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Bruxa resiste às neoinquisições

Bruxa resiste às neoinquisições

 Por: Fátima Guedes 

O universo não é só o mundo que a nossa cultura acostumou-se a ver, mas vários mundos superpostos e paralelos (FRÓES, 1986, p. 95)

Os saberes popular/tradicionais de saúde se enquadram em um universo/diverso de expressividades culturais, às vezes, indecifráveis até mesmo entre os códigos da medicina acadêmica. Apesar do modelo biomédico, em sua base constitutiva mais remota, apoiar-se em heranças e contribuições da sabedoria ancestral, há uma linha divisória separando dois mundos aparentemente distintos, e ao mesmo tempo únicos – a saúde, enquanto direito universal do Planeta e de todos os seres vivos indistintamente.

Puxação Espiritual encontra-se entre outros tantos desafios similares do saber popular/tradicional, quando o diverso, ou o dito “irracional” se faz existir, dentre os padrões da modernidade, urgente e necessário na construção da saúde coletiva, universal. Sobre a questão, Jong Suk Yum, um dos protagonistas da Probiótica, traz para o diálogo o antagonismo racional/irracional: O racional se transforma em irracional e o irracional em racional. A heresia de ontem é a ortodoxia de hoje e o passado de amanhã. Se um não existir, o outro se desvaloriza. Para que não haja essa desvalorização, o racional tende para o irracional, sendo essa coexistência inerente ao próprio desenvolvimento de todas as coisas, como uma lei imutável da natureza. (ABC da Saúde – 1, 1988, p. 60)

Diga-se ainda da importância, na atualidade, do resgate ou da revitalização desses saberes – antes, particularidade das comunidades rurais tradicionais, das classes sociais empobrecidas e marginalizadas; na atualidade, com o processo agressivo de urbanização, mecanização da terra e de seus elementos, de industrialização dos alimentos e de interferências preconceituosas sobre memórias bioculturais, cresce assustadoramente o adoecimento em massa; portanto, a tendência das práticas naturais de cuidados, embora silenciadas, é atingir também em nível de assistência até mesmo classes sociais defensoras do modelo biomédico, haja vista a vulnerabilidade em que se encontra o mundo.

Provavelmente, a curiosidade inquieta os leitores sobre a conceituação de mais um código de nossa linguística caboca – Puxação Espiritual… O que é? A explicação vem de Parintins, no Amazonas, de Lia Nazaré Ribeiro de Oliveira, conhecida como Lia Benzedeira, 56 anos, residente na Rua São Sebastião, 3311, Bairro Paulo Correa, zona sul da cidade.

Lia Nazaré Ribeiro de Oliveira,
conhecida como Lia Benzedeira (Foto Arquivo pessoal)

Antes de adentrarmos no universo da Puxação Espiritual, Dona Lia compartilha um pouco da própria história:

Nasci de Dona Maria Guiomar Alexandrino de Souza e de Sêo Joaquim de Castro Ribeiro. Sou a Lia Regina, essa Puxadora Espiritual. Deles dois começa minha história. Pelo que mamãe me falou, durante os nove meses em que me abrigou em seu ventre, sentia que eu era diferente das duas primeiras gestações dela: às vezes, eu me aquietava por várias horas como se eu não existisse; outras vezes, cutucava a barriga dela como se eu quisesse dizer alguma coisa. Assim foi, até o dia em que nasci pra este mundo, 30 de maio de 1963.

Minha infância, como a maioria de outras meninas do meu tempo, não foi muito boa. Dificuldades financeiras, conflitos familiares… A adolescência também cheia de tropeços: eu quem cuidava da casa, da lavação da roupa, dos meus irmãos menores… Tinha que dar conta de tudo… As obrigações e as responsabilidades da casa caíam em mim, sem contar que ainda tinha que me defender sozinha dos assédios do padrasto. Nessas dificuldades todas, ainda consegui estudar até a sétima série, lá em Santarém, no Pará. Dos doze filhos que pari, quatro morreram ainda crianças. Os outros já são adultos e cuidam da vida deles como podem.

Uma breve pausa para Dona Lia equilibrar as emoções e prosseguirmos no diálogo que envolve a necessidade de se quebrar paradigmas, e clama também por visibilidade, por reconhecimento, levando-se em consideração o volume de demandas sociais inerentes à sadia qualidade de vida. Mundos superpostos e paralelos se intercruzam no processo de descobertas de Caminhos, ao mesmo tempo, de autodescobertas… Ela continua:

Comecei desenvolver meu dom espiritual desde pequena. Tinha uns sete anos por aí ou até menos… Não lembro bem. Tudo começou através do meu cachorrinho, o Bob. Ele adoeceu muito, e nós não tínhamos dinheiro pra pagar veterinário. Aí, sentei junto dele e comecei a me concentrar nele, querendo muito sua saúde. Uma força muito grande veio de dentro de mim… Era como se me orientasse sobre o que fazer por ele. Nisso, conseguia ver as plantas que podiam curar o problema dele. Essa força interior me fez também benzer ele com as plantas do quintal e fazer puxação em todo o corpo dele com andiroba*. No outro dia, ele amanheceu mais esperto um pouco. Repeti tudo o que já tinha feito antes, mas sempre concentrada nessa força que vinha de dentro de mim. Não sei explicar bem; só sei dizer que aquela coisa me guiava e me dizia como fazer e o que fazer… Guardei aquilo só pra mim.

O tempo foi passando, fui me entrosando com as pessoas e com quem benzia e fazia remédios caseiros… Uma coisa assim incrível: parece que as pessoas enxergavam em mim alguma coisa ligada aos cuidados de saúde; se aproximavam de mim, contavam suas dores e me pediam pra benzer elas. Eu ficava meio acanhada; era uma criança ainda, mas, se pediam, não podia dizer não. Aí, me concentrava no problema da pessoa que me pedia ajuda; aquela força interior vinha e me mostrava o jeito e o raminho da planta que servia para benzer aquele tipo de problema. Às vezes, quando aquela força vinha, parece que eu saia de mim, até desmaiava… Às vezes, minha mãe me batia tanto que eu ficava lá jogada. Ela e a minha família não entendiam que aquilo não era eu que queria, diziam que era fingimento… Os vizinhos que iam lá me juntar. Uma vez, uma vizinha me acudiu e disse pra minha mãe que os meus desmaios não eram fingimentos… “Essa menina tem algum problema…” E ela nem me conhecia. Quando eu estava sozinha ficava pensando, pensando naquilo… Lembro que, na ocasião dos desmaios, tinha visões; não dizia nada pra não me chamarem de louca. E eu sei que não estava louca. Hoje entendo que era a mediunidade que estava se manifestando e a gente não sabia, ninguém sabia.

Em diálogos com a Obra de Neide Regina Friedrich, Entre xales, mulheres, cachimbos e xamãs, (2016), comprovamos a necessidade das inter-relações culturais, na construção do Bem-Viver universal. A Doutora em Educação esclarece: “Em 1986, na Declaração de Veneza, sob a tutela da UNESCO, fundamentou-se que a ciência atingira seus confins, e sua possível sobrevivência depende das interações com as tradições e com a filosofia. Dessa forma, teríamos um saber mais próximo da realidade, ao interagirem e interligarem a racionalidade lógica da ciência, a racionalidade intuitiva da filosofia e a racionalidade inspiracional das tradições”. Tal instigação abrem possibilidades para o envaginamento e ao mesmo tempo para o partejamento das inspirações semeadas por nossas ancestralidades. Lia Benzedeira reafirma…

Minha avó, Dona Sancha Tavares de Souza, quando via eu desmaiar, me acudia e dizia que eu tinha dom pra curar as pessoas através das plantas e das rezas. Ela também entendia desse tipo de cuidado.  O apoio dela me deixava feliz, mas, confesso que tudo isso me deixava muito confusa. Eu era apenas uma criança já meio crescida convivendo com esses mistérios… Não entendia nada daquilo. E foi por meio da Vovó Sancha que descobri de verdade minha missão neste mundo: cuidar da saúde das pessoas através da benzeção, da puxação e das plantas. Lembro como se fosse hoje: o quintal da Vovó era uma lindeza; ela cuidava da saúde dela e das pessoas que procuravam com as plantas do quintal. Dali também ela tirava as verduras, as frutas e indicava as plantas certas pra cada situação. Por exemplo, pra anemia ela preparava garrafada de urucu*; a gente tomava e se sentia muito bem. Outra planta muito usada por ela era o cariru*, que, no quintal, era mato. Ela usava também o cragiru*, também a raiz do açaí; tudo pra curar fraqueza e anemia.

No meio da conversa, lembra-se de curas importantes através das plantas… Uma vez, o meu filho teve hepatite, lá em Manaus. Ela mandou daqui de Parintins um monte de casca de pau onde tinha também raiz do açaí. Passei a dar pra ele, conforme ela me orientava e ele ficou bom só com esse tratamento. Então, a Vovó Sancha foi a maior e melhor professora que tive nessa área; também a melhor doutora que conheci. Com ela, fui pegando o jeito de cuidar dos outros e até hoje estou cuidando. Quem dera se o sistema de saúde de Parintins entendesse a importância de tudo isso pra melhorar a vida das pessoas!…

Contrastando às vulnerabilidades em que se encontra o mundo e as limitações da “racionalidade lógica da ciência” no enfrentamento ao volume de demandas, as tradições e saberes incorporados no universo místico das práticas de cuidados de Dona Lia desafiam preconceitos e resistem no tempo… A Benzedeira traz esclarecimentos sobre a Mãe do corpo. No saber da Benzedeiraintercruza-se o ponto ‘chi’, do Taoísmo, para cuja espiritualidade, “essa área era o forno onde se fundiam os metais. Semelhantemente, acende-se nossa energia interna quando nos harmonizamos com o ‘elixir interno’”. (Taoísmo no dia a dia, 2009)

Sem conseguir fugir de mim mesma, fui crescendo, tentando me encontrar, saber quem eu era de verdade nesta vida. Foi aí que procurei Dona Bazinha, finada já. A dona Bazinha era uma Mãe de Terreiro; era muito falada aqui em Parintins. Foi ela que me ajudou nessa orientação sobre mim e do meu Eu. Quem verdadeiramente eu sou… Eu trabalhei muito com ela; eu era a Filha de Santo dela – a pessoa iniciada nos tratamentos espirituais. Estava sempre ao lado dela pra cantar, dançar e fazer as obrigações espirituais do Terreiro. Aprendi muito com Dona Bazinha. Hoje, sou Mãe de Santo. Pra quem não sabe, Mãe de Santo é aquela mulher que avançou nos saberes e tratamentos espirituais através dos diálogos com seus Guias. A Mãe de Santo tem o dever de cuidar dos outros que precisam de ajuda, das plantas, da terra, dos bichos, das águas… A Mãe de Santo precisa trabalhar muito sua amorosidade para com as pessoas, aliás, com tudo o que tem vida nesta terra. Tudo o que tem vida merece respeito. São os Guias que dizem.

Traz esclarecimentos sobre os caminhos de sua “iniciação”… A iniciação começa através das danças, com os cantos, com o tambor, rituais assim… São os pontos falados… Tenho vários guias espirituais: Sêo Flecheiro, Caboca Mariana, a Cigana, Joãozinho e Mariazinha, Sêo Roxo, Xangô… São vários Mestres que a gente tem: mestres das águas, da mata… Só trabalho com a linha branca que é o caminho do bem; não faço mal a ninguém; só trabalho para ajudar as pessoas a melhorarem suas relações com a vida, com o mundo… Mariana é uma Mestra muito amável; só faz o bem, ela ajuda através da docilidade. Agora não estou trabalhando mais como Mãe de Santo. Meus Guias estão me levando para outros caminhos que me ajudam ser melhor do que eu era em todos os sentidos. Agora só trabalho com a benzeção, com a puxação espiritual, com os banhos…

Dona Lia desnuda o universo da Puxação Espiritual… Meus Guias me orientaram sobre a importância, hoje em dia, da Puxação Espiritual. A gente vê que o mundo tá doente. Todo dia, as rádios, os jornais falam de gente adoecendo grave, se matando… É muito triste isso. Os desgastes do corpo e emocionais estão cada vez maiores; as pessoas estão perdendo as esperanças e, aos poucos, perdem a delicadeza, a serenidade, a paz interior e tudo isso leva para muitas doenças, até mesmo pra suicídio.  A Puxação Espiritual é um jeito de fazer massagem com as rezas… Esse nome Puxação vem dos antigos. A gente puxa o corpo e joga pra fora as energias que estão fazendo mal. Isso ajuda muito a pessoa se encontrar com ela mesma e buscar a cura interior. A Puxação Espiritual é pura dedicação com a pessoa que precisa…

Lia Benzedeira: a troca de saberes (Arquivo pessoal)

E por falar em puxação, um saber puxa outro…  Através da puxação e da reza a gente conversa com a Mãe do Corpo – aquela parte que fica três dedos embaixo do umbigo.  É aí que a Mãe do Corpo mora. Quando o corpo fica fraco, mal alimentado ou trabalha muito, aquela região contrai e bate como um coração. É a palpitação falada. A Mãe do Corpo é quem liga nosso corpo ao de nossa mãe quando estamos no útero pelo cordão umbilical. Remédio de farmácia não resolve. O tratamento é feito com respiração profunda, relaxamento e puxação espiritual que é a massagem circular ou com a mão fechada naquela região. Tem que ser bem delicada. A gente chama Mãe do Corpo porque protege nosso corpo de emoções ruins, de energias negativas… Agora, quando a gente teima e faz coisa errada – come besteira, toma bebida alcoólica, vive com raiva, se preocupa com tudo, ela se aborrece e dá o castigo: dor de cabeça, no estômago, nas pernas… Às vezes, a pessoa não se sente bem em canto nenhum, sempre se sente mal. Pra tirar tudo isso do corpo, do espírito e colocar as energias no lugara Puxação Espiritual ajuda muito. Depois da puxação, a gente recomenda um chazinho de hortelã*, rei dos banhos*, salva de marajó*, capim santo* com alho ou outra erva relaxante; também o caribé*… Era muito usado pelos antigos. Lembro que minha avó dava bastante pra nós. É bom pra levantar as forças, soltar os gases e tirar as tenúias*. Uma coisa também é bom saber: durante a puxação, a pessoa que está desalinhada espiritualmente tem que se ligar com quem faz a reza. É um trabalho maravilhoso tanto pra quem faz e pra quem recebe.

É no diálogo íntimo com os Guias Espirituais que Lia Benzedeira recebe as orientações necessárias para desenvolver suas práticas de cuidados. Sem intimidações a tendências neoinquisidoras, assume-se herdeira das bruxas…

Acreditem ou não, para realizar qualquer cuidado de saúde eu recebo orientação dos meus Guias… Só quem vive essa experiência pode entender o que digo. Difícil você encontrar no pessoal que trabalha nos hospitais e postos – médicos, enfermeiras, técnicos – aceitar nosso trabalho… Acham que a gente inventa, que a gente é doida… O preconceito ainda é muito grandemas faço minha parte, cumpro minha missão neste mundo… Assumo que sou uma bruxa, porque eu tenho esses saberes que são milenares, e ninguém pode tirar isso de mim. É igual querer fazer de um tucumanzeiro* uma mangueira. Não dá certo.  Às vezes, até me lembro daquelas histórias que contam das bruxas queimadas vivas no tempo da inquisição. Hoje, a gente só não vai pra fogueira, mas tem muita coisa aí de preconceito que não deixa a gente fazer nosso trabalho.

Na verdade, as bruxas sobrevivem para além das fogueiras. Com tal, Dona Lia comenta como se dá o diálogo com seus Guias:

Quando estou atendendo alguém, fico em silêncio, desligo a atenção de tudo que atrapalhe minha concentração… Aí as orientações vêm numa corrente como se estivesse numa maresia… Sou guiada a dizer o que a pessoa atendida precisa saber e poder se curar. Nem sempre me lembro do que falo pra pessoa…  Na hora da concentração, chamo aquela força interior que me guiava lá na infância, quando ia cuidar do Bob e das pessoas que me procuravam.

Hoje sei que essa força é a presença de Deus em mim. Ele vem em primeiro lugar. Aí vem a Mariana e os outros Guias ligados à floresta. Nunca me deixam só. É por isso que eu gosto de trabalhar mais em ambientes bem naturais: na mata, nas gramas, nos espaços onde tem muita natureza. Até as pessoas que me procuram preferem ambientes assim. A cada dia me dedico mais e me sinto bem comigo mesma… E todas as pessoas que sentem o toque das minhas mãos, graças a Deus e aos meus guias, se sentem maravilhosamente bem, e eu me sinto bem ajudando as pessoas.

A Puxação Espiritual: conhecimento e aprendizado (Foto: Floriano Lins)

Entre os cuidados oferecidos aos que a procuram por atendimentos espirituais, a Benzedeira dialoga com a “racionalidade inspiracional das tradições” e vai além dos prescritos pela racionalidade médica. A partir das inspirações interiores orienta-se e ilumina-se e não se inibe em compartilhar experiências inéditas sobre pessoas engasgadas com espinhas de peixe.  Confirma-se, portanto, o princípio defendido na Probiótica: O “racional se transforma em irracional e o irracional em racional…” Ou ainda o que reafirma Confúcio nos Princípios taoístas: “A sabedoria não vem da opinião, conhecimento ou aprendizado, e sim da intuição – a natureza mais profunda das coisas”.  (Simpkins & Simpkins, 2011, p. 22)

Para atender pessoas engasgadas com espinhas de peixe, faço o mesmo exercício: entro em concentração com Deus e com meus Guias, peço à pessoa que relaxe, se concentre comigo e seguindo as orientações dos Seres Superiores realizo o trabalho com resultado positivo. Atendo bastante gente engasgada. Geralmente me procuram depois do almoço ou na janta. São casos diferentes; uns mais complicados que outros, mas, com as bênçãos de Deus e dos meus Guias, ajudo as pessoas se livrarem das espinhas.

A Benzedeira faz questão de relatar fatos que considera importantes em seu trabalho espiritual… Uma das pessoas que atendi foi o jornalista Floriano Lins. Ele chegou na minha casa por volta das sete da noite, muito agoniado, nervoso e pálido… Já tinha vindo do hospital e lá não conseguiram resolver o problema. Pedi que ele sentasse, relaxasse, respirasse fundo, abrisse bem a boca e se concentrar em mim. Fiz o que fui orientada e livrei o Jornalista da espinha de pirapitinga*. Por conta desse fato, ele ficou tão agradecido que me homenageou com uma poesia…

Saberes de Lia

Deus me livre de esquecer

O valor que tem a Lia

São tantos anos de vida

O dobro em sabedoria.

Tratamentos que fazemos

A maioria nem adianta

O que me levou até ela?

Uma espinha na garganta.

Estive até no hospital

Buscando uma solução

Lá me receitaram

Até engolir algodão.

Sem resultado nenhum

A espinha incomodava

Então me veio a ideia

Da cura que eu buscava.

Acolhimento, diálogo

Amorosidade também

Entre rezas e orações

Nós dois dissemos, Amém!

Voltei dois de alguns meses

Pra saber de sua vida

Sem espinha na garganta

Mas com o sabor da acolhida.

Quem conhece o seu quintal

Vê que ali nasce de tudo

Das folhas que caem das plantas

Lia produz o adubo.

Tem da fruta ao tempero

Das flores ao banho de cheiro

São vidas que geram vidas

Lia tem dom milagreiro.

O seu dom vem de criança

As curas desde os animais

É benzedeira, parteira,

Erveira e muito mais.

Seu diálogo é saber

Fruto dos ancestrais

Nenhum banco de escola

Tem tamanhos ideais.

Muito menos quero eu

Esquecer a sua luz

Quem os dera ter a Lia

Atendendo pelo SUS.

Certa vez, também, tirei um pedaço de casco de bodó* do reto de um rapaz. Veio também do hospital. Fazia dias que não conseguia defecar; sentia muitas dores… Ganhei a confiança dele e retirei. Graças a Deus deu tudo certo.

A importância e abrangência do trabalho da Puxadora Espiritual, no sentido da contribuição à Atenção Básica em Saúde vão muito além da poesia… A procura por seus atendimentos cresce a cada dia. O público independe de classe social. São casos diversos e até complexos. A partir da sabedoria que a orienta, encontra os jeitos e as respostas coerentes para proporcionar alívio e bem estar.

Não há um dia que não bata gente na minha porta querendo ajuda. É muita gente; e não é só meus pareceiros pobres: são pessoas grandes, até doutor, médico, gente das universidades… As pessoas de fora dão mais valor ao meu trabalho que as pessoas daqui. Essas pessoas elogiam muito meus cuidados: o toque das minhas mãos, o jeito de eu atender…

Um caso meio difícil que ajudei foi de uma criança que estava internada num hospital daqui de Parintins; hoje, ela é até minha afilhada. Foi assim: o médico diagnosticou que estava com um tal de nó na tripa. A barriga da criança estava tão inchada que aparecia as veias. Já tinham marcado a cirurgia dela. Estava muito mal; respiração difícil e muita dor. Os pais da menina me conheceram uns dias antes, pediram minha ajuda. Fui lá no hospital na hora da visita; peguei na barriga dela, me concentrei e recebi a orientação. O caso não era pra cirurgia. A criança estava com fezes presas há uma semana por causa da comida que vinha comendo. Disse ao pai dela que eu poderia ajudar, mas fora do hospital. Ele decidisse. Conversou com a mulher dele, assinaram um termo de responsabilidade e comecei os cuidados lá na casa dela. Usei os remédios caseiros que meus Guias me disseram: fricção de alho assado, andiroba, sebo de holanda, banha de cacau… Misturei tudo, preparei o unguento e fui fazendo a puxação bem de leve em toda a barriga dela. Aí ela começou arrotar e peidar. Depois dei pra ela um chá de capim cheiroso com alho e ela foi tomando bem devagarinho… Alguns minutos depois, começou a fazer cocô. Foi saindo devagar aquela podridão. Não era pouca. Repeti o cuidado por alguns dias. Ela ficou boa e até hoje os pais contam esta história. Chegaram até dar testemunho lá no hospital, numa roda de conversa que teve lá.

Sobre a possibilidade de diálogos entre a Saúde Pública de Parintins e Curadores Populares, na perspectiva de reinvenção do SUS, Dona Lia expressa sua opinião…

Quem dera se os gestores da Saúde entendessem a importância do nosso trabalho para melhorar a nossa qualidade de vida, pra reduzir despesas desnecessárias, enfim, para ajudar no Bem Viver de Parintins. Já tentei nos postos de saúde oferecer meus cuidados ao menos por um dia… Gosto muito de cuidar de idoso e de criança. Quem deras se eu tivesse uma oportunidade dessas… Só queria mostrar outros jeitos de cuidar da saúde e da vida… Poder ajudar as pessoas nos postos ou em algum lugar, mas infelizmente a gente não tem vez, a gente é sempre mal vista, estamos sempre no último lugar.

No atual sistema totalmente regido pelo capital, é regra geral tudo virar mercadoria. Em outros momentos de diálogos com a Puxadora Espiritual soubemos que não tem renda fixa. É dona da casa e de casa. Sobrevive do apoio dos filhos, da venda de suas plantas, das fórmulas curativas que produz e, de alguns trocadinhos de seus artesanatos e costuras. Como se dá essa relação de troca entre as pessoas atendidas e os cuidados de saúde oferecidos? Que valores são estabelecidos?

Mana, não cobro nada pelos meus cuidados e nunca cobrei. É difícil pra mim dar preço num cuidado espiritual. Esse tipo de trabalho não tem como a gente pesar, medir, calcular, dá preço… É o saber que recebi dos meus Guias… Então… Após o cuidado oferecido, deixo por conta da consciência da pessoa que deixa o valor que ela acha justo… Se o atendimento serviu, ajudou… Isso é com a consciência da pessoa. Às vezes, as pessoas cuidadas não têm nem o que comprar pra comer!… Aí ela me agradece com um abraço que vale muito mais que o dinheiro. Hoje, eu acredito que as pessoas precisam de um abraço, e eu costumo sempre abraçar quem me procura. O abraço que vem do coração acolhedor, amigo, amoroso… É muito bom. A saúde começa daí. Mas, têm pessoas que me procuram e que ganham bem, ficam bem com o tratamento e retribuem aquele cuidado oferecido com valores que até me espanta. Não nego, isso me ajuda muito nas despesas da casa. É aquilo que meus Guias me dizem: faz teu trabalho com amor e receberás em dobro.

A vida segue. O hoje é movimento… As sementes lançadas por nossa Puxadora Espiritual certamente encontrarão acolhimento em algum canteiro deste País, deste Estado e deste Município. Mesmo que torçam o pescoço do galo, sobreviverão as auroras anunciadas nas profecias por outro mundo possível.  Por enquanto, nosso diálogo pausa aqui. É apenas uma pausa… A “racionalidade inspiracional das tradições” traduzida na herança cultural de Dona Lia incorpora os/as Guias do Esperançamento que teimosiam em acalantar a Utopia pela reinvenção de valores humanizantes e de um Sistema de Saúde Único, Solidário e Inclusivo…

Não perco as esperanças, mana. É sempre na dor que as coisas mudam até pra melhor. Com toda essa crise que estamos vivendo, quem sabe os médicos e o pessoal que trabalha na saúde comecem a valorizar um pouquinho o tratamento com as ervas, assim como os antigos faziam. As ervas fazem milagres, sem contar que não custam dinheiro, basta a gente plantar e cuidar.

Que o pessoal da saúde comece também acolher melhor os doentes que precisam da ajuda deles. Ninguém procura hospital ou posto de saúde se está tudo bem.

Que postos de saúde e os hospitais tivessem um cantinho de amizade pra receber bem os pacientes. Às vezes, um acolhimento amoroso já ajuda muito no tratamento.

Outro recado vai para a comunidade: vigiem a alimentação que botam na mesa e valorizem as plantas medicinais. Cuidem melhor de seus quintais: cultivem plantas medicinais, ornamentais, frutíferas. Tudo isso ajuda a melhorar nossa saúde. O lixo também, a gente precisa pensar muito sobre ele… cuidar, reciclar e não jogar de qualquer jeito. Tudo isso volta pra nós. 

Que a comunidade parintinense abrace as causas sociais. Conheça nossa TEIA de Culturas e a semeadura que oferecemos todos os sábados, nas ruínas da Casa da Cultura, através de celebrações, rituais, das feiras de quintais, das puxações e das trocas de saberes, de abraços e de esperanças em nós.

A alvorada é aqui e agora…

Os dias se sucedem frios, nebulosos, carentes de vida… O saber ancestral parece sucumbir à tendenciosa indiferença neoinquisidora. Pura aparência… Ritmos sutis, ao mesmo tempo atrevidos, ecoam da floresta, dos ventos e das águas; quebram silêncios mornos e reinventam jeitos simples e sustentáveis para o dia que chega. Em misteriosos teçumes e cuidados Lia Regina atiça o voo sob as inspirações de sua fêmea ancestralidade e resiste às fogueiras. Dos terreiros da Ilha esperançamentos apontam alvoradas de vida e saúde.


Nossos falares

Andiroba – Carapa guianensis.

Capim santo – Coix lacrima-jobi

Caribé – Caldo de farinha de mandioca temperado com alho, sal e pimenta do reino, usado no tratamento de esgotamento físico; caldo da caridade.

Cariru – Talinum paniculatum.

Cragiru – Friderícia chica.

Hortelã – Mentha arvensis.

Pirapitinga – Piaractus brachypomus. Peixe nativo da Amazônia

Rei dos banhos – Ocimum selloi.

Salva de marajó – Menta arvensis.

Tenúias – Estados depressivos; preguiça.

Tucumanzeiro – Astrocaryum aculeatun

Urucu – Bixa orellana.


Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da Teia de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta, e Militante da Marcha Mundial das Mulheres. Autora das obras literárias, Ensaio de Rebeldia e Algemas Silenciadas.

Fonte: Amazônia Real

 

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