ó” – A letra é uma prece tradicional recolhida por Cassiano Ricardo / melodia é dos compositores galegos do grupo Berroguetto mas não foi feita para os versos: quem descobriu a coincidência da métrica perfeita foi o pesquisador, violeiro e cantador mineiro Dércio Marques.
– Ficha técnica –
Direção e produção musical: Lui Coimbra
Idealização e direção artística: Renata Grecco
Arranjos: Lui Coimbra; Fred Ferreira (fx. 9); Alfredo Del Penho (fx. 10)
Músicos: Áurea Martins (voz); Lui Coimbra (violoncelo, violino, violões e harmônio indiano); Marcos Suzano (derbak e samplers); Eduardo Neves (flauta, flautim e clarinete); Marcos Suzano (pandeiro); Fred Ferreira (viola caipira, viola da gamba e guitarras); Alfredo Del Penho (violão de 7 cordas e violão); Thiago da Serrinha (cavaquinho e percussão); Paulino Dias (tambores e percussão) | Participação especial (voz): Moyseis Marques (fx. 3); André Gabeh (fx. 7) e Rezadeira Vó Joaquina (fx. 10) | Vozes/ coro: Cantadeiras do Souza (fx. 1 – ‘Incelença da chuva’; fx. 8 – vinheta: ‘Incelença de Nossa Senhora’) | Vozes/coro: Alice Passos, Mariana Baltar, Eliza Addor, Vidal Assis, Pedro Miranda e João Cavalcanti (fx. 10 e fx. 11)
Engenheiro de som: João Ferraz
Coordenação A and R: Rafael Freire
Mixagem: Kuaré Estúdio e Lui Coimbra
Masterização: Lucas Ariel
Foto (capa): Sérgio Caddah
Design: Rafael Grecco
Figurinos das fotos (encarte): Ronaldo Fraga
Fotos encarte do CD: Dan Coelho
: Miriam Roia e Vivi Drumond
Relações institucionais: Cibele Lopes
Fonoaudióloga: Luciana Oliveira/Lume Voz
Realização: Aquarela Carioca Produção de Arte e Biscoito Fino
Patrocínio: Natura Musical
Selo: Biscoito Fino
Ano: 2022 (lançamento 8/3/2022)
# Gravado no Estúdio Lontra (Rio de Janeiro) no segundo semestre de 2021
*** Ouça aqui Senhora das Folhas – disponível nos aplicativos de música / e Youtube tema (acessado em 8.3.2022)
 
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Áurea Martins – foto ©Dan Coelho
 
Leia também: Áurea Martins louva rezadeiras e as raízes do Brasil em novo álbum
 
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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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