Fernanda Torres: “Mãe, espanta em seu livro a lucidez afiada de uma mulher de quase um século”

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Minha mãe, no dia 16 você completa 90 anos. O seu pai, seu Vitorino, quando chegou à sua idade, deu de apostar uma corrida contra o tempo. “Vou aos cem!”, ele dizia, já surdo, batucando uma imaginária com os dedos, que era incapaz de escutar. A paralisia infantil o deixou manco de uma perna, mas ele inventou um jeito próprio de caminhar, acompanhado de um larí, larí… que transformava a passada coxa num trejeito de Chaplin.

Vitorino tinha certeza de que morreria aos 33 anos, idade em que Cristo foi posto na cruz. Não morreu, e eu pude conviver com a sensibilidade de artesão, que você tem dele, com as bochechas que todas nós herdamos e com a delicadeza que nenhuma das mulheres da família tem.

Fernando Torres também era um homem doce. Torturado e doce. Bebia, mas nunca nos ofendeu ou te impediu de ser quem era.

Já o burocrata que te chamou de sórdida, ex-cocainômano que agredia mulher e filho, e diz ter sido curado de um tumor pela graça divina, já esse, pode bem ter se livrado do mal físico. Mas faltou, ao Deus que ele cultua, dar cabo da agressividade e da misoginia do cordeiro grosso.

Estranhos homens esses, que batem e xingam em nome de Deus. Quando você completou 70 anos, me disse que havia cumprido o ciclo furioso de peças, novelas e filmes. Não havia nada mais a esperar da vida. Quatro meses depois, foi indicada ao Oscar de melhor atriz, por “Central do ”.

Trabalhar sempre foi a sua sina. Sua alegria, sua mania, seu destino e sua sina. Agora, com a autobiografia, o que seria um ponto final tornou-se farol, uma luz de integridade em meio ao obscurantismo carola dos adoradores de fuzis.

Eu cresci te vendo beijar outros homens em cena como beijava o meu pai. Isso nunca corrompeu a solidez da nossa família. Mas o prefeito do Rio de Janeiro, tão beato quanto ausente, mandou recolher, na Bienal do Livro, os exemplares de uma história em quadrinhos com um beijo gay.

Num país que mata e nega educação, saúde e às famílias dessas crianças, tratar um beijo como ameaça é sinal não só de oportunismo político, como também de pequenez moral.

O episódio inspirou sua foto de bruxa diante da fogueira de livros. Sórdida, exclamou o burocrata convertido. A injúria, no entanto, detonou uma onda de respeito e admiração à sua figura. Resposta outra, que não a agressão no mesmo nível, sempre baixo. A solidariedade como antídoto para inocular os Savonarolas.

Teu livro é o testemunho de uma autodidata, neta de imigrantes e filha de um operário com uma dona de casa que, por meio da prática obstinada de um ofício, sobreviveu aos inúmeros reveses sociais e políticos que, volta e meia e sempre, acometem o Brasil.

A morte de Getúlio, a renúncia de Jânio, o AI-5, a campanha frustrada das Diretas-Já, o confisco de Collor, a coalizão corrompida da social- e a ascensão da teocracia armada, os tombos e levantes que nos condenam a começar do zero “ad aeternum”, filtrados pelos olhos de uma Sísifo mambembe.

Quem sabe, quando eu fizer 70 e você passar dos cem, teremos vencido o horror de agora? Horror que promete deixar o legado de um país sem Rádio MEC, sem TBC ou Oficina, sem cinema novo nem velho, sem MPB e rock, sem Arena e sem Asdrúbal, sem Dulcina, Bibi, Dercy e Cacilda, sem Antunes e Nelson.

arrasada. Esse é o horizonte. Sigamos.

O partidarismo, à e à , nunca foi o seu norte. Avessa a dogmatismos, você fez do drama existencial da comédia humana a sua matéria. Penso que foi isso o que te fez uma mulher do presente, não importa a época.

Comemoraremos os seus 90 com uma missa no lugar em que celebramos, todos os anos, a partida do papai. Apesar da profunda devoção cristã, você jamais nos impôs a sua fé. Você jamais nos impôs crença, diploma, sucesso, nada. Você ensinou os seus filhos a serem, na medida do possível, livres.

Nas suas memórias, você narra o último delírio teatral do Fernando, com ele já doente, querendo ensaiar a peça “É…”, de Millôr Fernandes. Na mesa da sala de jantar, você se dispõe a ler com ele, até que meu pai se cala, ao perceber que não há elenco presente.

A cena é puro Beckett e lembra o final de “Seria Cômico se Não Fosse Sério”, em que você, Alice, cuidava dele, do marido, Edgar, vítima de um derrame. Vida e arte sempre se confundiram na nossa casa. Chorei muito com o seu relato. Espanta, nele, a lucidez afiada de uma mulher de quase um século.

Feliz aniversário, minha mãe. Que o Brasil, tão trágico, bruto e desesperado entenda, com gente como você, o quanto a arte e a criação podem fomentar amor, progresso e civilização.

Evoé, novos artistas.

Fernanda Torres – Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”. Matéria sobre sua mãe, Fernanda Montenegro, publicada na Folha de São Paulo em 6 de outubro de 2019.

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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