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Auto indulto preventivo: o Messias pediu papa em bar

Auto indulto preventivo: o Messias pediu papa em bar

Por José Bessa Freire 

 

“Isso não é hora de pedir papa em bar”. (Messias Holanda. Papa de Maizena. 1979)   
São dois Messias, ambos lembrados neste carnaval nos desfiles das escolas de samba. Um dele é o Messias do Bem, já falecido, forrozeiro do sertão do Cariri, no Ceará. O outro é o Messias do Mal, vivo, vivíssimo, que concedeu indulto ao deputado federal (depufede) Daniel Silveira (PTB-RJ – vixe vixe), condenado a 8 anos e 9 meses de prisão pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O primeiro Messias viajou à França na minha bagagem, quando lá fui cursar o doutorado. Levei o LP de vinil “Um xodó de mulher”, onde está gravada “Papa de Maizena”, que cantei de madrugada, com minha amiga Marilza Foucher, no dia em que Mitterrand foi eleito presidente da França.
De noite, Paris era uma festa, as ruas ébrias de gente comemoravam a vitória. Na praça Contrescarpe, entramos no Le Bistrot de la Place e, de pura curtição, pedimos um mingau de aveia – o gruau francês, que não constava no menu. O garçom nos mandou ao desvio:
– Ça vas pas? Vous êtes bourrés.
Fazia sentido. Marilza e eu descemos, então, a rua Mouffetard, cantando em alto e bom som: “Isso não é hora de pedir papa em bar”. Essa mesma resposta foi dada à Mariana pelo seu Lucena, dono do bar em Missão Velha (CE), município de 30 mil habitantes, quando ela passou entre as mesas de cachaceiros, à meia noite, acercou-se ao balcão e pediu uma papinha.
Indulto ou insulto?
Eis o que eu queria dizer: o indulto concedido pelo Messias (PL – vixe, se gritar pega Centrão), equivale a pedir papa em bar, por ser extemporâneo, deslocado no tempo e no espaço. Talvez, o Coiso, imbrochável, estivesse sob o efeito do Viagra e com a barriga cheia de picanha, camarão e leite condensado comprado pelas Forças Armadas, que torraram assim o dinheiro do contribuinte destinado a combater o coronavírus. O certo é que, indulto ou insulto, ele pediu papa em bar.
Afinal, quais os crimes cometidos pelo depufede marombado Daniel Silveira, ex-policial militar, que no passado pegou 26 dias de prisão e 54 de detenção, antes de ser expulso da corporação? Por que perdoá-lo? Quais as razões alegadas para o perdão concedido pelo ex-capitão do Exército Brasileiro, um dia indiciado, ele também, como réu em processo na Justiça Militar por transgredir o regulamento disciplinar?
O depufede Daniel sugeriu que as Forças Armadas fechassem o Supremo, incitou os fanáticos bolsominions a surrar os magistrados, intimidando-os e desmoralizando a instituição. Usou como escudo para sua prática criminosa a imunidade parlamentar. O Supremo o condenou, então, à prisão pela prática de dois crimes: um contra o Estado democrático de direito e o outro por coação no curso do processo, além de perda de mandato e suspensão dos direitos políticos.
Dez ministros foram a favor da prisão, até o “terrivelmente evangélico” André Mendonça indicado recentemente por Bolsonaro e a ele alinhado, que justificou o seu voto: como cristão, não podia endossar incitamento a atos de violência. A igualmente insuspeita Procuradoria Geral da República, através da sua vice procuradora Lindora Araújo, sempre a favor do Coiso, agora também classificou de “intolerável” e “inconcebível” a afronta ao STF.
O único voto contrário foi do submisso adulador Kássio Nunes Marques, o mesmo que manteve a condenação da mulher presa em flagrante ao furtar em Boa Esperança (MG) 18 barras de chocolate e 89 caixinhas de chicletes avaliados em R$50, para a venda no sinal de trânsito. 
O Messias do Mal não indultou a vendedora ambulante, que sofre com o desemprego, a alta de preços da gasolina e dos gêneros alimentícios. Mas concedeu indulto individual ao depufede, alegando “legítima comoção da sociedade” (que só ele viu) e a pretensa “liberdade de expressão” do parlamentar.
Auto indulto preventivo
Para a ministra Carmen Lúcia, porém, “a liberdade de expressão não pode ser utilizada como instrumento de crime”. Imunidade não é impunidade. O cristianismo, invocado pelo ministro “terrivelmente evangélico”, nos ensina que quem deve perdoar é o ofendido e não o cúmplice do ofensor. E para o perdão ser concedido, deve haver arrependimento do criminoso, com o firme propósito de emenda, de não repetir o crime, o que não é o caso.
Nem o delinquente indultado e nem quem o indultou demonstraram qualquer contrição, remorso ou pesar. Ao contrário. Ainda recentemente, há duas semanas, na “comemoração” do golpe militar de 1964, o Coiso mandou os ministros do STF calarem a boca e botarem a toga, questionando o sistema eleitoral num discurso golpista contra a democracia.
O indulto foi um “gol olímpico do meu presidente” – comemorou o depufede Marco Feliciano (PL-SP vixe). Não disse que o atacante estava impedido, o que será confirmado pelo VAR. Segundo o Correio Brasiliense, o homofóbico pastor Feliciano “repassa verbas públicas para funcionários ligados a seus negócios particulares” e já respondeu ação por estelionato no STF. Seu apoio ao indulto, portanto, é uma forma de legislar em causa própria: assim, é criado um precedente para ser indultado, se for condenado.
No caso do ex-policial Daniel Silveira, o crime tem um mandante: o Coiso. O depufede foi cúmplice e seguidor na mobilização de atos golpistas contra o STF em setembro de 2021, com os canais de TV do mundo inteiro manifestando o horror da selvageria anti-democrática. Trata-se, portanto, de um auto indulto preventivo do Trumpinho de igarapé, mas também – segundo a Rede Sustentabilidade – de um claro incentivo para atacar instituições “com a certeza de que os envolvidos no cenário de delinquência criminosa serão indultados pelo presidente da República”.
O crime compensa? Não é o que registra uma das instituições mais respeitáveis do Brasil: o carnaval.
País desnudado
O carnaval faz uma radiografia do Brasil. O desfile da Gaviões da Fiel no Anhembi, à meia-noite do sábado e madrugada deste domingo, traz um carro alegórico com a figura de um chefe de Estado, que chegou a ser definido num primeiro momento como “um Bolsonaro gay”. Neandro Ferreira, seu intérprete, negou a citação ao presidente, esclarecendo que o personagem pode ser qualquer governante da história do país. Não é necessariamente o Coiso, mas um fascista que indulta seus cúmplices fascistas.
Entenda quem quiser. A “Gaviões” canta seu samba-enredo: “Meu gavião, chegou o dia da revolução, onde a democracia desse meu Brasil, faça o amor cantar mais alto que o fuzil”. Um trecho diz que “a cega justiça enxerga o negro como réu”.  O autor do enredo da escola, Júlio Poloni, declarou que vai trazer para o desfile críticas às políticas governamentais: liberação de armas, injustiça social, política de saúde na pandemia, a falta de oxigênios nos hospitais, desemprego, ataques à democracia, racismo, intolerância religiosa.
O Brasil, que aqui aparece nuzinho, jamais será entendido por quem desconhece o carnaval – cada ano retratando o país, como uma crônica de seus sofrimentos, de sua história, de seus problemas. Outras escolas do Rio e São Paulo também abordarão temas relevantes.
– “Foi-se o açoite, a chibata sucumbiu, mas você não reconhece o que o negro construiu” – canta a Beija Flor.
O samba da Salgueiro lembra que “hoje, cativeiro é favela, de herdeiros sentinelas, da bala que marca, feito chibata”. Para a Portela, “ser livre é herança de preto, coragem no medo”. A luta contra o racismo está ainda no enredo da Viradouro, que evoca as figuras dos orixás, especialmente as entidades de cura.
Para criar a “legítima comoção da sociedade”, já há um chamamento bolsonarista para manifestação no dia 1º de maio na av. Paulista com concentração a 3 quilômetros do ato convocado pelas centrais sindicais. Esperamos que o STF diga com toda firmeza que isso não é hora de pedir papa em bar.

José Bessa Freire – Escritor. Cronista do Blog TaQuiPraTi. Imagem de Capa: Carnavalesco.


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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