Desigualdades sobrecarregam mulheres no cuidar

Desigualdades de gênero e raça sobrecarregam mulheres no cuidar

Tema da redação do Enem vai ganhar política nacional em 2024

Por Rafael Vilela/Agência Brasil

Como em todos os anos, o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tem ampla repercussão no país. Na tarde deste domingo (5), primeiro dia das provas do Enem 2023, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgou o tema do dissertativo exigido pelo exame: “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela no Brasil”.

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua 2022, elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres dedicam, em média, 21,3 horas semanais aos afazeres domésticos e cuidados de pessoas, enquanto os homens utilizam 11,7 horas. Ao detalhar a proporção do trabalho doméstico entre as mulheres, a pesquisa verificou que as pretas têm o maior índice de realização das tarefas (92,7%), superando as pardas (91,9%) e brancas (90,5%).

Essa situação, na avaliação de especialistas ouvidas pela reportagem, penaliza excessivamente as mulheres, principalmente negras, criando barreiras para entrada no mercado de trabalho em igualdade de condições, bem como para a participação na pública e em outros espaços sociais ainda dominado por homens.

“É uma realidade para a qual não se presta muita atenção, há uma naturalização de que a tarefa de cuidar das pessoas é algo que compete às mulheres, algo que se entende como uma natureza feminina. Isso tem a ver como uma forma que se organiza as tarefas de gênero na sociedade, a provisão de recursos, o que sobrecarrega as famílias”, aponta a socióloga Laís Abramo (foto), secretária nacional de Cuidados e Família, órgão vinculado ao Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS).

Para ela, que está à frente de um grupo de trabalho (GT) para elaborar a Política Nacional de Cuidados, o tema ter sido cobrado na redação do Enem é algo muito necessário. “Sabemos da importância dessa prova em termos de democratização do acesso ao ensino superior e de que todos os temas colocados na redação são momentos de reflexão. Quando vi, fiquei muito contente”, comentou em entrevista à Agência Brasil.

A expectativa de Laís Abramo é que, em maio do ano que vem, o governo federal apresente propostas de um marco normativo que reconheça efetivamente o direito ao cuidado, e os direitos de quem cuida, além de fomentar a ampliação de já existentes e até mesmo a criação de novos direitos.

A jornalista e pesquisadora Ismália Afonso, oficial para os temas de gênero e raça do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Brasil, também destaca o alcance que o assunto ganhou ao ser cobrado na prova do Enem, “que tem uma força para pautar do debate público”. “Além disso, o tema da redação parte da ideia de que a gente olha para desigualdade, não se discute se o problema existe ou não. Isso nos coloca em outro patamar de discussão”, observa.

Autora do livro Nem trabalha nem estuda? Desigualdade de gênero e raça na trajetória das jovens da periferia de Brasília (Appris, 2018), a pesquisadora também argumenta que a invisibilidade do trabalho de cuidado feito por mulheres, não apenas no Brasil, é uma expressão da desigualdade de gênero, ou seja, da estrutura social que valoriza homens e mulheres de maneiras diferentes. “Homens não são preparados para naturalizar certos tipos de trabalho, enquanto mulheres são socialmente construídas para isso. Ainda que haja legislações que remunerem mulheres pelo trabalho de cuidar, a gente precisa fomentar uma mudança cultural”, defendeu em entrevista à Agência Brasil.

Referências internacionais
A retomada das políticas sociais por igualdade de gênero no país, que foram descontinuadas nos últimos anos, também busca colocar o Brasil no patamar de outros países latino-americanos que avançaram nos últimos anos. Um decreto editado pelo governo argentino, em 2021, passou a reconhecer o cuidado materno como de serviço considerado para a concessão de aposentadoria.

“Estamos, desde o começo dessa discussão, olhando muito para as experiências internacionais. Existem vários países da América Latina que estão mais avançados na estruturação de políticas nacionais de cuidado”, aponta.

Laís Abramo cita uma experiência de Bogotá, capital da Colômbia, que instituiu os chamados Quarteirões do Cuidado, que são equipamentos públicos como lavanderias coletivas, cozinhas solidárias e restaurantes populares concentrados em um raio territorial pequeno, como forma mitigar o tempo e o esforço do trabalho de cuidado.

No Brasil, a secretária nacional de Cuidados e Famílias destaca, por exemplo, o pagamento adicional de R$ 150 aos beneficiários do programa Bolsa Família com crianças até 6 anos de idade, que foi instituído em março. “O cuidado é um direito humano. Todas as pessoas precisam de cuidado. E a gente entende que o cuidado é um trabalho, que implica muitas horas diárias ao longo da vida inteira. Você não pode fazer com que a provisão desse cuidado recaia sobre as mulheres de maneira não remunerada”, argumenta Laís Abramo.

Na próxima quarta-feira (8), em Brasília, o governo federal vai sediar um seminário internacional, envolvendo altas autoridades da área de assistência social dos países do Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai), justamente para debater o fortalecimento de políticas públicas sobre o cuidado. O evento ocorre no contexto da presidência temporária do Brasil à frente do bloco regional sul-americano.

Propostas em debate
Entre as propostas que estão em debate no GT criado pelo governo federal está a ampliação da licença-maternidade para mães que estão fora do mercado de trabalho. A licença-paternidade, atualmente de apenas 5 dias para trabalhadores com carteira assinada, é considerada insuficiente por especialistas. Também está em a ideia de instituir uma licença-parental, que seria um período de afastamento a ser dividido entre os pais ou responsáveis legais da .

Há também metas na área da educação que têm impacto direto na mitigação desse trabalho não-remunerado, como a meta de ampliar o acesso à creche para 50% das crianças de 0 a 3 anos. Atualmente, essa cobertura está em 35%. A ampliação da em tempo integral desde o Ensino Fundamental também é considerada medida fundamental para evitar que mulheres tenham que abdicar de trabalho ou carreira para cuidar dos filhos durante o turno em que não estão na escola.

Para Ismália Afonso, enfrentar esse desafio requer um leque amplo de medidas, inclusive um novo pacto social. “Precisamos atuar tanto do ponto de vista das políticas públicas quanto do ponto de vista de um novo acordo social, sobre quem faz o quê dentro das famílias, dentro do trabalho não remunerado e dentro da estrutura social que atribui poderes diferentes para homens e mulheres”, diz.

Edição: Sabrina Craide

Fonte: Agência Brasil Capa: Elza Fiuza


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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