Ailton Krenak: hora de descobrir um paraquedas
O fim do mundo talvez seja uma breve interrupção de um estado de prazer que exatamente a gente não quer perder. Parece que todos os artifícios que foram buscados pelos nossos ancestrais e por nós têm a ver com essa sensação.
Por Ailton Krenak
Quando se transfere isso para a mercadoria, para os objetos, para as coisas exteriores, se materializa no que a técnica desenvolveu, no aparato todo que foi sobrepondo ao corpo da mãe Terra. Todas as histórias chamam a Terra de Mãe, Pacha Mama, Gaia. Uma deusa perfeita e infindável, fluxo de graça, beleza e fartura.
Veja-se a imagem grega da deusa da prosperidade, que tem uma cornucópia que fica o tempo todo jorrando riqueza sobre o mundo… Noutras condições, na China e na Índia, nas Américas, em todas as culturas mais antigas, a referência é de uma provedora maternal. Não tem nada a ver com a imagem masculina ou do pai. Todas as vezes que a imagem do pai rompe nessa paisagem é sempre para depredar, detonar e dominar.
O desconforto que a ciência moderna, as tecnologias, as movimentações que resultaram naquilo que chamamos de “revoluções de massa”, tudo isso não ficou localizado em uma região, mas cindiu o planeta a ponto de, no século XX, termos situações como a Guerra Fria, em que você tinha, de um lado do muro, uma parte da humanidade, e a outra, do lado de lá, na maior tensão, pronta para puxar o gatilho para cima dos outros.
Não tem fim do mundo mais iminente do que quando você tem um mundo do lado de lá do muro e um do lado de cá, ambos tentando adivinhar o que o outro está fazendo. Isso é um abismo, é uma queda. Então a pergunta a fazer seria: “Por que tanto medo assim de uma queda, se a gente não fez nada nas outras eras senão cair?”
Já caímos em diferentes escalas e em diferentes lugares do mundo. Mas temos muito medo do que vai acontecer quando a gente cair. Sentiremos insegurança, uma paranoia de queda porque as outras possibilidades que se abrem exigem implodir essa casa que herdamos, que confortavelmente carregamos em grande estilo, mas passamos o tempo inteiro morrendo de medo.
Então, talvez o que a gente tenha que fazer é descobrir um paraquedas. Não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos. Já que aquilo de que realmente gostamos é gozar, viver no prazer aqui na Terra.
Ailton Krenak – Escritor, em Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras, 2019.