A Laerte Ornelas: Pra você, a minha saudade, Profeta!
Findamos como começamos. No sábado, 10 de novembro, quando no meio da tarde os meninos e meninas do “Laços da Alegria” passaram para animar você no seu quarto 202 do Hospital Universitário de Brasília, a lucidez de seu cérebro brilhante tirou, ainda, energia não sei de onde para entrar na onda.
Com o “doutor da alegria” de bata branca, bonito, barbudo, alto e esbelto, a prosa foi curta, você só o chamou de Fidel, e pronto. A química rolou mesmo foi com o “palhaço-tocador” com cara de mariachi mexicano que, depois de ganhar da Sílvia o honroso título de Capitão Pamonha, perguntou que música você queria ouvir.
A resposta veio objetiva e rápida: quiçá (chissà). Claro que um menino de vinte e poucos anos, aprendiz de tocador em leitos de enfermos, teria zero chances de atender a esse pedido. Partiu-se, então, para a sua segunda opção, expressada em uma só palavra: “Caminhando.” Essa, o Capitão Pamonha sabia. E essa nós cantamos juntos, como há 45 anos, quando nos conhecemos e nos tornamos amigos.
Sim, cantamos juntos. O tempo inteiro, você balbuciou as palavras. E você gostou daquele momento, que eu sei. Jéssica, sua filha querida fez uma foto nossa (acho que essa é a única foto que temos juntos, porque no nosso tempo não tinha essa coisa de ficar tirando retrato, e a gente é de uma geração que nunca se importou com isso, não é mesmo?)
Terminada a cantoria, você, ainda atento, pediu pra ver a foto. Viu e gostou. Mandou que eu a mostrasse pras enfermeiras todas, e que a enviasse pro Heli, o nosso amigo Dourado, que andava de viagem, lá pelo sul do Brasil, mas ligando todo dia pra saber de você. Consultei a Sílvia. Disse que sim, que podia mostrar e mandar. Fiz então o que você pediu.
Depois, fiquei tentando inventar assunto pra distrair você do pensamento da morte, pra ocupar você com coisas leves nesse processo doloroso de morrer. Perguntei qual o melhor prefeito que Formosa já teve. A resposta: “Sem a menor sombra de dúvida, Zezito Saad.” E o pior? “Não respondo,” disse você e calou total.
No resto da tarde, você seguiu repetindo, como um mantra, a palavra chissá. Ante a ignorância nossa, por fim você resolveu entregar o ouro: Sérgio Endrigo! No domingo, seu filho Laerte encontrou a Canzone per Te na internet e colocou pra você ouvir. Quando, na parte da tarde, perguntei se queria ouvir de novo, cheguei a colocar o som no celular, mas você pediu pra parar.
Você ali naquela cama, com a Sílvia 24 horas ao seu lado, com seus filhos fazendo tudo para não chorar na sua frente, com tanta gente entrando e saindo (visita liberada), se despedindo, e você, estoicamente, às vezes respondendo a perguntas básicas, às vezes só ficando calado, aguentando o tranco sem reclamar, era de cortar o coração, Profeta.
No domingo, 11, alguma prosa monossilábica houve ainda: Lula, eleições, e Anápolis (você queria ir pra Anápolis, fazer o que, será?). Era tanta gente pra te ver… entrei no rodízio, fiquei lá embaixo, aguardando a minha vez. Malu, sua outra filha querida, desceu e me pediu pra subir. “Ele está chamando por você,” Eu entrei naquele quarto, e então em nossa derradeira prosa ouvi de você a última palavra: casa.
Com voz embargada, te disse que você já ia voltar pra casa. Sem saber o que fazer, recitei os versos de Caminhando, essas linhas tão marcantes em nossas vidas, que felizmente ainda sei de cor. Mas o chão me fugiu de vez foi quando, na corredor ao lado vi seu filho Matheus enxugar os olhos antes de voltar pra te dar mais um beijo.
Do resto da tarde de segunda, 12, até a a madrugada do dia 17, quando você partiu de vez, foi o silêncio, a dor da despedida difícil e longa. Perguntei ao Heli, que foi te ver na sexta, o único dia em que, por excesso de dormência nas mãos e nos pés, não consegui ir pra Brasília ficar junto com sua família e ao seu lado, se sabia porque chamávamos você de Profeta. “Porque ele sempre soube mais que nós,” disse nosso amigo, com razão.
Na quinta-feira, quando voltei pra Formosa depois de te ver, ao chegar em casa quis saber do Joe o que tanto conversaram na última vez que fomos visitar você, poucos dias antes da sua internação, quando eu, sem coragem, fiquei com Sílvia na cozinha enquanto no seu quarto vocês dois proseavam. “Coisas inteligentes”, respondeu Joe.
Pois então: Por onde você passou nesses seus bem vividos 67 anos de vida, duas palavras te definiram: Inteligência e Sabedoria. A inteligência privilegiada, você já nasceu com ela. A sabedoria, você foi construindo com sagacidade e disciplina. Você sempre foi de muita leitura e, desde que te conheço, pra tudo você tinha resposta, e se não tinha corria atrás.
Com você aprendi bastante do pouco que sei da história de Formosa, principalmente dos causos que não entram nos registros oficiais. Mesmo agora na doença, não houve um único dia que nos vimos que você não tivesse uma pauta pra Xapuri, uma dica, uma pista.
Quem dera que eu tivesse tido coragem para te visitar mais, te ouvir mais, aprender mais de você nessas últimas semanas, meu bom amigo!
Um bom amigo, um amigo-irmão é o que você foi pra mim. Sempre presente, sempre discreto, sempre solidário. Quando, no ano de 2015, fui diagnosticada com o câncer de mama, você, que andava sumido, foi dos primeiros a chegar.
Daquele seu jeito de doutor sabe-tudo, com o conhecimento que os muitos anos na radiologia lhe deu, olhou meus exames, chapa por chapa e, ao final, deu seu veredito: “Fácil, não vai ser.”
Da forma mais natural do mundo, você me perguntou se eu estava com medo da morte. Quando eu te disse que da morte não tinha medo, que a via como um processo natural, mas que tinha um medo danado de passar por um processo de morrer demorado e cheio de dores, você me disse pra ficar tranquila, porque, primeiro, eu tinha alguma chance de sobreviver, e segundo, porque se fosse pra morrer, eu ia tirar de letra.
Rimos, e o tempo foi passando…
Há pouco menos de um ano você, sem mais nem menos, apareceu aqui em casa num final de manhã ensolarada pra trocar uma prosa tipo papo reto. “Maria (você foi meu único amigo nesta encarnação a me chamar de Maria), eu estou com câncer, tô indo pra Fortaleza, Laertinho já arrumou tudo, vou me operar e depois volto pra terminar o tratamento aqui”, você me disse de uma vez só.
Depois de perguntar os detalhes da doença e do tratamento, que você contou laconicamente, e de tentar aliviar a tensão perguntando porque raios neste mundo você só me chamava de Maria (“Se fosse pra te chamar de Zezé seu pai tinha registrado esse nome”, você me disse), devolvi a pergunta que você me fez no começo do meu tratamento. Perguntei se estava com medo da morte.
Conversamos um pouco sobre a proximidade da “indesejada das gentes” em nossas vidas. Por uma única vez, você me disse que não estava muito preocupado com o imponderável, mas que tinha pensado muito na minha resposta sobre o processo de morrer, e que medo não tinha, só um pouco de agonia ao pensar na possibilidade de uma morte solitária, longe da família e dos amigos, no leito frio de uma UTI.
Os meses foram passando e houve momentos em que você parecia bem, parecia que ia vencer o câncer. O caso era difícil, nós sabíamos, mas ver você até o mês passado fazendo mudas de uva e se preparando para o plantio de uma bela parreira no quintal da sua casa me encheu de esperança.
Pleno da mesma generosa bondade com que você cuidou de dezenas, centenas de pessoas ao longo de sua existência, você me ensinou as técnicas de plantio para as lindas mudas de uva que você me deu. Foi uma tarde bonita, com Sílvia ali no terreiro, carinhosa, sempre por perto, zelando por cada passo seu.
Na semana seguinte, deu ruim, e você já sabia do diagnóstico mas o escondeu de mim. Você me contou que tinha piorado, que não andava bem, mas quando perguntei sobre os exames, disse que os resultados já haviam saído, mas que estavam em Brasília, que não tinha visto ainda. Ou seja, quis encurtar a prosa. Foi Sílvia quem me contou a verdade, não foi você, Profeta.
Aliás, por falar em Silvia: você sempre me falou com orgulho dos seus quatros filhos inteligentes e lindos, dos seus genros bacanas, um, imagina a sorte, é “parente do Chico Mendes”, e da mulher fantástica com quem você compartilhou os últimos 30 anos (ou algo por aí) de sua vida.
Mas, Profeta, nem de longe você conseguiu expressar em palavras o valor dessa mulher formidável que te amou tanto e que cuidou tanto de você, especialmente agora na despedida. Generosa, nos acolheu a mim e ao Joe, e aos seus amigos todos, sempre de cara boa e coração aberto, mesmo nos momentos em que a gente via que estava literalmente exausta.
Corajosa e forte, Sílvia enfrentou a última semana da sua internação sem arredar o pé do hospital. Dia e noite, lá estava ela, cuidando de tudo, até o último momento. Por conta da firmeza de Sílvia, não houve UTI, Profeta. O seu destino, ninguém teve como viver por você, mas afeto, cuidado e muita presença humana na sua hora derradeira não lhe faltou, amigo.
Não lhe faltou, e segue não lhe faltando. Esse final de semana voltei à sua casa. Queria dizer à Sílvia o quanto sou grata a você, pelos aprendizados da vida toda, e, principalmente pela oportunidade que me deu de conhecê-la e admirá-la tão de perto nesse seu período de tratamento, e queria também agradecê-la por manter as portas de sua casa sempre abertas a mim e ao Joe.
Foi uma tarde boa. Conversamos muito, choramos e rimos, tomamos café sem doce, eu, por generosidade dela, na xícara que era sua. Falamos da horta que ela e o Matheus vão seguir plantando, do projeto de parreira que vai ser concluído, do quanto você preparou seus filhos deixando tudo anotado pra facilitar a vida deles… do catatau de papel que sua pessoa deixou pela casa e da tranqueira toda que ficou pelo quintal.
Mas o que me fez rir mesmo foi saber que, dentre as suas disposições finais à moda de testamento, você deixou selado o destino da “Dilma”, essa perua Saveiro antiga e cheia de adesivos desgastados que, desde a campanha passada da presidenta Dilma, aposentou-se na lateral da sua garagem, atravacando o caminho. “Pra Dilma, vou ter que inventar um plantio de flores, ou algo assim, porque Laerte deixou por escrito: Dilma, Bem Invendável,” me contou Silvia.
Só mesmo você, Profeta!
Canzone Per Te
(Sergio Endrigo)
Il cielo non è più con noi
Il nostro amore era l’invidia di chi è solo
Era il mio orgoglio la tua allegriaÈ stato tanto grande e ormai
Non sa morire
Per questo canto e canto te
La solitudine che tu mi hai regalato
Io la coltivo come un fiore
Se un nuovo sogno
La mia mano prenderà
Se a un’altra io dirò
Le cose che dicevo a teMa oggi devo dire che
Ti voglio bene
Per questo canto e canto te
È stato tanto grande e ormai non sa morire
Per questo canto, e canto te
Obs.: publicado originalmente em 4 de dez de 2017
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