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BATISMO DE FOGO NA FLORESTA

BATISMO DE FOGO NA FLORESTA

Batismo de fogo na Floresta (com muita água!)

Relata a primeira imersão do engenheiro agrônomo e amigo de Chico Mendes, o hoje advogado Gomercindo Rodrigues,  pela floresta amazônica na região do Vale do Acre

Por Gomercindo Rodrigues 

Desde a tarde do dia anterior eu já estava preparado para enfrentar a viagem de barco pelo rio Xapuri até o seringal São Pedro, sete horas de viagem rio acima. Minha expectativa era cada vez maior; afinal de contas, pela primeira vez entraria num seringal, uma experiência que eu julgava deveras interessante.

Mas não era somente isso. Entraríamos para aplicar um questionário que poderia levar a um diagnóstico de realidade para sabermos por que mesmo as experiências de cooperativa não tinham dado certo nas áreas de seringal, comparando-as, ainda, com áreas onde não havia nenhuma experiência de tal organização.

O diagnóstico tentaria, também, de acordo com o que discutíramos com a diretoria do Sindicato, apresentar um “raio X” da situação dos seringueiros nas suas áreas. Por isso o questionário era bem aberto e tinha um total de dez páginas além de um “manual de preenchimento” onde constavam, inclusive, termos regionais e que faziam parte da experiência acumulada pelos companheiros Manoel Estébio e Armando, do Projeto Seringueiro, que eu acompanhava.

Eu tivera, inclusive, que fazer um “curso intensivo” com os dois companheiros para poder entender de forma geral a realidade local para não prejudicar o trabalho.

O questionário que levávamos procurava descer a detalhes da vida do seringueiro, desde, por exemplo, que estação de rádio ouvia, qual o horário preferido, até que tipos de remédios caseiros conheciam e suas aplicações, passando pelo tipo de cultivo que realizavam e suas técnicas. Enfim, o questionário procurava ser, realmente, um diagnóstico da realidade.

Era manhã do dia 12 de fevereiro de 1986, em pleno “inverno” amazônico – que, como já expliquei quando falei da “rapidez” do jornal O Rio Branco, é o período chuvoso na região.

Eu acordara cedo e cheio de expectativas, mas a viagem se atrasou. Saímos só por volta das nove horas da manhã, num barco pilotado pelo “Negão”. Eu nunca tinha viajado de barco e a água não é o meu elemento, portanto, eu não me sentia muito seguro na pequena embarcação.

Cerca de uma hora e meia mais tarde, subindo o rio cheio de curvas, mas que não apresentava muitos problemas de navegação, pois estava bastante cheio, começamos a passar pela fazenda que pertencia ao Grupo Bordon, um dos que mais tinha desmatado nos últimos anos no município de Xapuri, e um dos maiores inimigos dos seringueiros da região.

Por três horas, vi os barrancos desmatados, especialmente na margem esquerda do rio, à nossa direita, portanto, na área do que fora antes o Seringal Nazaré, que somente não foi todo destruído em função da luta dos seringueiros, que realizaram inúmeros “empates” na região.

O desmatamento que eu via, criminoso, diga-se de passagem, havia removido totalmente a mata ciliar e, com isso, havia grandes erosões na margem do rio. A pastagem que se perdia de vista estava, já naquela época, tomada por ervas daninhas. Gado, que era usado para justificar os desmatamentos, não se via nenhum.

Pouco mais à frente estava o desmatamento do Seringal Tupá, mais ou menos nas mesmas condições, e, um pouco mais adiante, o campo da fazenda Vista Alegre, que praticamente exterminou o seringal Tupinambá, parte do Lua Cheia e todo o Vista Alegre. Nem a exigência legal de preservação, então fixada em cinquenta por cento da área, fora respeitada.

O almoço foi queijo, doce, bolacha (biscoito água e sal) e banana. Depois, comecei o meu aprendizado da técnica de como pegar água do rio, para beber, com o barco em movimento. Nas primeiras vezes eu só conseguia me molhar quando tentava mergulhar a caneca na água. Ensinaram-me, então, que deve se fazer um movimento rápido, com a caneca bem segura, batendo com força na água, de forma que ultrapasse a superfície.

Às quatro horas da tarde, eu já estava todo dolorido, pois o pequeno barco não oferecia muitas opções para mudar de posição, ficando sentado quase o tempo todo, e bastante queimado do sol intenso que tomáramos durante as sete horas dentro da embarcação, quando os companheiros que conheciam a região informaram que estávamos chegando à “margem do São Pedro”.

Aportamos e desembarcamos com nossas mochilas. Minha inexperiência fez com que eu carregasse uma mochila bastante pesada, com várias mudas de roupa, rede e coberta, além dos questionários. Isso iria custar-me caro e trazer-me outro bom ensinamento: quando se anda na floresta, especialmente na floresta amazônica, quanto menor o peso da bagagem que se carrega, e que esta seja impermeável, melhor pra gente

Depois de chegarmos e cumprimentarmos o dono da casa, Jaci, seringueiro antigo por aquela área e que se tornara, inclusive, pequeno “marreteiro”[1], fomos tomar um bom banho e armar a rede. Aí, novamente toda uma técnica a ser aprendida. Eu não só não sabia dar o nó na corda, como não sabia dormir em rede.

Duas lições num só momento. Primeiro ensinaram-me como se amarrava a rede. Claro que não foi da primeira vez que consegui amarrá-la com segurança. Nos dias seguintes ainda pedia para o companheiro que andava como guia que me ajudasse nessa tarefa, que me parecia tão difícil quanto dar um nó de gravata, o que só aprendi anos mais tarde, por absoluta necessidade, quando estava para me formar em Direito.

Antes de dormir, “enfrentamos” um farto jantar, que incluía carne de porco do mato “torrada” (frita) e guariba (uma espécie de macaco) no leite de castanha. Diga-se, de passagem, que este era o prato que o Chico Mendes seringueiro mais gostava. Realmente é uma delícia.

E para os “ecologistas” que possam ficar “barbarizados” com essa informação só uma “justificativa”: não é o que o seringueiro caça para comer que extingue as espécies. É a caça predatória realizada, muitas vezes, por pessoas que moram nas cidades e que invadem as áreas de seringal, usando cachorros treinados, que dizima as espécies animais.

“Marreteiro” é um comerciante que traz mercadorias da cidade para trocá-las com os seringueiros por seus produtos. Pode ter um ponto fixo, como o caso do Jaci, à época, como pode ter um barco (chamado de “batelão” na região), com o qual viaja ao longo dos rios comercializando mercadorias e gêneros indispensáveis aos seringueiros e destes comprando a produção.

floresta amazonica

Gomercindo Rodrigues

Gomercindo Rodrigues –Advogado e amigo de Chico Mendes. Este texto faz parte do E-Book “Caminhando na Floresta”, disponível na Loja Solidária da Xapuri Socioambiental. O livro relata a experiência do autor com luta dos seringueiros do Acre nos tempos de Chico Mendes. Imperdível.

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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