Claudia Sala de Pinho: desde sempre, Pantaneira

Claudia Sala de Pinho: desde sempre, Pantaneira

Claudia Sala de Pinho: desde sempre, Pantaneira

Quando, um dia, a pantaneira Claudia Regina perguntou ao pai, o peão de comitiva Joaquim de Pinho, desde quando estavam no Pantanal, o velho domador de cavalos, descendente dos Bororo e Guató, da comunidade Boca do Jauru, localizada na região de Cáceres- MT, à beira do rio Jauru, um dos afluentes do rio Paraguai, na fronteira -Bolívia, respondeu curto e direto: “Desde sempre”.

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Em princípio, essa não era a resposta que Claudia, também Regina, porque o pai, que nunca frequentou escola, que nunca conheceu o mundo das letras, resolveu dar à filha o nome de rainha, queria ouvir: “Eu esperava uma resposta objetiva, um tempo definido – 100 anos, 200 anos – sei lá”. Incisivo, seu Joaquim então completou: “Desde sempre. Quando essas serras se levantaram, já existia gente nossa por aqui”.

De Lagoa da Pedra, comunidade de sua mãe, onde nasceu, e depois para a comunidade Boca do Jauru, comunidade de seu pai, a menina Claudia Regina Sala de Pinho, a primeira de três irmãs, saiu cedo, aos sete aos de idade, para estudar em Cáceres, por insistência da mãe. “Eu quero que minhas filhas sejam alguém na vida. O estudo é o caminho”, fincou pé dona Adair Sala, mulher negra, não escolarizada, descendente de indígenas chiquitanos e negros do município de Vila Bela da Santíssima Trindade (MT), oriunda dali mesmo, daquelas terras altas do Pantanal, região de transição com a Amazônia.

Toda essa convivência no caldeirão afro-indígena da família fez parte da formação identitária-político-cultural de Claudia. Mas foi na Unemat (Universidade do Estado de Mato Grosso), onde estudou e se formou em , que a jovem Claudia se descobriu pantaneira. “Eu detestava quando me chamavam de bugre, para mim era uma ofensa, porque bugre é um termo pejorativo que usam lá na nossa região para as pessoas que, como eu, têm sangue de negro e de índio”.

A raiva de ser bugre vinha do fato de que, desde pequena, por onde passava costumava ouvir que “os bugres não querem nada, são preguiçosos, só querem saber de pescar”. Por vezes, Claudia se perguntava: “Por que não sou branca? Por que não me encaixo? Se sou bugre, qual o meu lugar na enquanto bugre?” Cheia de dúvidas, Claudia seguiu um dia com uma professora para uma pesquisa de campo na comunidade onde nasceu.  “Vocês são uma comunidade tradicional pantaneira”, disse a professora, e o mundo de Claudia se abriu.

Entre os anos 2000 e 2001, Claudia começou sua jornada de conhecimento entre outras comunidades do Pantanal, onde as pessoas eram “tão diferentes como eu”. Já bióloga, trabalhou nas comunidades para melhorar a qualidade da água que, na época das cheias, fica péssima por conta da “dequada”, um fenômeno natural que ocorre quando a matéria orgânica, acumulada nas curvas dos rios, fermenta, tornando a água inadequada para o consumo humano.

O contato direto com as comunidades fez com que Claudia começasse a se envolver na defesa de seus direitos. Em 2004, ao colaborar com o MST da região, compreendeu a importância da luta pela regularização fundiária, “porque tínhamos, mas, como as terras onde vivíamos desde sempre não eram tituladas como nossas, havia sempre o risco de uma expulsão autorizada por alguma autoridade, para nos tirar dos territórios que herdamos de nossos antepassados”.  

O divisor de águas em sua vida de militante ocorreu, entretanto, em agosto de 2005, quando participou do Encontro de Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs), patrocinado pelo governo Lula, na cidade de Luziânia, em Goiás. Dali pra frente, Claudia dedicou sua vida a fortalecer a luta por de qualidade para os PCTs. Luta essa que resultou no Decreto 6.040/2007, do , que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – PNPCT.

Criada a Política, ao mesmo tempo em que fazia seu mestrado em Ciências Ambientais em Cáceres (2006–2008), dava aulas e se envolvia com a defesa do Pantanal – em 2009 ajudou a fundar a Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras. Claudia mergulhou de cabeça na luta dos PCTs, parou de dar aulas e passou a viver de diárias e da ajuda da mãe. “Às vezes eu chegava de viagem, cansada, e em casa não tinha luz, por falta de pagamento a energia tinha sido cortada”.

Em 2014, o governo Dilma realizou um processo de encontros regionais para avaliar a política dos PCTs. Claudia pulou dentro, assumiu a liderança, brigou pela criação do Conselho (um dos últimos decretos assinados por Dilma antes do golpe) e mostrou que, desde 2007, a regularização fundiária dos territórios não tinha avançado.

 Em julho de 2018, em um encontro de PCTs, realizado pelo Movimento das Quebradeiras de Coco de Babaçu, no município de Monte Alegre, no Maranhão, no território de dona Dijé, quebradeira de coco de babaçu, os e as participantes decidiram pela criação da Redes de Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil – Rede PCTs, com 28 segmentos.  Em setembro, em Brasília, Claudia foi eleita por seus pares como primeira presidenta do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais – CNPCT, para um mandato de dois anos, prorrogado até 2021, sem o reconhecimento do governo do inelegível.

Essa longa jornada de lutas levou Claudia a participar de vários encontros e conferências, nacionais e internacionais, incluindo as últimas quatro Conferências de Biodiversidade (COPs) da ONU. Na última COP, realizada entre os dias 7 e 19 de dezembro de 2022, em Montreal, no Canadá, logo depois da derrota do inelegível, Claudia participou defendendo agendas prioritárias para os PCTs: a) Lei 13.123, do Genético; e, b) Agenda da Plataforma de Territórios.

Militante, Claudia estranhou a falta da presença do governo eleito em Montreal. Inquieta, ligou para a ambientalista Edel Nazaré, hoje Secretária Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Desenvolvimento Rural Sustentável do MMA, que a colocou em contato com Marina Silva, que ligou em seguida. Claudia conta:

“Aqui é a Marina”. E eu: Marina? “Sim, Marina Silva”.  Ela, a futura ministra do Meio Ambiente, queria saber o que eu estava pensando. Eu então disse à ministra Marina que alguém da transição precisava incidir na agenda da COP. Eu falei que estava ali pela Rede de PCTs e vejo que as posições que estão sendo colocadas aqui pelo Brasil já não servem, porque são visões que o povo brasileiro derrotou nas urnas. Comecei, então, a atualizar a ministra Marina sobre o que estava se passando e ela designou o Bráulio Dias, agora diretor aqui no MMA, para fazer a representação do futuro Governo Lula na COP do Canadá.

O resto é história conhecida. Em 5 de abril de 2023, Claudia Regina Sala de Pinho, mulher afro-indígena, bióloga, professora e militante orgânica das causas dos povos e comunidades tradicionais assume como Diretora do Departamento de Gestão Socioambiental de Povos e Comunidades Tradicionais no Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática do Governo Lula.

Em seu discurso de posse, Claudia estabeleceu como sua missão no MMA: “implementar, de fato, o Plano Povos e Comunidades Tradicionais, finalizar os Planos de Desenvolvimento dos PCTs e fazer a defesa intransigente do Pantanal”.

Sucesso, Pantaneira!

zeze 2Zezé Weiss – Jornalista Socioambiental. Matéria escrita com base em entrevista concedida à autora por Claudia de Pinho, em Brasília, no MMA, em julho de 2023.

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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