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Doutora Zeneida: As encantarias de uma Pajé

Doutora Zeneida: As encantarias de uma Pajé

Por José Ribamar Bessa Freire

La raíz del árbol no canta. Canta la copa, no más. (Zamba Tata Juancho de Jorge Cafrune – 1976)

 Lembro bem, foi em 2007, em Soure, Marajó, perto da praia do Mata-Fome – um nome desse ninguém esquece. Com a pajé Zeneida e o karai guarani Wherá Tupã, atravessamos um manguezal, cujas raízes expostas vinham buscar oxigênio na superfície. Os dois deram uma aula de etnobotânica no meio da mata, num terreno mais alto de solo firme.

Cada planta foi nomeada, identificada, cheirada, acariciada, reverenciada, catalogada, classificada e enaltecida em suas propriedades medicinais e alimentícias. Era um momento mágico. A mata resplandecia. O designer amazonense Amaro Jr., que tudo filmava, deu uma paradinha para enxugar lágrimas furtivas e falou:

– Se me perguntam o que eu estou filmando, além da conversa de pajés, respondo: “árvores”, porque não sei o nome próprio de nenhuma delas. Mas os dois sábios não veem “árvores” genéricas, só plantinhas, que eles chamam pelo nome próprio na maior intimidade. Conhecem cada espécie e elas demonstram conhecer os dois.

Foi esse tipo de saber que encantou o botânico Barbosa Rodrigues, quando organizou o Museu Botânico de Manaus no final do séc. XIX. Ele descobriu, um século antes de Lévi-Strauss, que os povos ameríndios tinham um senso acurado de observação e manejavam um sofisticado sistema de classificações no campo da botânica com uma “nomenclatura clara, precisa e exata que alargou o campo do conhecimento das plantas, através de um método sintético” que, para ele, “é tão rigoroso quanto o método científico de Lineu”.

 O SONO DO QUATI

Esses saberes ignorados pela academia entraram agora na Universidade Estadual do Pará (UEPA) pela porta da frente, levados por uma das herdeiras do “idioma vegetal”, a pajé e educadora Zeneida Lima, que na terça, 1º de dezembro de 2021, recebeu o título de “doutora honoris causa”. A cerimônia deixaria orgulhosos o Mestre Mundico, que a iniciou na pajelança e o seu bisavô Coemitanga, xamã da etnia Sacaca, conhecedor dos segredos da natureza humanizada.

A nova doutora, aos 87 anos, continua fazendo remédios extraídos da floresta, que para ela é uma “farmácia”. Faz isso desde os onze anos, como revela no seu livro O Mundo Místico dos Caruanas (1993), prefaciado por Raquel de Queiroz, agora em edição ampliada com o título Meus Caruanas (2021), que recupera narrativas místicas dos povos originários do Marajó e seus saberes sobre plantas medicinais, estabelecendo um diálogo de saberes entre a oralidade e a escrita. Autora de muitos livros, ela conviveu com etnógrafos conhecidos como Pierre Verger, Roger Bastide e Nunes Pereira com quem trocou correspondência sobre os caruanas, “senhores das águas do nosso planeta”.

– “As receitas simplesmente me vinham à cabeça como hoje me vêm as músicas que componho e as poesias que escrevo” – ela diz. Afinal, “cantar é uma maneira de se comunicar com as plantas”, como afirmam poetas na nona edição da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP).

Mais de 120 músicas cantadas pela pajé, algumas em Nheengatu, foram gravadas por Egberto Gismonti. Uma delas, cuja letra foi registrada pelo cônego Bernardino de Souza em 1875, é uma canção de ninar, na qual as mães, para fazerem dormir seus bebês, pedem emprestado o sono do quatipuru, um animal que passa a noite na balada e de dia, dorme:

Acutipuru ipurú nerupecê. Cimitanga-miri uquerê uaruma.

Numa oficina que ministrei na aldeia Canafe, em Barcelos (AM), alguns professores indígenas do Rio Negro não entenderam o Nheengatu do cônego, que só registrou a letra, sem partitura.  Nenhum deles conhecia a música. Ficaram de consultar as avós. Mandei, então, a letra para a pajé Zeneida, que botou música e me enviou a gravação.

FRONTEIRAS DO SABER

Uma canção do ritual da pajelança, em Nheengatu, foi cantada pela doutora Zeneida no XVI Seminário de Culturas e Memórias Amazônicas e VI Seminário Brasileiro de Poéticas Orais, de 1 a 3 de dezembro de 2021, organizados pelo Núcleo de Pesquisa Culturas e Memórias Amazônicas (CUMA) da UEPA e pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL). Na mesa-redonda de abertura “No Reino da Encantaria”, nossa pajé foi homenageada por seus amigos: a cineasta Tizuka Yamasaki, a atriz Dira Paes, o músico Egberto Gismonti e este colunista que iniciou assim sua fala:

 – Quem mais ganha com este título de doutora não é aquela que acaba de recebê-lo, mas quem o concedeu: a UEPA, que desta forma traz para dentro da instituição o reino da encantaria com seus novos saberes e as diferentes formas de produzi-los, a visão de que as espécies vegetais e outras formas de vida estão interligadas, todas elas igualmente partes da natureza: pessoas, plantas, animais. Ignorar isso nos torna extraterrestres, como afirma o filósofo italiano Emanuele Coccia, professor na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, que encerrou no domingo, 5 de dezembro, a FLIP de 2021, falando sobre o seu livro “A Vida das Plantas”.

Lembrei conferência na UERJ, em 2005, do então presidente do CNPq e ex-vice-reitor da UFMG, Evando Mirra, intitulada Ciência, amor, sabedoria – uma incursão pela transdisciplinaridade. Para ele, “a fronteira entre saberes é um espaço de troca e não uma barreira”. A Universidade pode “nutrir ao mesmo tempo mais de um pensamento para transbordar os limites das disciplinas acadêmicas e acolher outros saberes”, o que implica “um trabalho coletivo aberto para o novo e o diverso”.

Citei ainda o reitor da Universidade de Würzburg, na Alemanha, Theodor Berchem, na sua conferência de abertura do IX Congresso Internacional de Universidades, na Finlândia, em 1990:

– A Universidade vive uma tensão permanente entre, de um lado, o compromisso com as culturas nas quais estão imersas – que são particulares e, de outro, com a ciência – que aspira a universalidade. Mas o conhecimento universal só pode ser construído se houver diálogo de saberes particulares.

 O VOO DO PÁSSARO

 Quem contribuiu também para a crítica ao modelo do conhecimento único foi Darci Ribeiro, ex-ministro da Educação, que defendeu a universidade pluriepistêmica, capaz de incluir dentro dela mestras e mestres dos povos tradicionais. Usou uma imagem potente no leito do hospital, horas antes de se despedir da vida, em fevereiro de 1997, quando disse que havia sido um fazedor de universidades, o que não teria nenhum valor se não tivesse criado também o sambódromo:

 – O pássaro da cultura tem duas asas. Uma é universidade, a cultura erudita, a ciência. A outra, o sambódromo, a cultura e o saber popular. Acontece que, se faltar uma delas, o conhecimento não decola. 

Nossas universidades costumam bater apenas uma asa. O título conferido à doutora Zeneida manifesta a disposição da UEPA de bater as duas asas e levantar voo para combater a tragédia vivida em diferentes partes do planeta, que não é um acidente natural, mas o produto de uma intervenção desastrada, que em nome do lucro esqueceu que a terra é gente como nós. “A mata está queimando, pedindo socorro, a floresta está acabando, estão tocando fogo – canta a doutora Zeneida Lima, batendo dentro da UEPA a outra asa, a asa dos caruanas.

Felizmente, as universidades começam a decolar. Uma semana antes, título similar de doutora honoris causa foi conferido pela UFRJ a Eliane Lima dos Santos, a Eliane Potiguara, professora, poeta, contadora de histórias, mãe, avó. Na UFMG, está correndo o processo de concessão do título de “doutora por notório saber” à Mestra Japira. E na Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP), o antropólogo tukano João Paulo Lima Barreto destacou na mesa “Plantas e Cura” que “em uma sociedade cartesiana, alegações baseadas em experiências subjetivas e não em evidências científicas podem ser facilmente desacreditadas”. Ele acrescentou:

Falamos muito da importância da floresta e da água, mas muitas vezes fomos incompreendidos, agora a ciência traz essa visão. Para nós, as plantas têm vida própria e nós precisamos entender isso para nos colocarmos como sujeito e não como objeto. Assim, tudo vira sujeito: o barulho da floresta, o balanço das folhas. Tudo isso é linguagem.

Até mesmo o canto das árvores, cujas copas entoam canções alicerçadas em suas raízes, como na música do genial argentino Jorge Cafrune.

P.S. Ih! Já ia esquecendo. Terminei minha fala quebrando a formalidade de um evento acadêmico, ao declarar que se um dia ficar viúvo, peço ao Rubinho e a Eliane a mão da mãe deles em casamento. Prometi que, neste caso, seria um excelente padrasto, não sei se tão bom quanto Egberto Gismonti, que nunca confessou, mas sei que tem secretamente os mesmos planos.

José Ribamar Bessa Freire – Cronista da Amazônia, em www.taquiprati.com.br.


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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