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Dirce Machado: a Guerrilheira de Trombas

Dirce Machado: a Guerrilheira de Trombas

Esta é a história verdadeira de Dirce Machado, professora, enfermeira, parteira – Uma mulher guerrilheira

Por Laurenice Noleto Alves (Nonô Noleto)

Suas falas já correram o mundo, junto com histórias escritas e filmadas sobre a chamada “Revolta de Trombas” ou “Revolta de Trombas e Formoso”, que aconteceu de 1950 a 1964. Eu a vi pela primeira vez numa solenidade realizada na Assembleia Legislativa do Estado de Goiás, quando, junto com mais 14 mulheres anistiadas políticas, recebemos uma homenagem como “Mulheres de Luta”. 

Dentre todas, já com os cabelos muito brancos, voz e caminhar suaves pelo tempo, Dirce era a mais notável. Depois, estive duas vezes em sua casa, antes e após a Pandemia. Agora com 88 anos, os cabelos mais brancos e a voz muito firme e lúcida, ela se lembra dos tempos em que já era uma responsável senhora guerrilheira de Trombas. 

Dirce nasceu em 4 de setembro de 1934, quando o Estado ainda não era dividido como hoje, em Goiás e Tocantins, o que acontece somente depois da Constituição de 1988. As informações aqui publicadas são baseadas em longas e gostosas conversas que tivemos em sua casa, em Goiânia; em depoimentos seus à Associação Goiana dos Anistiados; em entrevista e palestras proferidas; pesquisa em livros, estudos e no vídeo “História de Formoso de Goiás” dirigido por Hélio Brito, que reproduz as lutas pela terra no norte de Goiás, em Trombas e Formoso, região hoje legalmente  reconhecida como dois municípios: Trombas e Formoso.

Conta a própria Dirce que, desde menina trabalhava com a mãe na cozinha de sedes de fazendas onde o pai trabalhava como arrendatário ou “meeiro”, como se diz aqui em Goiás. E assim, desde bem pequena, com sete, oito anos, já trabalhava na cozinha. Mal alcançando as colheres de pau para mexer nas panelas do fogão à lenha e levantando antes até dos galos começarem sua cantoria. A lida das mulheres na roça se iniciava assim, ainda de madrugada. 

“Antes mesmo de preparar o café, minha mãe fazia paneladas de arroz, carne e pelo menos uma mistura (verduras ou legumes); ajeitava as porções de comida nas marmitas, bacias ou apenas em velhas cuias, amarrando firmemente cada uma à sua tampa com um pedaço de pano bem branquinho que ela lavava todos os dias no rego d´água que passava nos fundos da casa do patrão. Só depois dessa tarefa cumprida, minha mãe e eu começávamos a próxima etapa: passar o café, ferver o leite e fazer uma farofa de ovos – quando tinha ovos.

Mas já teve dia em que a mãe teve que fazer uma farofa de jiló para que todos peões comessem antes de nascer o sol. E quando acabavam de tomar o café, cada qual passava a mão na sua trouxinha com o almoço, que só seria aberta por volta do meio dia, lá mesmo no mato.

E tinha dias em que também eu e minha mãe, depois de arrumarmos a cozinha, ainda íamos ajudar o pai na roça – quase sempre bem longe da sede da fazenda. As mulheres eram praticamente escravas, sem direito algum. Eu e minha mãe trabalhávamos de graça. A gente não tinha valor de  nada. Era instrumento.”

Dirce informa que, anos mais tarde, o pai tornou-se arrendatário de uma pequena gleba de terra no município do sudoeste goiano então conhecido como Rio Verde das Abóboras. Foi ali que ela entrou para o Partido Comunista Brasileiro, o PCB ou Partidão, como era chamado, por ser o maior partido de esquerda do Brasil e da América Latina. Mas tudo aconteceu segundo ela própria, quando tinha apenas 12 anos, “por uma coincidência”. 

“Lá na roça ninguém nem sabia o que era um partido”, conta Dirce. Mas, segundo ela, tudo começou quando um tio dela, na verdade o marido de uma prima chamado Agenor Diamantino, que era maçom, foi eleito deputado estadual pelo PCB, que à época era um partido legalizado. 

O pai dela tinha plantado 1.500 pés de café “à meia” – era “meeiro” – o dono da fazenda pegava metade da produção como pagamento pelo uso do solo. E a fazenda onde moravam e plantavam era do Sr. Jerônimo Borges de Castro, que era conhecido como Jerônimo “Moita” (apelido que ganhou porque sua terra era cortada pelo ribeirão Moita). E ele também era filiado ao PCB. 

Mas veio a Ditadura Vargas, o PCB foi extinto e os seus líderes foram todos caçados como bichos para que fossem presos e tivessem seus direitos políticos cassados. Assim, muitos caíram na clandestinidade. Um deles foi o deputado Agenor, que tinha em casa muito material de divulgação do partido e precisa se desfazer de tudo. Então, ele vai até a casa do amigo e companheiro Jerônimo, da fazenda onde Dirce morava com os pais, e lhe entrega uma carrada de livros, jornais e revistas, pedindo para queimar tudo – pois ira sumir na vida – entrar para a clandestinidade, para não ser preso.

E a menina Dirce, inquieta e preocupada com a situação de exploração que vivia a família, sem terra, ficou encarregada de fazer a queima de todo aquele rico acervo que fora escondido na tulha, em meio aos milhos e sacas de feijão e arroz. 

A seguir, toda noite, ela pegava um punhado de livros e levava para o quintal, para atear fogo. “Livro demora pra queimar, porque tem a capa dura e a gente tinha que ir desfolhando, pra colocar na fogueira, pra não deixar nenhum pedaço de folha sobrando. E eu, que era doida pra ler e não tinha nenhum livro, chorava enquanto os colocava no fogo,” conta.

E foi assim que que ela salvou da fogueira um livro com um título atraente: “O Cavaleiro da Esperança”, que contava a história de Luiz Carlos Prestes, um jovem e bonito oficial do exército brasileiro que virou presidente do PCB, foi eleito deputado Constituinte e ídolo da esquerda no Brasil. 

E Dirce lia e chorava tanto, que a mãe a proibiu de continuar lendo. Então ela começou a ler escondido. Pouco tempo depois, ainda com 12 anos incompletos, ela ajudou a esconder na fazenda um grupo de foragidos comunistas. E lá, eles fizeram uma reunião com o dono da fazenda e muitos outros vizinhos, quando conheceu uma moça bonita e elegante de Goiânia chamada Colombina Baiocchi. 

“Ela chegou cansada, com os pés feridos – moça da cidade que não sabe andar no mato. Ainda mais à noite! Mas, a polícia os descobriu dias depois e também o exemplar do livro “Cavaleiro da Esperança” que eu tinha salvo. E eu era menina, mesmo, mas assumi a responsabilidade pelo livro e evitei que minha família fosse presa. Mas o patrão mandou a gente ir embora, com uma mão na frente e outra atrás.

E, somente mais tarde, por intervenção de um advogado amigo, foi que ele pagou a meu pai uma miséria pelos 1.500 pés de café que naquele ano dariam a sua primeira colheita. O pai, então, comprou um lote na Rua Lage, N. 4, lá em Rio Verde das Abóboras.

Depois, com a ajuda de parentes e amigos, construiu um casebre. Mas fiquei conhecida como “a menina comunista”. E nenhuma escola me aceitava para estudar”, disse-me ela, contando detalhes de tudo como se fosse ontem que tivessem acontecido. 

Assim, menina de 12 anos, Dirce virou fugitiva da polícia, vindo às escondidas para Goiânia, num carro, com a irmã de Colombina, a Maria Baiocchi, mais conhecida como Meire Baiocchi. E, na Capital, viveu por mais uns dois anos, onde foi novamente presa e deportada para Rio Verde, acusada de viver escondida da própria família, mas sua mãe conseguiu provar que a falsa a carta de acusação contra a filha.  E ela foi solta. Mas na mesma noite, fugiu para Itumbiara, cidade que fica à beira do Paranaíba, no limite com Minas Gerais, onde recebeu o apoio de outros camaradas ali residentes e onde morou, clandestinamente, por mais uns três anos. 

Participando já ativamente como uma filiada ao PCB, a jovem e respeitada comunista mais uma vez iniciava uma nova etapa na sua vida clandestina: saiu de Itumbiara e foi direto para a Colônia Agrícola Nacional de Goiás, a CANG. Por decisão de seu partido,  a CANG seria apenas um trampolim para que pudesse chegar a Trombas e ajudar na organização da resistência dos camponeses, que já brigavam pela manutenção do seu espaço de terra. Mas, para isso acontecer, sem chamar a atenção ou provocar suspeitas, ela deveria estar casada com um outro militante. José Ribeiro da Silva foi o escolhido como seu companheiro. 

E, numa Reunião Distrital do partido, ele a pediu em casamento. Ela disse que aceitava, mas tinha suas condições: “Você nunca vai me perguntar onde eu vou o que vou fazer e eu também nunca vou pedir que você me diga o que vai fazer ou onde vai. Você nunca vai me dar uma ordem! E mais, quero respeito a toda minha família, assim como eu também vou respeitar a sua. “

Na região Centro-Oeste do Brasil, até a metade do século 20, a maioria das pessoas vivia na zona rural. A quantidade de cidades era muito pequena, aeroportos eram quase inexistentes, assim como as rodovias federais. O transporte de gente e mercadorias era feito pelos rios Araguaia e Tocantins em pequenas embarcações ou por estradas vicinais ou tropeiras sem qualquer tipo de calçamento. 

O povoamento do centro-oeste do país só começou no governo de Getúlio Vargas com o programa Marcha para o Oeste. Entre as metas do programa estava a abertura de novas fronteiras agrícolas e a integração de novas regiões ao circuito produtivo do país. Esta última, com vistas à criação de mão de obra barata para atender à demanda da industrialização do sudeste do Brasil. 

Dentro desse programa, o Governo Federal criou oito colônias agrícolas, sendo a primeira delas a Colônia Agrícola Nacional de Goiás (CANG), no médio norte goiano, em 1940, numa região às margens do Rio das Almas, conhecida como Vale do São Patrício. Já pensando no próximo projeto da Marcha para o Oeste, que seria a construção de uma rodovia federal rumo ao norte do país, onde até então só existia mata e estradas vicinais, Getúlio Vargas entrega o comando da Colônia ao engenheiro Bernardo Sayão. Mais tarde, Sayão viria a ser o responsável pela construção dessa  nova estrada federal, a BR-153, popularmente denominada rodovia Belém-Brasília. 

Como um projeto isolado, sem que fosse feito uma verdadeira Reforma Agrária no país, ele não conseguiu abrigar o número de trabalhadores que ali chegava com suas famílias  e com toda a tralha, vindos de várias partes do país em busca de um pedaço de terra para viver e plantar. Em poucos meses já não havia terra a ser ocupada e essas famílias foram se fixando em volta da sede administrativa da Colônia dando origem, posteriormente, às cidades de Rialma e Ceres. 

Atraído pela propaganda da CANG, em meio a essa leva de sem-terra, em 1950, chega também o camponês José Porfírio, vindo de Pedro Afonso, no norte de Goiás, e encontra todas as glebas  já distribuídas, tudo já saturado. Mas, apesar da decepção, Porfírio fica sabendo que ao norte da Colônia existiram terras férteis em uma região conhecida como Formoso e Trombas.

Assim, voltou à sua terra natal, Pedro Afonso, às margens do rio Tocantins, e organizou uma caravana de parentes e amigos, cerca de 20 famílias, e durante cerca de 130 dias percorreu mais de 600 quilômetros a pé ou a cavalo. “No caminho, nasceu até uma criança, o que era um bom sinal”, conta Dirce. 

No entanto, as informações são de que o primeiro ano nas terras novas foi de muitas dificuldades para os retirantes, mas o segundo ano já foi melhor e José Porfírio fez uma coleta de dinheiro junto à comunidade e foi até Goiânia, capital do Estado, para checar as informações sobre aquelas terras. Ali, ficou sabendo que as terras de Trombas eram mesmo devolutas e poderiam ser registradas por quem nelas estivesse vivendo. Nessa época, Formoso já era um povoado. 

Zé Porfírio volta e tranquiliza os posseiros, que nessa altura já somava mais de 500 famílias. Todas retomam os trabalhos na lavoura com muito mais animação, em regime de comunhão, conseguindo grande fartura para todos em pouco tempo. Mas a notícia de que por aquelas terras passaria uma rodovia federal chama a atenção de comerciantes e fazendeiros das cidades goianas vizinhas de Porangatu e Uruaçu.

E, em pouco tempo, com a ajuda do judiciário local, começa ali uma verdadeira operação de guerra, com forças policiais obrigando os posseiros a deixar a terra, tocando fogo nas suas roças e casas. Toda a ação deles era baseada em um documento de 1775, ainda o Brasil Colônia de Portugal, que cedia a gleba de terra em regime de Cesmaria a  um senhor que jamais ocupou a área. 

E coube ao líder José Porfírio provar, na Justiça, que os posseiros estavam com a razão. Então ele viajou para o Rio de Janeiro e contam que ele chegou a falar com o presidente Getúlio Vargas e que ouviu dele que tinham mesmo direito, pois a terra era devoluta, e que deveria voltar pra sua terra e sua gente. Há informação de que a carta que Porfírio levou ao Presidente encontra-se no Arquivo Nacional.

Ao retornar dessa viagem ao Rio de Janeiro, que ainda era Capital Federal, Zé Porfírio encontrou a sua própria casa em chamas. E, em frente, assistindo aquele incêndio criminoso, estavam sua mulher Rosa e os filhos. Rosa nunca mais se recuperou daquele estado de choque e faleceu poucos meses depois, doente dos nervos, sem comer nada e muito enfraquecida. Tinha apenas 28 anos de idade. 

Os jagunços contavam com o apoio do batalhão local da Polícia Militar do Estado de Goiás (PM-GO) em seus esforços para invadir e ocupar Trombas. A tensão entre os dois lados era muito grande. Soldados passaram a captar líderes posseiros sistematicamente, mas a turma do Zé Porfírio, fundamentando-se em documentos de todos os órgãos federais que davam aquelas terras como devolutas, resistiu, lutou e não deixou seu pedaço de chão. Ao contrário, a cada dia de luta e resistência, os posseiros e as posseiras se viam mais corajosos e organizados.

Criaram uma escola, onde Dirce dava aulas, e a Associação dos Lavradores de Trombas, que já nasceu forte e orientando a todos a se recusarem a assinar os documentos que lhes eram apresentados pelos soldados, grileiros e seus capangas.

Nesses documentos, explicavam que, se assinados, estariam concordando em pagar aos fazendeiros parte de suas produções, o que, no fundo, estariam reconhecendo serem os fazendeiros os verdadeiros donos daquelas terras. Resistiram ao terror de ficarem sitiados, mesmo quando muitas de suas casas e roças continuaram sendo queimadas, e companheiros presos, torturados, e até mortos.

Nessa altura, o conflito agrário já  conhecido como “Rebelião de Trombas”, ganhou as páginas dos jornais goianos e nacionais, além do apoio e reforço de jovens da União Nacional dos Estudantes (UNE) e do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que àquela época passava por um período de legalidade.

E foi nesse período que o partido decidiu que um grupo de camaradas (como os militantes comunistas se chamam) seria enviado a Formoso para participar da luta e orientar a peãozada, que se encontrava enfrentando os bandidos, sem saber como se defender.

E foi assim que Dirce, que desde criança já sabia o que queria da vida, mas agora já com uma força e garra sem limites, se ofereceu para ir para a região do conflito e atuar como professora. E a direção do PCB, ainda com normas muito machistas, obrigou-a primeiro a se casar com um outro militante comunista, para depois, juntos, irem morarem em Trombas e viverem como posseiros.

“Eu, novinha do jeito que era, nas mãos do partido era uma batata quente, porque o próprio partido tinha um preconceito muito grande com as mulheres” – explica. Mesmo assim, aceitei o casamento, mas deixando claro que não aceitaria cabresto de nenhum homem, nem mesmo de marido.”

E, lá se foi o casal de comunistas para Trombas!

“Nós – eu e meu marido, conta – saímos saímos lá do córrego Itapeva, de Ceres. Era muito longe. A gente viajava o dia inteiro em terra esburacada e na carroceria de caminhão porque não tinha nem ônibus. Quando chegamos lá em Trombas, eles já tinham iniciado a luta pela legalização da terra. Eram terras devolutas. E os posseiros queriam comprar as terras, mas não conseguiram.

A primeira atitude nossa foi pegar uma posse e viver como os posseiros mesmo. Porque  a gente era de origem camponesa e sabia tudo de lavoura. Era participar da vida dos posseiros, viver como posseiro e orientá-los na luta pela defesa da terra.”

“Em Trombas, conta – fazíamos tudo: a gente colhia a roça, organizava mutirão. Ora ou outra tinha umas intrigas de cerca, de gado na roça… A gente ia lá, organizava e resolvia os problemas. Eu lecionava também, mas não era educadora, eu era mesmo camponesa.

Nós os comunistas não falávamos que éramos que éramos comunistas. A gente sabia que a turma era contra. A igreja, principalmente, era ferrenha. Então, a gente levava a mensagem, mas não dizia a sigla. Nós orientávamos, eles acatavam porque sabiam que era certo e estavam precisando de apoio.

“E nós fundamos uma associação que dava aos posseiros e posseiras uma assistência jurídica e tudo – a Associação dos Posseiros de Formoso, registrada ainda no início de 1955.

Em 1964 houve uma trégua, quando Mauro Borges foi eleito. Na época do Mauro, nós, a Associação, chegávamos ao Palácio, marcávamos audiência e falávamos com o governador no mesmo dia. Ele mandava engenheiro para nós, para nos ajudar na orientação de tudo o que precisávamos.”

“Os primeiros posseiros a ocupar a região de Trombas, no município de Formoso, foi a turma dos Marinho. Uma turma muito grande, que veio para se agregar em Ceres, mas as terras já tinham acabado, e então eles desceram para o norte, porque as terras eram devolutas. E camponês para terra é como um enxame de formiga, quando um vai, vai todo mundo.

Eram umas quinhentas pessoas. E aí o povo aposseou e quando começou a beneficiar (construir suas casas, arar o terreno, plantar e colher os benefícios da terra) vieram os grileiros de Porangatu, Uruaçu e resolveram investir. Esse é um dos problemas do sistema capitalista agrário: quem tem muito, mais quer”, diz Dirce – explicando a selvageria do capitalismo.

“Além da tragédia da casa de Zé Porfírio, completamente queimada, com sua esposa e filhos em estado de choque, muitas histórias eram contadas de torturas praticadas pelos policiais e capangas contratados pelos grileiros para afugentar os posseiros, incluindo até mesmo obrigarem as pessoas de Trombas presas por eles – homens, mulheres, crianças e idosos – a comerem sapos vivos.

Depois disso, a rebelião ganhou proporção de guerra, tendo sido organizadas várias expedições militares para prender os posseiros, que conseguem se manter mobilizados 24 horas por dia, com homens e mulheres se revezando no front de batalha.

O primeiro embate, pelo que conta Dirce, foi em 1955.  Depois as forças policiais se afastaram e o Exército entrou mesmo foi em 1964, no início da Ditadura, para fortalecer aqueles que eram grandes fazendeiros ou autoridades políticas da região, querendo se apossar de mais terra.

“O povo estava desorientado, lutando para organizar a terra. Ninguém dormia mais em casa. Dormia no mato, embaixo de chuva, porque podia estar em casa e os grileiros vir e atear fogo nos ranchos. Ninguém tinha sossego. Era um terror.

Tinha o João Soares, em Formoso, que era o chefe do bando. Ele não vinha pra luta, não! Só mandava a turma dele vir nos atacar. A turma vinha e ele ficava lá. Eram pessoas de fora.  Jagunços comandados por policiais.”

Do lado dos posseiros, na vila de Trombas, que estava sendo construída nas terras de Formoso, a solidariedade, a fraternidade, eram práticas comuns, conforme narra Dirce em vários de seus depoimentos e também na primeira entrevista que me foi concedida em sua própria casa, no Parque Amazônia, em Goiânia, enquanto tomávamos café e comíamos beijú de polvilho.

Quitutes ali feitos na hora pela filha da “comadre Maria”, cujo marido, um farmacêutico da antiga CANG, também tinha sido integrante do Partidão. E assim, entre um gole e outro do cafezinho e uma mordida no beijú, ela foi me contando suas histórias e as histórias da “sua turma”. 

“A gente vivia praticamente numa comunidade socialista. Todo mundo trabalhava e compartilhava tudo. Tínhamos fartura de comida, muitas lutas, mas também tínhamos muitas alegrias. A gente vivia feliz.

Uma dessas práticas era a Traição – treição como se falava – uma reunião de pessoas para trabalhar na casa de um amigo sem que o mesmo soubesse.  O companheiro – continua narrando a professorinha emocionada – está com roça no  mato, pra plantar ou derrubar.

Aí, reúne-se todo mundo, sem ninguém comentar. Quando é de madrugada, chega todo  mundo caladinho, sem falar nada, sem fazer barulho nenhum, faz simpatia para o cachorro não latir e quando chegam perto da casa, soltam foguetes, fazem aquele arroubo todo e assustam tanto o dono da casa que, às vezes, ele até veste a roupa do avesso (risos). 

E aí pedem café pedem comida, e deixam ele no sufoco. Mas aí vem logo uma comitiva trazendo o almoço pronto para o dia. E o trabalho que ele iria fazer sozinho na roça é feito por toda a companheirada.  Ao final, quando sol já começa a declinar, a turma para de trabalhar e vem as cantorias e as danças. Só alegria.”

E, continuando sua detalhada narrativa, às vezes repetindo partes, mas ressaltando ser “na verdade, o resumo da história”, Dirce Machado conta que em Trombas atuavam num sistema de guerrilha, que chamavam de “guerra fria”: “A polícia ficava em Formoso, e nós, no mato, na região que chamávamos de Trombas. Nós tínhamos as matas, os rios, as moitas e as pedras que eram as nossas defesas.

E o camponês, quando cai no meio do mato, para se esconder, ele anda igual bicho do mato mesmo, não faz nem barulho! A gente conhecia tudo. Nem nós íamos a Formoso e nem Formoso vinha até nós. Se entrássemos lá era perigoso. Isso durou uns três anos.”

Zé Porfírio, segundo Dirce, era um desses camponeses bonachões que não se preocupava com a própria roupa ou com o barracão onde morava.  “Ele saía com o bolso da calça cheio de farinha, de rapadura, para comer com pequi no cerrado.

Ele podia até tá indo para uma tarefa muito importante, mas se sentisse cheiro de abelha no ar não tinha tarefa; ele parava, cortava o pau e ia comer o mel. Ele ficou viúvo quando os jagunços queimaram a casa dele. A mulher dele estava de resguardo há poucos dias, era cardíaca e morreu poucos meses depois.”

Em 1962, Zé Porfírio foi eleito deputado estadual com o apoio de toda a sua companheirada de lutas no campo e também do PCB e dos movimentos de estudantes secundaristas e universitários, porém pelas siglas PTB-PSB. Foi o mais bem votado da história de Goiás, até então. 

E o primeiro – talvez o único, até hoje – trabalhador rural eleito deputado no Brasil.  Mas foi cassado e preso pela Ditatura Militar em 1972. Depois disso, não se teve mais notícias dele. 

Dirce Machado lembra que na região de Formoso e Trombas o povo era muito conservador e as mulheres tratadas como posse, como terra; que não tinham direito sequer de dar um copo de água para alguém  que chegasse,  caso o  marido não estivesse em casa.

Mas, com a perseguição doas jagunços elas tiveram que lutar por sua sobrevivência e a dos filhos, pois os maridos ficavam o tempo todo envolvidos na luta. 

– Quando não estavam no piquete, estavam no mato, escondidos. Aí tinham as roças, tinham os filhos, tinha alguma criação, tinha que angariar a sobrevivência. E as mulheres tiveram que se organizar. Angariavam comida. Angariavam coisas.

A gente cozinhava e levava até certo ponto, porque a gente não podia descobrir onde eram os piquetes, por uma questão de segurança, mesmo – deles e nossas. Esquema de guerrilha.

Um dos homens nossos vinha até um local combinado, pegava a comida e levava para os piquetes.  Então a gente, as mulheres, começou a se organizar. E tínhamos que saber atirar, que saber se defender, montar guarda, levar recado, dar comida para os homens no piquete, tinha que colher as lavouras – às vezes plantar; tinha que cuidar dos filhos, cuidar das companheiras doentes.

Tinha que cuidar de tudo, inclusive da orientação certa de pessoas estranhas que entravam na região. Era um serviço muito pesado para as pessoas que não tinham, até aquela época , vivido uma fase dessas.

“Teve uma vez que os homens vieram depositar as armas, continua Dirce. Aí duas companheiras pegaram as carabinas e falaram que a estrada não ia ficar aberta, porque era o ponto principal antes de Trombas. Uma velha que era matriarca, comadre Onília –  uma maranhense – ficou muito enfezada.

Para o maranhense você falar que vai “frouxar o riacho” é pior que qualquer nome que você xingar. Frouxar o riacho é ficar com medo, sujar as calças. Aí ela chegou, andou na sala onde estavam os homens, colocou o dedo no nariz de todo mundo e disse: vocês frouxaram o riacho, homens frouxos!

Então colocou o dedo no nariz de dois filhos dela, um de 12, outro de 14 anos e disse: “Liontino e Osvaldo, quem te pariu fui eu, quem te criou fui eu! Toma o seu pau de fogo e vai com as mulheres. Se você frouxar o riacho é para meter bala na sua cabeça!”

 

“Aí – continuou Dirce -,  nós saímos. No outro dia teve uma nova reunião, a turma caiu em si e aquele que estava fazendo o papel de desertor ficou proibido de passar na região.

A dona Francisca, do seu Mateus, todo mundo a chamava de Mãe Francisca – uma velhinha magrinha. Ela e a filha dela, Isabel, eram terríveis. Os jagunços passavam na casa dela, os companheiros de piquete passavam na casa dela, ela vivia no fogo cruzado.

Então tínhamos nossos sinais: quando o terreno estava livre, ela colocava um pano branco no arame, como se estivesse estendido. Se tivesse algum problema – às vezes o jagunço estava na sala dela – ela colocava um pano vermelho. Aí os companheiros não iam.

Eles também podiam deixar um ramo em determinado lugar e, quando os nossos viam o ramo sabiam que eles estavam esperando ela no fundo do quintal. Eles carregavam água num pote – e era longa a distância.

Então ela pegava a comida, que era  que era feijão com farinha, amarrava numa palha, fazia uma trouxinha, colocava no pote, punha na cabeça e fazia de conta que ia buscar água. E os jagunços estavam lá dentro. E ela ia levar a comida pra um companheiro lá no córrego. Isso não é um gesto de bravura?”

E continua: “Tinha a Ita do Nego Carreiro que foi o homem que deu o primeiro tiro lá, que matou o jagunço, o sargento Nelson. Ele foi para receber o “arrendo” (o documento que os jagunços levavam para o posseiro assinar assumindo ser apenas arrendatário daquela área e se comprometendo a pagar uma quantia determinada, anual ou até mensal, pelo arrendamento) e queria obrigar, no meio de uma reunião, o Nego Carreiro e os outros posseiros a assinar que pagariam o arrendo.

O Nego não aceitou porque, se assinasse, estaria aceitando que a terra era dos fazendeiros e que eles eram invasores. Eles não aceitaram isso. Disseram que não iam pagar e não pagaram. E o Sargento Nelson estava ganhando naquela época cinquenta contas para matar o Nego Carreiro – a gente soube disso depois. Aí, quando o sargento Nelson foi tirar o revólver para matar o Nego Carreiro, ele, que era mais esperto, estava com uma camisona de algodão, tirou a garruchinha e foi bem na testa: só um tiro.”

“Dias depois – prosseguiu – a Ita, mulher do Nego Carreiro – estava em casa fazendo comida para levar para o piquete quando os policiais jagunços chegaram, viram aquela panelona de farofa e falaram que era muita comida para pouca gente e que iam comer.

A mulher do Nego Carreiro pegou a comida, jogou no chão e disse que preferia que os cachorros comessem do que os cachorros do governo. Eles bateram tanto nela que ela abortou a gravidez de cinco meses nos pés dos policiais. Eu mesma curei os hematomas das pancadas nas costas dela.”

“O povo era tão unido naquela época. Se um estava doente, não tinha carro, a pessoa não dava conta de ir nem a pé nem a cavalo. Então ia na rede: os posseiros pegavam um pau, botava a rede, pegava cada um de um lado e saía correndo e uma turma de homens ia atrás. Lá adiante trocava.

A gente fazia uma lata dessas de 20 litros cheia de comida, punha pratos, e um ia a cavalo, levando a comida. Determinado lugar parava, arranjava dois paus e amarrava a rede.

Isso era de Formoso a Santa Teresa, umas oito léguas no meio daquelas montanhas, carregando doente. Nunca morreu ninguém lá em Trombas ou no caminho, assim.

De lá, às vezes pegava um pau-de-arara, colocava o doente em cima e ia para Ceres,  e de Ceres para Goiânia. Aqui (Goiânia) era fácil. Nós tínhamos um grupo de médicos amigos (o Dr. Omar Carneiro, Dr. Nilton, o Dr. Jonas Aiube …) todo mundo colaborava.

Chegando aqui eles cuidavam, ajeitavam as coisa e davam pra gente; angariavam medicamentos, me explicavam a forma de usar e eu fazia a manutenção.”

Informa ainda Dirce, que a comida eles mesmo produziam. E a solidariedade era total, uma rotina. “Se tivesse um prato de comida e chegassem mais dois companheiros, nós repartíamos. Medicamentos, nós tínhamos uns amigos caminhoneiros que levavam pra gente escondidos dentro dos galotes de água. Eles tinham um tipo de buzina, um jeitinho de tocar, quando chegavam a um determinado lugar eles tocavam, passava um pouco repetia e repetia de novo e daí a gente sabia que um companheiro ia descer.

Esses companheiros eram de Anápolis, de Goiânia, iam levar cargas para comerciantes e fingiam, para a polícia, que eram inimigos nossos. Inventavam conversas para a polícia os deixar entrar.

“Todo camponês de Minas, de Goiás… usa o mutirão – quando uma pessoa tá apertada de serviço na roça e outros vêm ajudar. Depois do serviço fazem uma festa, um baile que é uma parte divertida.

Lá, a gente fazia os mutirões porque ninguém podia trabalhar sozinho numa roça – era perigoso o ataque dos jagunços! E eles iam mesmo! Então a gente ia para a roça com a carabina e a enxada do lado.

A mulher ia levar a comida na roça com a espingarda e a bacia de comida na cabeça. Se fosse atacada, a gente jogava a bacia de comida no chão e o “pau comia”. Ali ficava todo mundo de olho. Tinha um pombeiro (pessoa que fica vigiando) que ficava à distância vigiando, podia até ser um garoto, se visse de longe algo estranho, dava um sinal.

A turma largava as ferramentas e pegava a espingarda. Então, trabalhávamos só em mutirão porque não podíamos trabalhar isolados. Era tudo feito assim: reunia até 20, 30, 40 pessoas na roça.

As mulheres ficavam na casa para cozinhar, fiar, fazer as roupas, as cobertas, que eram de algodão tecidas no tear. Então elas faziam esses serviços e os homens cuidavam das lavouras.”

– Nós tivemos muita colaboração dos estudantes, dos jornalistas – O Cruzeiro (a maior e mais importante revista da época, distribuída em todo o país) foi lá nos entrevistar. Nós fomos notícia internacional. Eram jornalistas, médicos, procuradores, deputados… Nós tivemos uma cobertura muito grande, principalmente dos estudantes de Goiânia (universitários, a UNE).

Até hoje, algumas pessoas não entendem, mas o nosso grupo antigo, que participou da luta lá de Formoso, ainda é assim até hoje: o que eu tenho é dos companheiros, o que eles têm é meu. Se eu chego na casa de alguém eu tenho cama, tenho comida, tenho tudo o que eu precisar.  Se estiver doente eles me ajudam; eu faço o mesmo por eles.

Tem mais uma coisa: os companheiros não pensavam em si, mas no outro. A gente não traía o outro por nada na vida. Deus me livre se eu fosse taxada de traidora. Se preciso fosse, a gente ficava até dois anos foragido no mato. Era dentro da minha posse…, da posse de um amigo…

Quando eu fui foragir eu tinha dado à luz uma cesárea de poucos meses, seis meses. Mas tinha um grupo de confiança que sabia onde eu estava. Teve dias de eu sair do mato para ir fazer parto (eu era professora e também parteira e até enfermeira, acompanhando companheiros para tratamento em Goiânia e ficando responsável para continuar dando os remédio. Cuidando dos enfermos).

“No dia que nós fomos presos lá no mato, o Ribeiro (o marido da Dirce) estava com uma desidratação violenta. Nós éramos sete pessoas: eu, meu marido, meu irmão e um grupo de companheiros. Tinha também o Geraldo Tibúrcio (um senhor negro, que era filiado ao PCB e já foi até vereador em Anápolis). Esse tempo que nós ficamos foragidos, explica Dirce, já foi na época da Ditadura.

No meu ponto de vista, o resumo da história (ela repetiu esse jargão várias vezes – ‘o resumo da história’) – era assim, morrer, mas não entregar companheiro nenhum, porque a gente morre uma vez só e o covarde arrasta a covardia pelo resto da vida. Então, o nosso grupo ter essa posição de ninguém entregar ninguém foi a nossa salvação, a nossa resistência.

Eles te espancavam para extrair alguma informação. Se a gente falasse, era como bolo no fermento, quanto mais fermentado, mais cresce. É isso. Meu marido eles espancaram muito, quebraram o nariz dele, dependuraram ele pelos pés. Ele ficou mais tempo preso do que eu. Foi preso duas vezes e eu fiquei em Formoso, não fui mais presa, mas fiquei vigiada pela polícia.

Eles espancavam sem dó. Teve dois companheiros nossos, o Onésimo, que eles espancaram tanto que ele mudou de cor (ele era muito branco e depois de ser torturado ficou todo roxo, quase preto). E o Nelson Marinho, que espancaram demais. Cortaram um pedaço do couro cabeludo da cabeça dele e fizeram ele engolir com urina dos policiais.”

Eles nos torturam muito para que nós condenássemos o Mauro (o governador de Goiás à época, o Mauro Borges) e o Zé Porfírio. Apanhamos, mas não condenamos. Um dia eu perguntei para um torturador se ele tinha coragem de pegar nos filhos dele, beijar a mulher dele, com as mãos sujas de sangue. Ele olhou pra mim e disse: “Quem pergunta aqui sou eu!”

Isso tudo não deixou sequelas psicológicas em mim, porque eu estava preparada, mas meu marido, na doença dele, teve crises de loucura, de desatino, achando que os médicos eram todos policiais. Foi uma loucura o fim da vida dele. Morreu aos setenta e poucos anos.

Agora eu fiquei com problema nos tímpanos por causa dos “telefones” (técnica de tortura em que a pessoa leva tapas nos dois ouvidos simultaneamente). A coisa que mais me chocava quando eu estava na casa de detenção era aquela música “Amada Amante”, porque eu sabia que eles estavam torturando alguém. Eles colocavam a música muito alta para encobrir os gritos do torturado e, psicologicamente, torturar os outros.”

Presa mesma eu fiquei só dois meses e 10 dias. Estive aqui em Goiânia na Casa de Detenção, depois fui para Brasília. O Dops escondia a gente (tinha um jornalista no nosso grupo), porque tinha uma comissão de estudantes e jornalistas que ficava acompanhando a gente, nos visitando…

Eles não deixavam a gente num lugar só. Estávamos numa prisão, de repente mandavam a gente fazer as trouxas e sumiam com a gente para outro lugar. Era só eu de mulher no grupo. Eles me colocavam junto com as presas comuns.

E continuou Dirce na sua casa, agora tomando café e comendo pão de queijo que ela própria fez, já caminhando para o final da segunda entrevista e da sua história: Ainda voltei para Formoso, lá me candidatei, fui vereadora por dois mandatos pelo MDB. E fui eu quem criou a Lei que deu emancipação política para Trombas, transformando nossa antiga vila de resistência num município, independente de Formoso, assim como Montividiu.

E ela conta ainda muitas histórias sobre sua vida já na legalidade, mas sempre com muita luta, como quando organizou o primeiro hospital da cidade.

“Por incrível que pareça, eu sou uma pessoa que deito e durmo tranquila. Eu tenho a minha consciência tranquila de ter cumprido com o meu dever. O respeito que todo mundo tem por mim, principalmente o povo de Formoso.

Lá, eu sou comadre e madrinha de quase todo mundo. Quando eu vou lá nem sei o que faço para ir à casa de todos. Aqui, minha casa é grande, cheia de cama, as panelas são grandes e vive cheia de gente de lá e de outros lugares.

Eu tive quatro filhos legítimos e sete adotivos, só um faleceu há pouco tempo. Eles se orgulham de mim e do pai que tiveram. Eu me sinto realizada. Sou livre! E dona da minha própria história!”

Laurenice Noleto Alves – Jornalista. Conselheira da Revista Xapuri, em: Roda de Saia, Editora Kelps, 2022. Excerto deste texto foi publicado na edição 101 da Revista Xapuri, disponível em www.xapuri.info.  Imagem interna de Dirce e Nonô enviada pela autora. Outras imagens internas: Internet.  Imagem de capa: YouTube.


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!


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