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Meia dúzia de mulheres negras que valem por mil

Meia dúzia de mulheres negras que valem por mil

A vida dessas mulheres não ganhou espaço nos históricos registros oficiais por vivermos em um mundo sexista e racista. São personagens, na maioria das vezes ignoradas pelos livros didáticos, que sobrevivem no imaginário popular porque se identificam e são identificadas com as mulheres, mães e companheiras espalhadas por todo o território nacional…

Por Iêda Vilas Bôas

A literatura resgata através dessas mulheres o empoderamento do feminino ao longo dos tempos. São mulheres, negras e mitos. O ideal libertário serve como fundo para destacar o papel da mulher em tempos remotos e para reflexão nos tempos de agora. Um novo olhar sobre um período da história que não seja contado pela ótica da raça branca, dominante e elitizada.

Essas mulheres não podem ser esquecidas pelas suas ações e ideias. Resistem à história oficial porque, a despeito do vencedor histórico, foram fortes e continuam sendo exemplo.

Aqualtune1

Aqualtune Ezgondidu Mahamud da Silva Santos era uma princesa negra africana filha de um importante Rei do Congo. Inteligente e estrategista, viveu no século XVII e, em 1665, liderou uma força de dez mil homens para combater a invasão de seu reino. Aqualtune foi derrotada pela tribo opositora dos Jagas.

Foi aprisionada, trocada por mercadoria e trazida para o Brasil em navio negreiro. Aportou em Recife, à época o principal centro produtor de açúcar e entreposto comercial da América Portuguesa. Lá foi vendida e seu destino estabelecido como escrava reprodutora. Inconformada com sua situação, passou a trocar informações com os negros de outros portos e, assim, tomou conhecimento de Palmares, em Pernambuco.

Grávida de 8 meses empreendeu fuga para Palmares (Angola Janga – Minha Angola Pequena), que possuía mais de 50 mil habitantes livres.  Segundo consta, Aqualtune foi mãe de Ganga-Zumba, Gana Zona, Sabina e outras filhas. Os dois filhos homens se tornaram chefes de importantes mocambos de Palmares.

A filha Sabina deu à luz a Zumbi, o grande líder do Quilombo dos Palmares, um dos principais quilombos durante o período escravocrata e símbolo de resistência dos negros à escravidão.

No quilombo, imediatamente, por sua origem de nobre africana, Aqualtune passou a ocupar posto de líder recebendo, então, o governo de um dos territórios quilombolas onde as tradições africanas eram mantidas.  Com seu filho Ganga Zumba começou a organização de um Estado Negro.

Aqualtune liderou, atuou e defendeu os habitantes de Palmares com seus conhecimentos políticos, organizacionais e sua vasta experiência em estratégia de guerra. Sua atuação guerreira foi fundamental para a consolidação da República de Palmares. A princesa morreu lutando contra os paulistas coloniais e suas expedições.

Dandara

Negra guerreira do período colonial do Brasil, juntou-se ainda menina aos negros rebeldes e foi esposa de Zumbi dos Palmares, com quem teve três filhos. Dandara, ainda hoje, é referência no movimento negro e homenageada por grupos feministas. Representa a face feminina de Palmares.

Dandara pode ser tratada por heroína e mártir do movimento negro e, para alguns, sua figura é lenda, não existiu de fato. Preferimos tratar da existência real dessa moça que dominava técnicas da capoeira e lutou à frente e ao lado de homens e mulheres nas muitas batalhas enfrentadas em Palmares.

Exímia caçadora e conhecedora da região de difícil acesso da Se6rra da Barriga, em Alagoas, conseguia ludibriar e criar armadilhas entre a vegetação fechada e densa, não permitindo que seus oponentes encontrassem sucesso. Dandara lutava, amava e impelia seu povo a resistir.

Nas horas fora do embate, era mulher, mãe e lavradora. Plantava e cuidava de seu roçado. Juntamente com os palmarinos confeccionava e fabricava utensílios para a agricultura e para o arsenal de guerra.

Dandara, por seu gênio forte e espírito de liderança, exerceu importante papel no rompimento do marido Zumbi com seu antecessor Ganga-Zumba, por discordar do tratado de paz estabelecido entre este com o governo de Pernambuco. O documento concedia benefícios como a liberdade aos nascidos em Palmares e o direito de comercialização de seus produtos. Entretanto, caberia aos palmarinos delatar e entregar ao governo os escravos fugitivos que procuravam abrigo nos mocambos. Dandara tomou o lado do seu povo por acreditar que a medida não poria fim à escravidão.

Dandara foi uma mulher forte, bela, guerreira, ousada, persuasiva, líder, e obstinada por liberdade. Sua atuação dinâmica contribuiu para a organização socioeconômica, política e familiar de Palmares. Conta-se que Dandara cometeu suicídio, num ato de sublimação aos seus ideais libertários, jogando-se do alto de uma pedreira, após ser presa, para não retornar à condição de escrava.

Maria Felipa de Oliveira

Negra e corajosa, Maria Felipa participou de intensa forma da luta pela Independência da Bahia em 1823. Nasceu na Ilha de Itaparica, catadeira de mariscos,5 pescadora, trabalhadora braçal bela e valente. Quando viu sua ilha invadida, comandou um grupo de 200 pessoas, uma frente de mulheres negras, índios tupinambás e tapuias; em sua maioria o grupo era formado por mulheres.

Destemida, era mulher muito alta, possuía grande força física, e as armas dela e de seus seguidores se constituíam de facas de cortar baleia, peixeiras, pedaços de pau e galhos com espinhos. Tendo por lema a defesa de seu lugar, numa de suas investidas queimou 40 embarcações portuguesas que estavam próximas à Ilha.

Maria Felipa deixou história e habita o imaginário popular. Sua tática de guerra contava com o poder feminino da sedução: as mulheres seduziam os portugueses, levavam os marotos para uma praia, faziam com que eles bebessem e, depois os despiam e davam neles uma surra de cansanção, certo arbusto com espinhos.

Outro episódio digno de registro foi sua atuação na primeira cerimônia de hasteamento da Bandeira do Brasil na Fortaleza de São Lourenço, na Ponta das Baleias – Ilha de Itaparica-Bahia –, quando invadiu a armação de pesca de um português rico e aplicou-lhe homérica surra.

Definitivamente, Maria Felipa não sucumbiu ao domínio português e nem aos padrões machistas de seu tempo. Sua postura combativa contribuiu, substancialmente, para a libertação nacional. Com ressalvas aos métodos usados, Maria Felipa simboliza a resistência e a defesa das conquistas de seu povo pobre e sofrido.

Tereza de Benguela

Rainha Tereza, mulher negra e bela, heroína do povo, ícone para as mulheres do país. Retrata o orgulho e a força de sua raça. Veio de uma província de nome Benguela, no oeste de Angola, África.

Tereza viveu no Século XVIII no Vale do Guaporé, no Mato Grosso, e foi líder do Quilombo de Quariterê, hoje essa localiMeia dúzia de mulheres negras que valem por mildade seria na capital Cuiabá.

O lugar abrigava mais de 100 pessoas, em sua maioria negra. Ainda fazia parte do quilombo um grupo de índios. Foi respeitada como rainha e possuía uma imensa sabedoria para lidar com seu povo. Foi conselheira, sábia, raizeira, parteira, e mantinha avançadas técnicas de recrutamento e de governança.

Tereza regia baseada numa espécie de Parlamento, com um forte sistema de defesa interno. Quariterê cultivava o algodão e era produtor de tecidos. Sob a liderança de Tereza de Benguela, realizava-se este comércio e também de outras plantações. Tudo o que se colhia ou produzia era destinado à comunidade, sob a inspeção de Tereza e de seus comandados, comparados ao que hoje conhecemos por deputados.

Seu companheiro, José Piolho, era o segundo líder e chefe dos Conselheiros. Conta-se que este foi morto por soldados quando da invasão do quilombo e que Tereza sofreu profundamente a perda de seu companheiro. As reuniões do Conselho, composto por representantes das famílias locais, aconteciam em prévios dias específicos da semana, e a comunidade assistia às decisões tomadas. Tereza presidia este Conselho e também as reuniões. As ordens dadas por ela eram executadas e seguidas à risca, sob o prejuízo de punição pela “rainha”.

O quilombo e modelo de governo estabelecido por Tereza de Benguela persistiu por quase 25 anos. Dizem que ela cometeu suicídio ao ser capturada. Registros históricos contam da líder, depois de morta, com a cabeça decepada e exposta no meio da praça do quilombo, servindo de exemplificação a todos os rebeldes. Mais que exemplo, Tereza de Benguela foi lição de cidadania.

Luiza Mahin

Nascida no início do século XIX, Luiza foi uma escrava africana liberta, radicada no Brasil, mãe do abolicionista Luiz Gama.

Seu filho, defensor do ideal libMeia dúzia de mulheres negras que valem por milertário, merece por si, uma memória.

Luiza pertencia à tribo Mahin, da nação africana Nagô, de onde vem seu sobrenome. Os Mahin eram adeptos do Islamismo e, no Brasil, ficaram conhecidos como malês. Esses negros escravos como os Mahin, Hauçás, Tapas, Bornus, entre outros, haviam sido trazidos do Golfo do Benin, no noroeste da África, região colonizada pelos muçulmanos.

Luiza tinha distinção e fidalguia. Conta-se que havia sido princesa, na África. Além de seus muitos atributos físicos e de sua peculiar personalidade, era extremamente comunicativa e diplomática.

Foi alforriada em 1812 (conta-se que ela comprou sua liberdade), e passou a viver de seu ofício de quituteira pelos largos/praças de Salvador. Uniu-se a um fidalgo português e dessa união nasceu o poeta abolicionista e jurista Luiz Gama, que foi criado, até a primeira infância, sob a batuta da retidão e da justiça materna, traços que marcaram sobremaneira sua vida. Seu negligente pai dissipou seus bens e vendeu, ilegalmente, Luiz Gama como escravo aos dez anos de idade, para quitação de uma dívida de jogo.

Ressaltamos que a atuação política e social de Luiza serve de inspiração na medida em que nos ensina a analisar a falsa ideia da abolição como um presente, uma concessão generosa. A libertação foi fruto de uma intensa história de árduas lutas. A negra voluntariosa esteve envolvida na articulação de todas as revoltas e levantes de escravos que aconteceram na Bahia imperial.

Luiza passava bilhetes escritos em árabe e informações de motins usando como disfarce o seu tabuleiro. Dessa forma, articulava uma rede de solidariedade e comunicação que servia para espalhar as mensagens das revoltas e para aglutinar irmandades que tinham por missão juntar dinheiro para a compra de alforrias. Esteve envolvida diretamente na Revolta dos Malês (1835) e na Sabinada (1837-1838).

Seu nome era cogitado para ser a Rainha da Bahia, caso o Levante dos Malês tivesse sido exitoso. Sua atuação política foi descoberta e Luiza foi perseguida. Fugiu para o Rio de Janeiro onde foi encontrada, detida e, possivelmente, degredada para Angola. Outra face possível da história é a de que tenha sido, aí, assassinada. Outra via defende que a negra tenha ido, de fuga, para o Maranhão e fundado o Tambor de Crioulas. Quem melhor definiu a valente Luiza Mahin foi o poeta e abolicionista Luiz Gama, seu filho: “Sou filho natural de negra africana, livre, da nação nagô, de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa, magra, bonita, a cor de um preto retinto sem lustro, os dentes eram alvíssimos, como a neve. Altiva, generosa, sofrida e vingativa.

Era quitandeira e laboriosa”.

Zeferina da Bahia

Viveu essa valente negra em lugar denominado Matas do Urubu, na periferia de Salvador, Bahia, hoje região do Parque São Bartolomeu.

Zeferina lutou contra os portugueses e participou ativamente do movimento para a libertação da Bahia, que teve como ápice o dia 02 de julho de 1823.

Muito cedo a menina percebeu as diferenças entre os mundos em que circulava e, jovem, foi vítima de castigo que lhe rendeu o pelourinho e uma coroa de espinhos. Foi o bastante para que Zeferina deixasse o clamor pela liberdade dominar seus passos.

Meteu-se então em busca de seus ideais libertários, não só para si, mas para todos os que sofriam nMeia dúzia de mulheres negras que valem por mila pele os horrores da escravidão.

Seus maiores atributos foram a destreza com o arco e flecha e sua liderança nata. Era uma mulher extraordinária, que enfrentava os soldados e animava seu bando compelindo-o a investir contra o inimigo através de palavras de ordem e de atitudes destemidas.

Entre os rebeldes era conhecida por “rainha”. Possuía grande eloquência e era estrategista de guerra. Os componentes de seu grupo devotavam a Zeferina da Bahia uma obediência leal e consideravam-se súditos da “rainha”. Seu grupo era composto por negras e negros nagôs e escravos libertos.

Sob sua liderança, um grande ataque aos brancos da capital foi organizado e executado, porém a liberdade não a alcançou. Zeferina foi farol, foi guia e norte. Sua luta baseava-se nos direitos básicos do ser humano. Foi guerreira nos embates por dignidade.

Zeferina também é referência no combate à violência doméstica e na redução de abusos contra crianças. A rainha era taxativa em punir os homens que batiam em suas esposas, e os infantes, em geral, eram seus protegidos. A negra Zeferina devotava, ainda, especial atenção aos anciãos de sua comunidade Urubu.

Por sua valentia, ousadia e determinação, grandes espaços foram abertos para a atuação da mulher em campos sociais, políticos e culturais. Zeferina empoderou o feminino em seu tempo. Zeferina da Bahia representa a presença e determinação feminina do subúrbio.

Ela foi protagonista e agente ativa de mobilizações em prol dos direitos fundamentais das comunidades da periferia de Salvador. Foi a mais inclusiva das “rainhas” negras.

Iêda Vilas-Bôas – Escritora. Falecida em 08.04.2022.  Deixa um rico legado e imensa saudade. Matéria publicada originalmente em 13 de maio de 2016 


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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