Demarcação Já! Demarcação,Tá?
Por Zezé Weiss
O amigo Jacy Afonso me ligou esta tarde. Disse estar acompanhando a campanha da Xapuri em defesa dos povos indígenas pelas redes sociais. Disse também pra eu checar o videoclipe que havia mandado via zap. “É forte, lindo e necessário, posta no site,” sugeriu. Corri para dar uma olhada. Na verdade, Jacy estava falando do “Demarcação Já”, vídeo que assisti pela primeira vez em Brasília, no Acampamento Terra Livre 2017.
Chorei da primeira vez, e choro de novo agora. Demarcação Já é um desses vídeos que dá um soco no estômago da gente, de tão forte que é a letra do Carlos Rennó, musicada pelo Chico César e cantada coletivamente por intérpretes que representam o que há de mais engajado na vanguarda da cultura popular brasileira: Arnaldo Antunes, Céu, Chico César, Criolo, Djuena Tikuna, Dona Odete, Elza Soares, Gilberto Gil, Letícia Sabatella, Lenine, Marlui Miranda, Maria Bethânia, Ney Matogrosso, Zeca Baleiro, Zé Celso Martinez, Zeca Pagodinho, Zélia Duncan…
Canto complementado pelas presenças fortes do meu burum Ailton Krenak, do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do poeta André Vallias, do músico Jaques Morelmbaum, do Davi Yanomami e da Sonia Guajajara, que se unem aos cantadores sob a direção competente de um artista que não conhecia mas que me encantou pra sempre, André d´Elia.
A cada verso forte, uma imagem tão forte quanto. Algumas delas, chocantes, algumas delas muito tristes, todas elas belíssimas, formando esse incrível, complexo e maravilhoso mundo indígena que o governo do Coiso quer extinguir. Quer, mas não vai, porque o Brasil que pensa e acredita num outro mundo possível haverá de se mobilizar para, como nos versos de “Borzeguim”, música do Tom Jobim também presente no vídeo, entoar em um só canto: “Deixa o índio vivo! Deixa o índio! Deixa!”.
Letra: Carlos Rennó. Música: Chico César. Interpretação: Coletiva
E de ene ciclos de etnogenocídio
O índio vive, em meio a mil flagelos
Já tendo sido morto e renascido
Demarcação já!
Sem vir a ver a terra demarcada
A começar pela primeira no Brasil
Que o branco invadiu já na chegada
Demarcação já!
Quando os milicos os chamavam de silvícolas
Hoje um projeto de outras obras faraônicas
Correndo junto da expansão agrícola
Induz a um indicídio, vide o povo kaiowá
Demarcação já!
Que terra indígena pelo país afora;
E já que o latifúndio é só monocultura
Mas a T.I. é polifauna e pluriflora Ah!
Demarcação já!
E o outro endeusa e diviniza a natureza
O índio a ama por sagrada que ela é
E o ruralista, pela grana que ela dá;Hum, bah!
Demarcação já!
Tone mantém compacta e muito intacta
E não impacta, e não infecta, e se
Conecta e tem um pacto com a mata
Demarcação já!
Nem unidades de conservação
Abertas como chagas cancerígenas
Pelos efeitos da mineração
Demarcação já!
O índio é tudo que não presta, como quer
Quem quer tomar-lhe tudo que lhe resta
Seu território, herança do ancestral
Demarcação já!
Que linde o seu rincão qual um reduto
E blinde-o contra o branco mau e bruto
Que lhe roubou aquilo que era seu
Demarcação já!
E de não índios, se nem fingem reação
À violência e à violação
Demarcação já!
Que nem por isso deixa de ser índio
Nem de querer e ter na sua aldeia
Cuia, canoa, cocar, arco, maracá
Demarcação já!
Um alcoólatra, um escravo ou exilado
Ou acampado à beira duma estrada
Ou confinado e no final um suicida
Já velho ou jovem ou pior, piá
Demarcação já!
A sua morte sociocultural
Em outros termos, por nos condoermos
E termos como belo e absoluto
Demarcação já!
Estão em nós, e somos nós, pois índio é nós
É quem dentro de nós a gente traz, aliás
De kaiapós e kaiowás somos xarás Xará
Demarcação já!
A comover-nos ao olhar e ver
As árvores, os pássaros e rios
A chuva, a rocha, a noite, o sol, a arara
E a flor de maracujá
Demarcação já!
Demarcação já!Por um mundo melhor ou, pelo menos
Algum mundo por vir; por um futuro
Melhor ou, Oxalá, algum futuro
Por eles e por nós, por todo mundoQue nessa barca junto todo mundo táDemarcação já!
Demarcação já!
Já que depois que o enxame de Ibirapueras
E de Maracanãs de mata for pro chão
Os yanomami morrerão deveras
Mas seus xamãs seu povo vingarão
E sobre a humanidade o céu cairá
Demarcação já!
Demarcação já!
Já que, por isso, o plano do krenak encerra
Cantar, dançar, pra suspender o céu
E indígena sem terra é todos sem a Terra
É toda a civilização ao léu
Ao deus-dará
Demarcação já!
Demarcação já!
Sem mais embromação na mesa do Palácio
Nem mais embaço na gaveta da Justiça
Nem mais demora nem delonga no processo
Nem retrocesso nem pendenga no Congresso
Nem lengalenga, nenhenhém nem blablablá!
Demarcação já!
Demarcação já!
Pra que nas terras finalmente demarcadas
Ou autodemarcadas pelos índios
Nem madeireiros, garimpeiros, fazendeiros
Mandantes nem capangas nem jagunços
Milícias nem polícias os afrontem
Vrá!
Demarcação ontem!
Demarcação já!
E deixa o índio, deixa o índio, deixa os índios lá