“Criminalizaram a Política e elegeram um governo de ogros”

“Criminalizaram a e elegeram um governo de ogros”

Por Eliara Santana

As imagens de Alter do Chão (veja PS do Viomundo) queimando me impactam no momento em que escrevo este artigo.

O está se transformando numa terra arrasada, num sentido que extrapola o meramente simbólico.

Nossas matas e florestas estão queimando, nossa população não tem emprego nem renda, o país vai ficando triste sem perspectivas de futuro, a avança.

Também me impactam as declarações de vários jornalistas e comentaristas atestando, agora, que vivemos um momento gravíssimo.

São, de fato, muito espertos por perceberem, após oito meses e mais quase um ano de campanha, que ajudaram a eleger um governo de ogros.

Uma equipe – presidente e ministros – que não acredita em aquecimento global, diz que a Terra é plana, acredita em Kit Gay, em família só com homem e mulher, que ataca primeira-dama de outros países com piada machista e misógina, que destrói a , que defende torturador (incluindo os de outros países), que duvida da , que desacredita a imprensa, que persegue a educação e a produção de conhecimento.

A lista é enorme e bastante deprimente.

A questão que se coloca é: como um país que era a sétima mundial e foi respeitado  no mundo todo chegou a este estado de coisas?

Há muitas explicações, de vários campos, mas quero trazer aqui a perspectiva do papel da imprensa, com foco no Jornal Nacional, representando a Globo (como organização), num ponto bastante central e crucial: a criminalização da política.

Esse processo começa, mais sistematicamente, em 2013, avança em 2014, 2015 e parte de (com a segunda eleição de até o impeachment), sai do de cena em 2017 (com o governo Temer, a mídia freia o assunto) e tem uma tentativa de reconfiguração em 2018 (tardia).

A criminalização da política como estratégia tem início  com a criminalização aberta de um grupo político, o PT, e se expande para a política como um todo a partir da parceria com a Lava Jato (que surge em 2014).

Para alinhavar essa construção, o repertório “”, que vai se consolidando, paulatinamente, como o combustível para alimentar na população a crença de que política = corrupção, ou seja, a saída para o Estado, o país, estava fora da política e dos políticos “tradicionais” que, naquele momento, eram prioritariamente referenciados como os do PT, já no poder pela quarta vez consecutiva.

Não sou cientista política mas suspeito que, fora da Política (assim mesmo, com letra maiúscula) só existe a barbárie. Ou um país governado por ogros, o que dá na mesma.

E como, então, isso se constrói? Como esse repertório funciona efetivamente a partir da instituição mídia corporativa?

Repertórios são temas que compõem uma linha argumentativa ou retórica da mídia, eles “contornam” o noticiário e fazem com que determinados assuntos estejam sempre inseridos numa moldura ou roupagem específica.

POLÍTICA = CORRUPÇÃO, era isso o que víamos noite após noite no telejornal e também nos jornais impressos e revistas, pois todos os assuntos de política estavam, de alguma forma, circunscritos ao repertório corrupção.

Quando falo em “repertório corrupção”, não quero negar que a corrupção, como um problema específico, exista.

De forma alguma: o Brasil enfrenta corrupção, em todos os níveis e instâncias da sociedade, talvez desde que o país foi descoberto. É um problema histórico, antigo, talvez sistêmico (os especialistas que me corrijam), enfim, grave.

A corrupção está em todos os níveis – o médico que não dá recibo, o aluno que “compra” vaga na universidade, a ou pai que “molha” a mão do guarda para o filho não ser acusado de dirigir embriagado, o político que desvia recursos destinados ao SUS… há inúmeros exemplos.

A questão é que, construída como repertório que embasou o noticiário, a corrupção vinculou-se à política. Totalmente. Sem questionamentos. Sem marcação histórica. Sem contextualização. E a mensagem subliminar que ficou para a população era a de que, para acabar com a corrupção, era preciso acabar com a política naquele momento específico.

Isso alimenta as grandes manifestações a favor do impeachment de Dilma Rousseff – as massas de verde e amarelo bradam contra o fim da corrupção, “fora, corruptos”, “fora, PT corrupto”.

A imagem vermelha com um cano de esgoto por onde escorre dinheiro alimentou o ódio à corrupção dos políticos do PT.

Era interessante ver, por exemplo, médicos que sabidamente cometiam fraudes – cobrando dos pacientes fora do já pago pelos planos de saúde – empedernidos nas manifestações conta a grande corrupção que destruía o Brasil.

O repertório assim construído limita o debate público, enviesa as argumentações e leva a considerações absolutamente equivocadas.

Por isso a corrupção como repertório levada pela mídia era a-histórica e se restringia a atores específicos – os políticos.

Num contexto polarizado – o que é demarcado pela fala do então candidato derrotado Aécio Neves, em 2014, de que ele havia perdido “para uma organização criminosa”, o repertório corrupção se consolida no imaginário da população como como um aglutinador de sentido, um elemento que encarna todos os problemas da nação.

Assim, vai tomando corpo a ideia de que, ao se expurgar aquele governo, os males seriam expurgados.

Conforma-se a ideia, personificada na imagem do cano de esgoto por onde escorre dinheiro, levada noite após noite pelo JN, de que o país nunca antes havia experimentado uma corrupção tão avassaladora.

E nessa construção, a parceria com a Lava Jato, com vazamentos seletivos e com timing perfeito, se mostrou muito efetiva.

A encenação das notícias foi então um elemento estratégico para consolidar o repertório, e ela foi se tornando cada vez mais dramática nas matérias sobre as operações da Polícia Federal, com a prisão de políticos, malas de dinheiro, o cano explodindo e mostrando dólares, enfim, toda uma construção simbólica efetiva.

Nunca houve espaço, portanto, para dizer da boa política, das práticas éticas, relevantes para o país.

 

O Brasil que a gente quer

E eis que, no ano eleitoral, o JN inaugura o quadro “O Brasil que a gente quer”.

E os vídeos exibidos noite após noite ao longo de 2018 (até outubro) mostra que o Brasil desejado é o da não política, do empreendedor individual, “aquele que faz”, o quase herói, o anticorrupção, o “novo”, aquele que não tem ligação com a política tradicional.

Levados pelas notícias, e por quadros como esse que constroem também a notícia, os enunciados jornalísticos marcam sucessões de fatos, de acontecimentos, o desenrolar de momentos e, desse modo, organizam o discurso e dão sentido às coisas, num mundo em que nossa percepção do real é mediatizada.

Há jogos de linguagem que não se resumem a escolhas de palavras ou verbos ou imagens – tudo é intencional e simbolicamente pensado, estruturado.

E assim se consolida a perspectiva “o Brasil que a gente quer”.

Um desejo expresso. Em que o sujeito “A gente” pode ser compreendido como cidadãos de bem que não toleram a corrupção dos políticos, quer um Brasil diferente, longe da política tradicional.

Mas, em ano eleitoral, se todos os políticos são corruptos, quem vamos eleger?

As construções simbólicas ganham dimensões inimagináveis muitas vezes, pois não há  controle sobre o sentido.

Ocorre que, numa população já em clima de polarização, cansada de rupturas, preocupada com o futuro (posto que a crise econômica estava avançando), o processo de criminalização torna-se incontrolável, e até os candidatos preferidos pela mídia corporativa entram também no rol dos políticos corruptos e indesejados.

Se não há política, ou se a política se torna esse campo do indesejado, do mau, alguém que se constrói teoricamente fora deste campo – mesmo estando se beneficiando dele há quase 30 anos – conquista a população bombardeada pelo ódio ao que já existe e que foi demonizado.

Abre-se espaço para a chegada dos ogros.

Alter do Chão fica no Pará. É a maior praia de rio do Brasil. Abriga o aquífero de Alter do Chão.

Eliara Santana é jornalista e doutoranda em Estudos Linguísticos pela PUC Minas/Capes.

Fonte: Viomundo

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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