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E o perfume preencheu-me o Ser…

O Perfume

Por: Jairo Lima

“…E o Perfume preencheu-me o  Ser…”

A noite fria me entorpecia os sentidos, mesclando-se com a visão fractal que tomava minha percepção etérea do ‘outro mundo’, dando movimento e preenchendo o ambiente com uma energia quase elétrica.

Eu já não sabia dizer há quanto tempo estava ali, nem quando tudo começou, a não ser pela vaga e longínqua lembrança do txai Benki Ashaninka entregando-me um pequeno copo, com um encorpado e escurecido líquido, o kamarãpy*, bebida sagrada que me guiaria nos caminhos ainda indecifráveis que eu tomaria naquela noite.  

Um toque suave, mas firme,  em meu peito, dava um compasso contínuo e sincronizado com meus batimentos cardíacos, que me acalmava e acalentava, enquanto um cheiro suave, de início indecifrável, começou a prender-me em doces sensações, somando-se ao esforço da pequena Mukani em mitigar a dor que, tal qual um algoz sem coração, torturava-me através de minhas costas. Sentía-me contorcer em dor. Seria isso decorrente da forte pressão e visões que o ‘vinho sagrado’ trazia-me em intensidade que há muito não sentia? Seria, talvez, decorrência da fadiga quase doentia dos últimos quinze dias? Não sei…
Sons cobriam a noite estrelada – mas sem lua – enquanto uma enorme roda formada por vultos em diferentes situações pareciam estátuas de puro ébano, que se mesclavam com a natureza que os envolvia. E eu alí, deitado inerte numa esteira ao chão, apoiando a cabeça aos cuidados de Mukani, que em pequenos e rápidos movimentos, descrevia símbolos invisíveis sobre mim, enquanto, ao meu ouvido, chegavam fragmentos de palavras que, de início não sabia descrever o significado… mas que, aos poucos, foram ficando claras e que, após alguns momentos, já me eram decifráveis, vindo a contar-me coisas profundas. Talvez segredos? Talvez, verdades? Talvez lembranças?… Talvez… talvez…

Assim como o frio, a ‘força’ do ritual e a energia circulante aumentou. Me senti desfalecendo, talvez engolido pela floresta… Talvez engolido pelo grande ‘nada’ dos sentidos não percebíveis… A questão é que do meu ‘Ser’ já não me apercebia e, quando de mim nada existia um doce odor foi preenchendo os meus sentidos. Seria esse o prenúncio de minha ida? Como dizem os Noke Koi: Teria eu atravessado a ‘ponte’?

De início não sabia dizer de onde vinha tão exótica fragrância, mas, a cada respiro, mais e mais eu dela eu me preenchia, até que, para os resquícios de meus sentidos, todo o ar ao redor havia sido tomado por ela. Era um perfume doce, fresco e jovial. Algo que não sabia identificar.

A partir de então o frio já não me incomodava mais. A dor, mesmo que presente, já não parecia ferir-me tanto… e junto com esta fragrância, uma voz que parecia brotar de todos os lados chegou-me aos ouvidos tal qual um sussurro, mas diferente, pois, não somente as palavras me chegavam, mas me impregnavam como um sopro molhado, formado por pequeníssimas e perfumadas  gotas, como as que sentimos logo ao amanhecer. Pude sentir que essa sensação perfumada era, e parte, bem material, pois, senti a pequena mão de Mukani segurando algo próximo ao meu rosto, o que deduzi ser a origem de tão estranho odor. Pela energia desprendida pelas suas pequenas mãos, bem como pela eletricidade que parecia emanar de seu corpo notei que a ‘Mukani Shanenawa’ que eu conhecia não estava alí, e, sim, se fazia presente, um estranho ser, do qual as ‘mirações’ que me dominavam me permitiam ao menos perceber sua ‘silhueta energética’. Desse ser emanava todo o perfume e também era de onde parecia surgir as perfumadas palavras, que flutuavam ao sabor da leve brisa fria que acariciava-me o rosto. Palavras proferidas por uma voz de mulher, com uma sonoridade bela e melódica, e que assim pronunciou-se:

“Eu sou o Perfume que tudo perfuma…Sou o Tudo e o Nada que todos sentem, mas, nunca percebem.Esto presente, até mesmo nas ausências do sentimento que a todos une…Preencho-me em mim mesma, e de mim nunca me farto…De todos os Perfumes Encantados eu sou a mais preciosa, e estou bem ‘alí’, veja, olhe bem. Estou bem ao alcance de sua mão. Tão perto que, sem nenhum esforço, tu me tocarias. Mas não posso ser maculada… não posso ser tocada, pois sou uma jóia rara.Tão rara e preciosa que, se tocada, tal mácula desse mundo me levaria.. E meu perfume deixaria de existir…Sou jovem, e a decrepitude desse mundo sobre mim não tem forças.De muitos nomes sou conhecida. Em muitas formas fui retratada… mas nunca fui maculada.Preencho-te e te afago com minha cura, tocando-lhe os sentidos e apurando-lhe as percepções.Quando te sentires sozinho, triste ou precisando de ajuda, lembre de a mim recorrer…Limpe sua mente e recorde desse meu perfume e, onde estiveres,  dele te preencherei. E de mim te aperceberá, mesmo que do Nada onde me encontre eu seja o Tudo…Do ar que aspiras ao sussurrar da brisa que perfumadamente te envolve lá estou…  ”

Sentando-me, abri os olhos totalmente tomado pelo seu odor, sentindo-me pleno e reconfortado, e uma leve brisa perfumada novamente tocou-me o rosto. Olhei ao redor, ainda tomado pela energia perfumada e as ‘transformações’ do poderoso e concentrado ‘vinho encantado’ para ver que o ritual ainda se desenvolvia na mesma energia encantada que começou. Mukani, ainda parecendo entorpecida por algo que eu não sabia definir olhava fixamente para sua mão, e pude perceber que estava concentrada em ‘algo’ que ali pairava, tal qual uma energia invisível, mas, perfeitamente sentida… Não a perturbei com perguntas que, no momento, sabia que não deveria fazer. Olhei pro céu e, incrustado no veludo azul profundo do firmamento, seus diamantes brilhantes nos iluminavam com uma intensidade mágica. Vez ou outra, riscos de luz cruzavam esse firmamento encantado. A floresta parecia cantar junto com os que entoavam lindas canções, que nos transportavam para reinos e aldeias celestiais. E essa noite de encantos ainda me reservaria muitas descobertas e percepções.

As horas avançavam, mas não percebi. Somente quando o astro-rei começou sua jornada sobre a floresta é que me dei conta que toda a ‘eternidade’ que eu havia  ‘vivido’ até o momento estava se encerrando, juntamente com a força e a ‘visão encantada’ que guiou-me nessa jornada.

As formas na grande roda já não eram disformes ou confusas, e suas naturezas me eram bastantes conhecidas: tratava-se das comitivas de quatorze povos indígenas e de uma quantidade significativa de convidados que estavam participando do ritual de encerramento da 2a Conferência Indígena da Ayahuasca, na Terra Indígena Puyanawa, Acre.

Eu ainda estava bem ‘mareado’, pelo menos  o suficiente pra decidir ficar sentado na esteira, sobre a branca areia da Arena Puyanawa por um bom tempo, enquanto apreciava meu cachimbo, observando o vai e vem de pessoas buscando o abraço consolador de suas redes ou, em muitos casos, algumas ‘rodinhas’ de txais, que batiam papos alegres ou tocavam suas canções, ritmadas por violões e tambores.

Pensamentos e lembranças diversas preenchiam-me a mente. As imagens, palavras e sensações que vivenciei durante os três dias de duração da conferência agora rodopiavam em minha cabeça. Palavras, muitas, que ouvi durante toda a noite novamente se apresentavam, desta vez devidamente analisadas, ou, ao menos, ‘pensadas’ de maneira mais ‘material’, ou seja, fora do contexto que as ouvi durante toda a noite.

Olhando para os que ainda se faziam presentes no local, mesmo já sendo mais de oito horas da manhã, vi o querido amigo Benki Ashaninka sorrindo enquanto conversava com alguém… o Puwe Puyanawa segurando um violão, mostrando alguma canção a um visitante… outras figuras queridas também estavam em locais esparsos do ambiente, pois, acredito,que  assim como eu, ainda estavam nas emanações do ritual, onde todas as delegações se apresentaram com suas canções, rezas e energias, alegrando, curando e fazendo refletir a todos que ali conseguiram chegar.

O sol já estava forte quando finalmente tive disposição para deixar o local, e, assim, como os demais, levantar meu acampamento e retornar para casa. Antes, porém, resolvi dar um passeio acompanhado pela Mukani, contando-lhe um pouco do que ví e senti no ritual, pedindo-lhe que me mostrasse qual a planta de onde tão exótico e mágico perfume foi extraído. Ela, sem muito esforço rapidamente a encontrou e, orientando-me em como tirar suas pequenas folhas e sementes, ensinou-me alguns detalhes importantes para seu uso.

Algumas horas depois eu já estava em casa. Sentado em minha varanda olhava o horizonte e sentia algo novo em mim, em meus pensamentos, em minha própria energia. Algo jovem, mas, ao mesmo tempo maduro e, acima de tudo era algo ‘perfumado’. Apurei os sentidos e os ouvidos na vã tentativa de ouvir mais uma vez aquela voz impregnada de fragrância e melodia, mesmo sabendo que somente em minha lembrança ela se apresentaria… estiquei o braço, fazendo um gesto de pegar algo etéreo à minha frente, para rapidamente recolher meu gesto, levando a mão ao rosto e sentindo, ainda presente, a fragrância encantada que de mim se tornou senhora…

Esse é um brevíssimo registro… um sopro… do que foi esse segundo encontro indígena. Certamente trarei muito mais nas crônicas que virão em breve, mas, no momento, o perfume ainda está forte em mim, e sua fragrância encantada toca-me os sentidos de um jeito que, desde que o senti, só sinto a vontade de me recolher e deixar-me levar por seus encantos…

‘E o perfume preencheu-me o ser’…   

ANOTE AÍ
* Palavra Ashaninka para denominar a ayahuasca.

Jairo Lima é indigenista, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua há mais de vinte anos junto aos povos indígenas do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, na região do Juruá, Acre.

* Conheça a página do Crônicas Indigenistas no Facebook (clique aqui). Lá encontrará, além de nossos textos, várias e diversificadas informações. Também temos o canal do YouTube: Crônicas Indigenistas – Música Indígena (clique aqui). As imagens utilizadas são de autoria do professor Rodrigo Marciente, IFAC – Campus CZS. 

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