Elza Soares: me deixe cantar até o fim

Elza Soares: Me deixe cantar até o fim

Elza Soares: Me deixe cantar até o fim

A não é nada diante de Elza Soares. A mulher do fim do superou o racismo, a fome, a violência sexual, a ditadura, o machismo e, agora, transcendeu: tornou-se imortal. Em retorno a toda desgraça sofrida, brindou o “planeta fome” com a sua “voz do milênio”…

Por Eduardo Meirelles

“Eles vieram me buscar”, disse Elza Soares ao marido de sua neta cerca de 10 minutos antes de encantar-se, aos 91 anos, em seu apartamento no Rio de Janeiro. “Ela disse que estava bem, ótima. Foi deitar, escutando — a gente sempre monitorando os dados vitais. Em um dado momento, ela falou para uma das netas que estava ‘indo embora’. A gente achou que fosse uma licença poética. Ela começou a ficar com respiração ofegante. Chamamos o socorro, e o médico dela chegou”. Relatou seu empresário Pedro Loureiro ao site Splash.

Elza da Conceição Soares nasceu na favela da Moça Bonita -atual Vila Vintém-, no Rio de Janeiro. Filha de lavadeira e operário, teve uma infância muito difícil e sofrida. Foi o seu pai o responsável por iniciar Elza na carreira musical, que a acompanhava nas canções que tocava no violão. Mas o mesmo que iniciou sua carreira, também foi o responsável por interromper sua infância.

Um amigo de seu pai, sujeito de nome Alaordes (Lourdes Antônio Soares), havia tentado abusar sexualmente de Elza. Com a justificativa de lavar a honra de sua filha, seu pai a obrigou a casar-se com o seu abusador. A relação não foi menos traumática do que a situação que a antecedeu, Elza sofria diariamente violência doméstica e  constantemente era estuprada por seu “companheiro”. Desta relação, nasceu seu primeiro filho, João Carlos, que faleceu em decorrência de uma doença. 

“Eu soltava pipa, jogava bola de gude, com filho no colo. Pegava balão, corria muito, brincava com eles. Foi assim que foi a minha . Era e mãe”, disse a cantora à BBC em 2018.

Com apenas 15 anos, Elza levou um duro golpe da vida e perdeu o seu segundo filho, que morreu de fome. Na sequência, seu marido foi acometido de tuberculose. Com a doença, teve que trabalhar como encaixotadora em uma fábrica de sabão no Engenho de Dentro. No mesmo período, trabalhou em um manicômio, onde furtava antes de ir embora. 

Aos 18 anos, casou-se oficialmente com Alaordes e passou a assinar o que mais tarde viria a ser seu sobrenome artístico, Elza da Conceição Soares. Tomou dois tiros do marido quando descobriu que ela trabalhava como cantora. Aos 21, ficou viúva. 

Em 1950, teve sua filha Dilma recém nascida sequestrada por um casal que tomava conta da menina enquanto ela trabalhava. Elza só reencontrou a menina já adulta, 30 anos depois. Ainda assim, perdoou os sequestradores de sua filha. Aos 27 anos, já era mãe de cinco crianças (quatro meninos e uma menina). 

Elza Soares fez a sua primeira aparição pública em 1953, durante o programa “Calouros em desfile”, apresentado por Ary Barroso na Rádio Tupi. Se apresentar ali era o sonho de muitos aspirantes a uma carreira de sucesso como cantores e cantoras. “Entrei segurando minha roupa para ela não desmontar e arrastando uma sandália muito vagabunda, que era a única que eu tinha, e o Ary logo me olhou com aquela cara de quem ia aprontar alguma comigo”, lembra a cantora. 

Na biografia “Elza”, Zeca Camargo narra os detalhes. “As gargalhadas só cresciam e com elas o apresentador se sentiu ainda mais à vontade para ironizar a candidata ‘fresquinha’. ‘O que você veio fazer aqui?’, perguntou com certo deboche. ‘Vim cantar’, respondeu Elza, achando que era melhor não ceder às brincadeiras.

Ele dobrou então a provocação: ‘E quem disse que você canta?’ Outra resposta curta: ‘Eu, seu Ary.’ Apesar da aparência risível, parecia uma caloura difícil de ‘quebrar’ com qualquer piada. Por isso, talvez, a próxima pergunta tenha beirado a grosseria: ‘Então, agora, me responda, menina, de que planeta você veio?’ Elza: ‘Do seu planeta, seu Ary!’ O apresentador, já perdendo a paciência, insistiu: ‘E posso perguntar que planeta é esse?’ Parecia que a resposta já estava na ponta da língua: ‘Do planeta fome.’

o ELZA SOARES 900

Um ano depois, em 54, trabalhou na Orquestra Garam Bailes, como crooner. Em 1959 foi contratada para trabalhar na Rádio Vera Cruz. Em 1960, atuou no Festival Nacional da Bossa Nova.

Em 1962, durante a Copa do Mundo no Chile, a cantora conheceu o jogador Garrincha, que veio a ser seu companheiro de longa data. Na ocasião, o jogador era casado. Depois de 1 ano do romance, Elza pediu que Garrincha tomasse uma decisão: ou ficava com ela, ou permanecia com a esposa.

O jogador escolheu a primeira opção. Namoraram escondido da imprensa e do público por 4 anos. Em 66, decidiram viver juntos. Mas Elza foi vítima de perseguição da imprensa e de pessoas que a acusavam de ser amante e de ter “destruído” o casamento de Garrincha. A relação durou 17 anos e tiveram um filho, Júnior.

Elza e Garrincha em 1962/Foto: Reprodução
Elza e Garrincha em 1962/Foto: Reprodução

Após se aposentar dos campos de futebol, Garrincha virou alcoólatra e passou a agredir fisicamente Elza, que chegou a ter seus dentes quebrados em uma das ocasiões. A cantora nunca denunciou formalmente o marido, mas anos depois, escreveu a canção Maria da Vila Matilde. Em 1969, publicou o livro “Minha vida com Mané”, onde conta detalhes da com o jogador. 

Apesar de todo o sofrimento da relação que teve com Mané, que acabou em 1982, Elza declarou em entrevista à BBC que preferia esquecer os “momentos de ódio” e focar nos “momentos de amor” com Garrincha. “Eu penso nos momentos de amor. Procuro esquecer os momentos de ódio, porque a coisa pior do mundo é o ódio, né? Então penso no momento de amor, que foi lindo”. 

Elza teve 8 filhos, todos de parto normal e nascidos no Rio de Janeiro. Seu filho com Garrincha, Júnior, faleceu aos 9 anos, vítima de um acidente de carro. A fatalidade fez Elza entrar em depressão e tentar suicídio. Cheia de tristeza, saiu do Brasil e retornou apenas 4 anos depois.

Em setembro de 1999, sofreu uma queda durante um show realizado pelo Sindicato dos Jornalistas, na antiga casa de shows Metropolitan, na Barra, Zona Oeste do Rio de Janeiro, e passou a locomover-se com muita dificuldade. Um achatamento na lombar lhe afetou a cervical e a forçou a colocar 16 pinos na coluna.

Em 2007, teve uma diverticulite aguda e foi operada às pressas. Poucos dias depois, em recuperação em casa, seus pontos abriram e ela viu as próprias entranhas saindo do . Voltou para a mesa de cirurgia e enfrentou 12 horas de operação. Depois, passou por uma colostomia.

Em dezembro de 2008, após um show em Tallinn, na Estônia, sofreu um acidente de carro e perdeu alguns dentes. 48 horas após o acidente, Elza já estava nos palcos se apresentando na Finlândia.

Em 2015, Elza perdeu seu filho Gilson, aos 59 anos,  vítima de complicações de uma infecção urinária. 

“Eu acredito em Deus, nos meus guias de luz. A resposta para vida está aqui entre nós. Nunca me revoltei por tudo que já me aconteceu. Não sou a única a perder filho. É claro que dói demais. Mas todos nós temos uma missão”. Disse Elza Soares em entrevista ao jornal Extra.

No ano 2000, Elza recebeu o prêmio de “Melhor Cantora do Milênio” pela BBC em Londres. Em 2002, foi indicada ao Grammy pelo o álbum Do Cóccix até o Pescoço. Já em 2004, Elza lançou o álbum Vivo Feliz. Nos Jogos Pan-Americanos de 2007 no Rio de Janeiro, Elza interpretou o Hino Nacional Brasileiro, no início da cerimônia de abertura do evento, no Maracanã, e lançou o álbum Beba-me, no qual gravou as músicas que marcaram sua carreira. Em 2009, começou a preparar um disco de nome Arrepios, que acabou nunca sendo lançado.

No ano de 2015, Elza lançou o seu primeiro álbum em toda a sua carreira só com músicas inéditas, o disco A Mulher do Fim do Mundo. As canções do disco falam sobre sexo, morte e negritude, e foram compostas pelos paulistas José Miguel Wisnik, Rômulo Fróes e Celso Sim. 

Em 2018, Elza lançou o álbum Deus É Mulher. No ano seguinte, lançou o álbum com nome Planeta Fome, em referência a resposta dada a Ary Barroso em 1953. O álbum foi eleito um dos 25 melhores do Brasil no segundo semestre de 2019 pela Associação Paulista de Críticos de Arte.

DISCOGRAFIA

Se acaso você chegasse (Odeon, 1960)

A bossa negra (Odeon, 1960)

O samba é Elza Soares (Odeon, 1961)

Sambossa (Odeon, 1963)

Na roda do samba (Odeon, 1964)

Um show de Elza (Odeon, 1965)

Com a bola branca (Odeon, 1966)

O máximo em samba (Odeon, 1967)

Elza, Miltinho e samba (Odeon, 1967)

Elza Soares, baterista: Wilson das Neves (Odeon, 1968)

Elza, Miltinho e samba – vol. 2 (Odeon, 1968)

Elza, & samba (Odeon, 1969)

Elza, Miltinho e samba – vol. 3 (Odeon, 1969)

Samba & mais sambas (Odeon, 1970)

“Maschera negra / Che meraviglia” (compacto simples / lançado na Itália, 1970),

Elza pede passagem (Odeon, 1972)

Sangue, Suor e Raça (Odeon, 1972) – c/ Roberto Ribeiro,

Elza Soares (Odeon, 1973)

Elza Soares (Tapecar, 1974)

Nos braços do samba (Tapecar, 1975)

Lição de vida (Tapecar, 1976)

Pilão + Raça = Elza (Tapecar, 1977)

Senhora da (CBS, 1979)

Elza negra, negra Elza (CBS, 1980)

“Som, amor trabalho e progresso / Senta a púa” (compacto simples / RGE, 1982)

“Alegria do povo / As baianas” (compacto simples / Recarey, 1985)

Somos todos iguais (Som Livre, 1985)

Voltei (RGE, 1988)

Trajetória (Universal Music, 1997)

Carioca da Gema – Ao vivo (1999)

Do cóccix até o pescoço (Maianga, 2002)

Vivo feliz (Tratore, 2003)

Beba-me – Ao vivo (Biscoito Fino, 2007)

A Mulher do Fim do Mundo (Circus, 2015)

Deus É Mulher (Deckdisc, 2018)

Planeta Fome (Deckdisc, 2019)

COLETÂNEAS

Grandes Sucessos de Elza Soares (Tapecar, 1978)

Salve a Mocidade (Tapecar, 1997)

Meus Momentos – Volumes 1 & 2 (EMI Brasil, 1994)

Elza Soares – Raízes do Samba (EMI Brasil, 1999)

Sambas e mais sambas – vol. 2 (Raridades) (EMI Brasil, 2003)

Deixa a nega gingar – 50 anos de carreira (EMI Brasil, 2009)

Elza Soares & João de Aquino (Deckdisc, 2021)

Elza encantou-se em 20 de janeiro de 2022, mesmo dia do ano em que seu ex-esposo Mané Garrincha. Há 2 dias da partida, em 18 de janeiro, Elza gravou um DVD e a última música registrada por ela foi “Mulher do Fim do Mundo”. “A última frase que ela cantou foi: ‘Me deixa cantar até o fim’. E ela cantou até o fim, fez o que queria fazer até o fim” Disse seu empresário Pedro Loureiro ao Splash. Elza deixa um legado de resistência negra, feminina, de luta e muito amor. Descanse em paz, Elza. Seu nome vive!

DEUS HÁ DE SER!
Deus é Mãe
E todas as ciências femininas
A poesia, as rimas
Querem o seu colo de Madona
A poesia, as rimas
Querem o seu colo de Madona
Pegar carona nesse seu calor divino
Transforma qualquer homem em menino
Ser pedra bruta nesse seu colar de braços
Amacia dureza dos fatos
Deus é Mãe
E todas as ciências femininas
A poesia, as rimas
Querem o seu colo de Madona
A poesia, as rimas
Querem o seu colo de Madona
Pegar carona nesse seu calor divino
Transforma qualquer homem em menino
Ser pedra bruta nesse seu colar de braços
Amacia dureza dos fatos
Deus é Mulher
Deus há de ser
Deus há de entender
Deus há de querer
Que tudo vá para melhor
Se for mulher
Deus-há-de-ser
Deus-há-de-ser Fêmea
Deus-há-de-ser Fina
Deus-há-de-ser Linda
Deus-há-de-ser
Deus-há-de-ser Fêmea (Deus-há-de-ser Fêmea)
Deus-há-de-ser Fina (Deus-há-de-ser Fina)
Deus-há-de-ser Linda (Deus-há-de-ser Linda)
Deus-há-de-ser, Deus-há-de-ser
Deus-há-de-ser, Deus-há-de-ser
Deus-há-de-ser
Deus é Mãe

Eduardo Meirelles – Jornalista – Com informações do Splash, Jornal Extra, BBC e-biografia e Wikimedia Commons

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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