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Memória das lutas minhas e do meu companheiro Chico Mendes

Memória das lutas minhas e do meu companheiro Chico Mendes

O dia do assassinato de Chico Mendes transformou-se no dia em que os movimentos sociais da Amazônia choraram. Sentimos ao mesmo tempo o sentimento de ódio, raiva, vingança, dor e impotência, diante não só da morte do Chico, mas diante da injustiça, pelos muitos outros assassinatos de nossas lideranças.

Por Pedro Ramos de Sousa 

Nasci em 27 de novembro de 1940, em uma das muitas ilhas fluviais do estuário do Rio Amazonas, no município de Afuá-Pará. Vivi cinco anos em Macapá, estudando. Retornei para Afuá, aí fiquei até os 23 anos, aprendendo com minha mãe a cortar seringa, a processar o óleo de andiroba e a juntar os frutos do açaí.

Em 1964, em Afuá, fui preso pela ditadura militar. Escapei e fui para Cayenne, na Guiana Francesa, e só retornei em 1986, para a vida de pequeno agricultor, para trabalhar com cultura de subsistência, até que a companhia Mendes Júnior se apropriou da terra que ocupávamos, retirando as poucas condições que tínhamos de sobrevivência.

Foi curtindo a ressaca do prejuízo causado pela Mendes Júnior que conheci o Jorge e a Neuza Zimmerman, grandes incentivadores para que os agricultores se organizassem. Promoveram treinamentos, capacitaram em associativismo e concederam apoio logístico no processo de fundação da Sociedade Central de Pequenos Agricultores do Território Federal do Amapá.  Com a SOCEAP, organizamos os pequenos agricultores em três municípios. 

Foi numa dessas reuniões que conheci o Chico Mendes. Trocamos impressões sobre a Amazônia e nossas organizações; depois ficamos confidentes do nosso dever de fazer o movimento avançar.

Nós criamos um modelo de reforma agrária para se contrapor ao projeto econômico do Estado. O poder central do Brasil tomou várias medidas para sustentar a exploração da floresta: mais de mil quilômetros de estradas de rodagem foram abertos ou iniciados e também hidroelétricas, linhões de transmissão, ferrovias para transporte de minérios, portos de embarque e desembarque, sistemas de comunicação modernos, com milhões de hectares de terras ocupadas ou desocupadas à disposição do grande capital.

A propaganda de massa na mídia mostrou-se muito útil para o propósito do Estado, que abusou de slogans como: Amazônia, o Eldorado Brasileiro; Muita Terra Sem Gente; Integrar para não entregar; Este é um País que vai Pra Frente, que atraía migrantes pela facilidade na obtenção de terras, pelos incentivos fiscais, pelos subsídios e pela infraestrutura produtiva, de escoamento e insumos básicos à disposição. O destino da Amazônia estava lançado e não era bom. De imediato, o estrago atingiu a economia extrativista, que viu seus produtos sendo banidos do mercado.

Ao destruir a economia extrativista, desprotegia-se o ser humano, retirando-lhe a única fonte de renda que lhe assegurava o suprimento mínimo de suas necessidades elementares, contrariando o dispositivo da Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa Humana, da qual o Brasil é signatário. 

Esse propalado progresso aguçou conflitos generalizados pela disputa da terra – latifúndios e capital imbricados ostentavam poderes contra povos e comunidades tradicionais, contra índios e extrativistas. Para o latifúndio, os Povos da Floresta representavam atraso e deveriam permanecer entregues à própria sorte, invisíveis e ignorados pelo Estado.

A omissão do Estado resultou em conflitos e em frequentes assassinatos de camponeses, lideranças religiosas e advogados. Assim se consolidava a expulsão de levas de camponeses do campo para as periferias das cidades. O passo seguinte foi a desintegração das famílias por conta da fome que conduzia as mulheres para a prostituição e os homens para os atos de delinquência. Esse cenário tomava conta das reflexões de Chico Mendes, e minhas também, nos anos 1980.

O amadurecimento das nossas reflexões estimulou a criação de uma entidade que se dedicasse às questões do extrativismo florestal, encabeçados pelos seringueiros, debate que se estendeu do Acre para os municípios dos estados de Rondônia, Amazonas e Amapá, este último ausente do ato de criação do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), em outubro de 1985 em Brasília.

A destinação das terras para as comunidades tradicionais locais se deu com o reconhecimento da figura jurídica da modalidade do projeto de assentamento extrativista através da Portaria Incra/627, de 30 de julho de 1987. A partir dessa portaria, começam a ser pautadas as questões peculiares naturais e culturais das comunidades tradicionais amazônicas, elas são respeitadas, e existe preocupação com o equilíbrio ambiental, a racionalização do uso dos recursos naturais, a preservação do meio ambiente e o respeito às populações tradicionais. Depois vieram as Reservas Extrativistas, sendo que as primeiras quatro Resex só foram criadas depois da morte dele, em março de 1989.

Não contávamos com o assassinato do Chico Mendes. Sabíamos das ameaças e do que significava para o movimento manter o Chico vivo. Houve decisão da parte da sociedade civil e de assessores de afastar o Chico de Xapuri, mas ele não quis sair, ele quis ficar. Os autores daquela morte continuam matando como se o país cultuasse a impunidade, porque só quem disparou a arma, e apenas um dos mandantes do crime foram julgados e condenados. A presença de repórteres foi uma espécie de garantia para que o assassino fosse preso e julgado, e evidenciou o prestígio que as ideias do Chico, as “nossas ideias”, ganhavam no Brasil e no mundo.

Depois da morte do Chico, refletimos muito sobre os nossos propósitos traduzidos na dimensão agrária e na regularização fundiária, na manutenção da cultura das comunidades tradicionais e da produção com bom manejo, no fortalecimento das organizações, no rompimento do isolamento do CNS e na ampliação das alianças para fortalecer a luta.

Mantivemos o Encontro da Aliança dos Povos da Floresta que o Chico estava organizando quando morreu. Daquele encontro, em março de 1989, decidimos viabilizar a criação, a implantação e a difusão das Reservas Extrativistas, bandeira defendida pelo Chico com muito fervor, assim como defendia a vida combatendo qualquer tipo de agressão e dizendo que se sua morte servisse para avançar nas conquistas, ele não teria medo de enfrentá-la.

Foto: Divulgação/Iphan

Pedro Ramos de Souza Extrativista. Militante histórico dos movimentos sociais do Amapá e da Amazônia. Depoimento concedido à jornalista Zezé Weiss para o livro Vozes da Floresta, em julho de 2008. Foto de capa: Divulgação/ Homero Sérgio / Folhapress.

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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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