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Contrabando e Ócio nas Raízes de Goiás

Contrabando e Ócio nas Raízes de Goiás

Para Luís Sérgio Duarte

O exercício da cidadania na província de Goiás, desde a transição da economia com base na mineração para a agropecuária, foi, sob vários aspectos, realizado fora da esfera estatal. Desde seus primórdios, a administração da capitania de Goiás, antes vinculada a São Paulo, foi exercida por pessoas distantes da cultura local.

Nasr Fayad Chaul

Sem contar o bandeirante Bartolomeu Bueno, capitão-mor, título mais honorífico que administrativo de fato, só 1749 tomou posse o primeiro governador de Goiás, Dom Marcos de Noronha, o futuro Conde dos Arcos, seguido de vários outros governadores portugueses, que não se encaixavam no ritmo “moroso” da cultura local.

Os habitantes locais, que se multiplicavam com os veios auríferos, foram se moldando à face repleta de mudanças da então província  — título ostentado desde 1748, quando nos separamos de São Paulo -, plena de homens pardos, característicos de nossa formação social, que não economizavam reclames ao se depararem com a administração lusitana.

Eram reclames de toda ordem, seguidos quase sempre de uma cruzada de desobediências para com as imposições reais, os atos arbitrários, os desmandos incontáveis e toda sorte de impressões por esse Goiás afora. Juntava-se a tudo isso a ilegitimidade de representações que o povo da província vislumbrava nos governantes lusitanos.

Qual foi então a forma encontrada de resistência, de afirmação de direitos contidos, de “cidadania” manifesta? A desobediência civil, através de contrabandos, da ignorância consciente das ordens régias, da distância mantida do cento do poder, da afirmação do ócio e do marasmo como formas de cultura local, por mais surreal que tudo isso possa parecer.

É obvio que essa é uma das maneiras de entendimento de uma época, não a única, mas umas das possíveis, umas das pensáveis, uma que procura compreender o outro lado daquilo que os viajantes europeus construíram para nossa memória, tão distante da nossa realidade quando estávamos na Europa.

O contrabando foi uma das formas mais comuns e exemplares de atestar a desobediência. A forma primeira encontrada para burlar a cobrança do quinto que, ao diminuir seu lastro devido ao esgotamento das minas e ao parco desenvolvimento técnico, deixou a desculpa para a sonegação.

Não havia entendimentos possíveis e o contrabando grassava como forma de demonstrar o descontentamento geral com as arbitrariedades lusitanas em terras dos goyazes. Significava tanto o descontentamento com o governo imposto como com o imposto do governo.

Outra forma de deslumbrarmos a desobediência, pacífica e não tanto onerosa como o contrabando, era o exercício pleno do ócio. Verdadeiro culto do habitante dessas paragens, foi visto pelos viajantes europeus como preguiça atávica, marasmo delinquente, improdutividade sem adjetivos. O branco não veio para trabalhar, pois tal era coisa para negro e índio, então, trabalho era coisa de escravo. Ao branco cabia administrar.

Pohl, em verdadeira fúria europeizante, afirmava que

o ócio é a máxima felicidade dessa gente. O próprio soldado raso que tem de levar uma carta da Real Fazenda ao Palácio de Governo, apenas a duzentos passos de distância, não a leva ele próprio. Manda-a por um negro escravo e a toma à soleira de um edifício.

Para esses olhares, não havia outra alternativa de vida social senão dentro dos padrões capitalistas europeus. Não era, portanto, a vida que se levava na província. Por isso o austríaco se assustou ao constatar que

estes homens, apesar de necessitados, trabalhavam somente ao seu bel-prazer. Enquanto tem uns vinténs no bolso, não mexem com as mãos. Conheci alguns desses elementos que tiravam a roupa suja e ficavam debaixo de uma árvore até que a negra a lavasse e secasse ao sol; então tornavam a vesti-la e entregavam-se à ociosidade, sem se animarem a trabalhar para melhorar a sua sorte.

O tipo de vida, o abandono de um futuro que Pohl via próspero é a ociosidade diante de um quadro onde tudo estava por se fazer enervavam o doutor, levando-o a concluir que “o pendor para a ociosidade sempre foi e permanece igual em ambos os sexos.”

A inércia era, aos poucos, explicada pela pobreza da economia e vice-versa. Os habitantes, por sua vez, não sabiam contornar as conjunturas que aprofundavam as crises advindas da mineração e, na visão principalmente dos viajantes, adotavam uma atitude de indolência, conformismo, tédio e ócio. Os viajantes, porém, não tinham uma visão mais ampla do contexto geral da sociedade e da economia de Goiás.  Muito menos da cultura local.

Seus olhares estavam condicionados a enxergar progresso, desenvolvimento capitalista e lucro. Coisas para as quais a província de Goiás não estava preparada, por falta de condições de realização ou por um livre culto ao cotidiano de seus dias que pareciam iguais, que mais pareciam “avarezas de Deus”.

Assim, a desobediência civil da época, apesar de pouco documentada, pode ser imaginada com pinceladas de realidade. Contrabando, cachaça, rituais afro, caminhos por estradas não permitidas, não-pagamento de impostos, descaso para com a lei, entre outras, foram atitudes notórias no cotidiano do povo do lugar.

A sociedade local parecia construir seus hábitos e sua cultura por meio de elementos próprios, de tradições locais e atávicas, de memórias seculares, distantes da cultura europeia.

Formavam um mundo à parte, diante de um governo não reconhecido ou indiferente aos olhos da população. Não estaria aí uma das fontes de compreensão da desilusão que temos para com as coisas e as crenças nos governos instituídos?

Nasr Fayad Chaul, em “Os Caramujos Contemporâneos da Modernidade”, Goiânia, 1998.


Block

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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