Desmatamento da Amazônia
- Aproximadamente 1/5 da floresta amazônica foi derrubada, e quase 80% desse desmatamento são atribuídos à indústria pecuária, segundo o novo documentário “Sob a Pata do Boi”.
- Muitos fazendeiros defendem, sem restrições, o desmatamento, provavelmente porque se sentem a salvo de sanções por parte da legislação brasileira e protegidos pela bancada ruralista, o poderoso lobby do agronegócio que tem grande influência no Congresso e na administração Temer.
- Um dos maiores causadores do desmatamento é a “lavagem do gado”, técnica ilícita de criar gado em terras recém-desmatadas, com registros falsificados ou com transferência de gado de um pasto ilegal para um legal antes de serem enviados para os abatedouros. Uma fiscalização mais eficiente poderia ajudar a identificar e a coagir essa prática
- Sanções e incentivos por parte do governo ou do setor bancário são ineficientes em motivar os pecuaristas a abandonar o desmatamento e em estimular técnicas sustentáveis de manejo de animais na Amazônia brasileira.
“O gado é o pior problema ambiental na Amazônia e no mundo todo”, afirma Paulo Adario, do Greenpeace, em documentário que ganhou o prêmio “One Hour” do festival “Film Research and Sustainable Development” (FreDD), em abril deste ano.
Em seu documentário inovador, “Sob a Pata do Boi, o diretor Marcio Isensee e Sá alerta o público para o fato de aproximadamente 1/5 da Amazônia ter sido desmatada, e afirma que quase 80% desse desmatamento são atribuídos à indústria pecuária. O documentário retrata a história da invasão de fazendeiros que a Amazônia sofreu e investiga a responsabilidade dos principais atores na cadeia produtiva, incluindo os criadores de gado, os abatedouros e o governo.
No documentário, fazendeiros amazonenses trabalhando em áreas desmatadas levantam um tema recorrente: um sentimento de impunidade diante das restrições governamentais quanto ao uso da terra e à imposição de multas ambientais. De acordo com especialistas, a vantagem que os fazendeiros tiram da lei é facilitada pela bancada ruralista, o lobby do agronegócio que tem grande influência na política brasileira – esse grupo poderoso inclui quase metade dos deputados da Câmara, domina a formulação de políticas na administração Temer, e geralmente favorece os interesses dos fazendeiros.
No que talvez é considerada a revelação mais impressionante do filme, que documenta o casamento do agronegócio com a política, o ex-ministro do meio ambiente, José Sarney Filho, declara que tinha informações em primeira mão da operação Carne Fria, que aconteceu em março de 2017 e que condenou empresas frigoríficas e seus parceiros por desmatamento.
A entrevista foi concedida poucos dias antes de Sarney Filho publicar um vídeo direcionado a figurões do setor agrícola, em que se desculpa pela natureza inoportuna da operação federal, e afirma que ele não havia sido avisado de antemão pela agência ambiental brasileira de que a operação iria acontecer.
A ligação da criação de gado com o desmatamento
O documentário apresenta um importante histórico sobre como o desenvolvimento da pecuária levou ao desmatamento da Amazônia. Usando arquivos de entrevista e vídeos, Sá mostra como o governo brasileiro começou a incentivar a ocupação da então Amazônia intocada por empreiteiros e fazendeiros na década de 1960, com o objetivo de colonizar a terra antes que estrangeiros a tomassem. Estradas financiadas pelo governo federal foram abertas na floresta tropical ao longo dos anos 1970, e candidatos a fazendeiros foram encorajados a transformar terras públicas em pasto. O incentivo: se os fazendeiros não desmatassem pelo menos 50% da propriedade onde trabalhavam, eles não ganhariam do governo a posse da terra.
Geralmente, o corte de árvore era feito de forma manual, em condições análogas à escravidão. Um fazendeiro relata como ele e um vizinho coagiram duzentos homens a derrubarem árvores em suas porções de terra em 1994.
“Nós alugamos um barracão, contratamos um cozinheiro e demos muita cachaça para os trabalhadores. Fomos a todos os bordéis, hotéis e esquinas para contratar homens, pagamos as contas deles e os levamos para o barracão. Dois pistoleiros ficavam na porta da frente e dois na de trás, garantindo que ninguém fugiria. Eles ficaram lá contra a vontade deles, né? Não os deixamos sair”.
Ele conta como a polícia apoiava essa ação, escoltando os cativos em fila única do barracão até uma balsa, para que eles não tentassem fugir. Em terra, eles eram forçados a caminhar 15 quilômetros mata adentro e obrigados a cortar as árvores.
“Se era trabalho forçado?”, ele pergunta, rindo, “Talvez, mas não havia alternativa. Era a realidade daquele mundo”.
Apenas na década de 1990 é que ONGs ambientalistas descobriram sobre os índices alarmantes de desmatamento da Amazônia. Em 2004, notícias sobre a perda de uma área da floresta equivalente ao tamanho da Bélgica resultaram em pressão internacional sobre os abatedouros, para que eles parassem de comprar carne de pecuaristas que haviam desmatado terras ilegalmente.
Em 2009, os três maiores abatedouros brasileiros com operações na Amazônia – JBS, Marfrig e Minerva – assinaram um acordo de desmatamento zero com o Greenpeace e com o governo brasileiro, no qual eles se comprometeram a comprar gado de fazendeiros que seguiam a lei.
Lavagem de gado
De acordo com o Código Florestal Brasileiro, donos de terra na Amazônia só podem cultivar, legalmente, 20% de sua propriedade. O restante da terra deve ser preservado como vegetação nativa. No entanto, com o histórico de apoio governamental ao desmatamento, junto à complacência atual na aplicação da lei, muitos fazendeiros se recusam a obedecer ao Código, pois não encontram muitos benefícios ao fazê-lo, e acabam buscando brechas para que possam transformar suas terras improdutivas em pastos lucrativos.
Muitos entrevistados no documentário defendem claramente seus próprios interesses. Um fazendeiro explica que é muito mais rentável criar gado na Amazônia do que cultivar qualquer outra coisa: “Nunca vou parar de criar gado. Nunca. Enquanto eu viver, vou continuar a trabalhar”, afirma. Esse homem afirma que seus amigos fazendeiros encontram formas para continuarem a vender gado ilegalmente para os abatedouros, mesmo depois de serem autuados por desmatamento.
Uma técnica utilizada é a de continuar a engordar o gado em terras desmatadas ilegalmente, transferir o gado para um pasto legal dias antes de encaminhar os animais para os abatedouros, escondendo, assim, sua verdadeira origem. Ou então, os fazendeiros podem falsificar os registros, usar parte de suas terras e criar o gado em nome de outros membros da família. Essas técnicas são conhecidas como “lavagem de gado” e são recorrentes na Amazônia brasileira, afirmam os especialistas.
Um estudo recente, publicado em janeiro deste ano, confirma as histórias contadas no documentário, fornecendo provas de que os acordos de desmatamento zero feitos com abatedouros apresentam pouco ou mesmo nenhum efeito no comportamento dos fazendeiros. Os pesquisadores cruzaram informações coletadas sobre os locais de vacinação de gado e descobriram que centenas de milhares de gados continuam a pastar em áreas no sudeste do estado do Pará, áreas essas que deveriam ser excluídas da cadeia de produção de carne, segundo os termos dos acordos.
Um dos principais problemas é a falta de transparência na cadeia produtiva de carne do país. As maiores empresas frigoríficas do país operam em uma cadeia complexa: pecuaristas estão sempre comprando, vendendo e revendendo gado, mudando os animais de fazenda para fazenda, o que torna extremamente difícil a identificação da origem de cada cabeça de gado. Enquanto empresas como a JBS, Marfrig e Minerva contam com a negligência de seus fornecedores diretos, elas não recebem a mesma omissão de seus fornecedores indiretos – e aí, segundo os especialistas, é que a maior parte da lavagem de gado acontece.
Carne sustentável dá esperança às florestas
Nem tudo é notícia ruim para as florestas. O documentário lança um pouco de esperança quando foca na criação sustentável de gado, o que já é feito por alguns fazendeiros na Amazônia. Um entrevistado explica como ele faz com que o pasto em terras degradadas seja catorze vezes mais eficiente do que em outras fazendas: ele divide sua terra em blocos, planta grama em todo canto, e então muda o gado de um bloco para outro.
“Quisemos incluir pessoas (no documentário) que são mais progressistas e que estão tentando fazer a coisa certa”, explica Paulo Barreto, pesquisador-sênior da Imazon, que contribuiu para o documentário. “Tínhamos conhecimento dessas pessoas e é bom que eles digam, com as próprias palavras, que não precisamos mais de desmatamento”.
Mas o desafio que os ambientalistas enfrentam é como aumentar essas técnicas de criação pouco utilizadas, mas que são viáveis e sustentáveis.
“Esses métodos são bem avançados. No entanto, eles demandam conhecimento e muito investimento para funcionarem, duas condições que não são encontradas tão facilmente em fazendeiros da Amazônia”, afirma Eduardo Pegurier, professor na PUC do Rio de Janeiro, editor da agência brasileira de notícias ((O)) eco e um dos produtores de “Sob a Pata do Boi”.
A morosidade do governo quanto ao desmatamento causado pela criação de gado e a falha do estado em oferecer incentivos para encorajar a criação sustentável são parte do problema. No momento, há poucas iniciativas voltadas à melhoria do cultivo de pasto e ao monitoramento mais eficiente do desmatamento que ocorre na cadeia de produção, de forma direta e indireta, até chegar aos frigoríficos.
Um dos programas sustentáveis é promovido pela Pecsa, empresa de gestão agropecuária com sede no Mato Grosso, que ajuda fazendeiros a transformar terras extremamente degradadas em pastos produtivos, reduzindo, assim, o desmatamento. A Pecsa assume a gestão de fazendas há seis ou oito anos, e tem feito com que as propriedades que ela gerencia sejam quase sete vezes mais produtivas, além de supervisionar fornecedores diretos e indiretos de gado. A empresa, que atualmente gerencia dez mil hectares, recebe financiamento do Fundo Europeu de Investimento, o que significa que os fazendeiros que contratam seus serviços não precisam pagar nada.
“Queremos crescer na região do Mato Grosso”, declarou à Mongabay Laurent Micol, fundador da empresa. “Assim que alcançarmos um bom patamar, estaremos prontos para replicar o programa na Amazônia”.
Entretanto, alerta Barreto, o sucesso desses programas sustentáveis depende muito de uma mudança do mercado. O desmatamento da Amazônia é, hoje, muito rentável para os criadores de gado, e isso precisa mudar para que a criação sustentável tenha alguma chance.
Muitos argumentam que, para cortar a ligação existente entre o desmatamento e a criação de gado, o governo precisa desincentivar o desmatamento. Os fazendeiros precisam pagar multas pesadas ou serem presos por infringir a lei, além de serem impedidos de vender para o mercado nacional e internacional caso provoquem desmatamento.
Barreto acredita que a atual falta de sanção por parte do governo e sua relutância em punir de forma severa os transgressores ambientais apontam para a necessidade de uma nova abordagem. Os produtores nacionais e internacionais de carne, afirma, deveriam impor regras rigorosas quanto à compra e investimentos feitos pelos abatedouros.
Aumentando a pressão estatal sobre os abatedouros
Muitos ambientalistas defendem o aumento da pressão legal sobre os abatedouros que compram carne da Amazônia Legal. Eles destacam que somente 110 abatedouros são responsáveis por processar 93% de todo o gado da Amazônia brasileira. Com a pressão governamental, a transparência na cadeia produtiva poderia aumentar em meio aos produtores de carne, permitindo que eles rastreiem toda a carne comprada, incluindo a carne de fornecedores indiretos, que são os maiores responsáveis pelo desmatamento.
No momento, nenhum dos três maiores frigoríficos dispõe de programas de monitoramento.
Barreto destaca o papel fundamental que o Ministério Público Federal poderia ter ao investigar os abatedouros e responsabilizá-los por falharem na supervisão de sua cadeia produtiva. Na verdade, muitos promotores federais do Amazonas estão intimando os abatedouros para que passem por auditoria.
O estado do Pará se tornou o primeiro a publicar esse tipo de informação detalhadano mês passado. Foi pedido aos frigoríficos que respondessem um questionário sobre o gado que eles compraram em 2016, e de acordo com os dados, mais de 146 mil cabeças de gado foram adquiridas de terra desmatada. A JBS se saiu pior em comparação com as outras empresas auditadas. A empresa foi responsável por 84.420 cabeças de gado, 57% do gado proveniente de áreas desmatadas ilegalmente naquele ano, e recebeu 19% da pontuação em desacordo com as normas de compliance. A MasterBoi foi responsável pela segunda maior marca de gado advindo de terra desmatada com 28.231 cabeças, e a Frigol ficou em terceiro lugar, com 8.290 cabeças, seguida pela Aliança, com 7.530 cabeças de gado.
Considerada uma atitude insatisfatória pelos ambientalistas, os promotores federais do Pará decidiram não aplicar sanções contra os abatedouros que apresentaram resultados ruins nas auditorias de desmatamento. De acordo com o procurador geral Daniel Azeredo, que supervisiona os acordos de desmatamento zero desde 2009, fica a cargo do mercado a gratificação às empresas que apresentarem os melhores resultados, algo que poucos especialistas acreditam que possa acontecer.
A promotoria do estado do Mato Grosso ainda vai divulgar os resultados das auditorias de gado e desmatamento que recebeu dos abatedouros. O procurador geral do Mato Grosso declarou à Mongabay que ainda não há uma data certa para a divulgação dessas informações porque os promotores ainda não conseguiram derrubar as políticas de proteção de dados dos abatedouros.
Um dos criadores de gado entrevistados para o documentário resumiu a atual situação: “A lei é fraca, não pune ninguém”.
No momento, sem nenhuma ação por parte do governo, parece que nada vai acontecer para mudar a situação atual ou para acabar com o desmatamento ilegal destinado ao pasto na Amazônia. É possível, apesar de especialistas acreditarem ser improvável, que a situação mude com as eleições de outubro no Brasil.
Seguindo o dinheiro
Barreto acredita que há outras coisas que poderiam ser feitas para resolver o problema além de penalizar aqueles que compram gado criado em terras recém-desmatadas. Os bancos são, historicamente, os maiores patrocinadores dos conglomerados de frigoríficos no Brasil, mas eles poderiam pressionar os abatedouros, com sua rede de relacionamento, na questão do desmatamento ilegal que ocorre na cadeia de produção.
Por exemplo, o banco nacional de desenvolvimento, BNDES, tem 21% das ações da JBS, sendo capaz, portanto, de pressionar economicamente o frigorífico. Na verdade, a estatal norueguesa Norwegian Oil Fund, que investiu 144 mil dólares na JBS, foi criticada há pouco por não questionar o desmatamento na cadeia de produção do frigorífico.
É importante também que o público tome conhecimento da destruição alarmante que a floresta tropical sofre nas mãos da indústria pecuária. E este é o papel do “Sob a Pata Do Boi”, um documentário produzido pelo ((O)) eco e Imazon, patrocinado pela Fundação Gordon e Betty Moore e pela Agência Norueguesa para a Cooperação do Desenvolvimento (Norad). Ele oferece um panorama inestimável sobre o dano ambiental causado pelos fazendeiros e fornece um modelo de alternativa ao mesmo tempo sustentável e lucrativa.
A solução mais prática é clara: pesquisadores acadêmicos e ambientalistas concordam que já existe uma imensidão de terras degradadas na Amazônia que poderiam ser aproveitadas por criadores de gado, e não há necessidade de se desmatar mais. Tudo o que é necessário é vontade, punição e iniciativa do mercado para que haja mudanças positivas nesse cenário.
ANOTE AÍ
Fonte: MONGABAY
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