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Lembranças de Woodstock

Lembranças de Woodstock

Por Jaime Sautchuk

O mais importante festival internacional de artes populares do século XX foi, sem dúvida, o de Woodstock. Em agosto, comemora-se o seu 49º aniversário, mas parece que foi ontem, tal o realismo e a atualidade dos temas que afloraram naquele psicodélico evento, que ficou na memória como um grande encontro musical.

Foi um momento único, de origem despretensiosa, que nasceu da iniciativa de dois jovens que não sabiam o que fazer com o dinheiro que tinham, no país mais rico do mundo. E inigualável, pois foram em vão as inúmeras tentativas de reeditá-lo depois, lá mesmo, nos Estados Unidos, e em outras partes do planeta, inclusive no Brasil.

Era pra ter sido um evento bem organizado, em uma área cercada no interior de uma fazenda de Bethel, uma pequena localidade distante 160 quilômetros de Nova Iorque. Em verdade, era pra ter sido realizado na cidade de Woodstock, mas a comunidade local, temerosa de uma possível perda de seus valores morais e de danos ao seu valioso patrimônio, entrou na justiça e impediu a festa. Isso, às
vésperas do evento.

Os organizadores argumentaram em contrário, mas o esforço não foi considerado. Tiveram a sorte de um fazendeiro da minúscula Bethel, vizinha de Woodstock, oferecer sua propriedade. Afinal, as inscrições de participantes e a venda de ingressos antecipadas, em números limitados, garantiriam
ordem e rentabilidade, como ueriam os organizadores. E o espaço foi preparado como estava nos planos.

Logo no primeiro dia, contudo, a cerca foi ignorada e derrubada pelo público em número dez vezes superior ao previsto e muita chuva enlameou o terreno com barracas improvisadas ou gente espalhada ao relento. Banheiros públicos e lanchonetes não deram nem pro começo, e o policiamento sumiu na multidão. Enfim, foi uma grande bagunça que deu certo – e marcou história.

No evento em si, os organizadores tiveram um baita prejuízo, pois deixaram de cobrar ingressos da grande multidão e tiveram de gastar dinheiro extra com reforço do palco e passarelas. Mas recuperaram tudo com o filme e os discos gravados durante o festival e vendidos depois.

O INVESTIMENTO

O início da história foi quando dois jovens empresários, John Roberts e Joel Rosenman, ambos com idade de 26 anos, queriam aplicar o bom capital acumulado com uma indústria farmacêutica, mas não sabiam em quê. Eles colocaram um anúncio inusitado nos jornais The New York Times e The Wall Street Journal com os dizeres: “Jovens com capital ilimitado procuram por oportunidades legítimas e interessantes e propostas de negócios”.

Apareceram milhares de propostas, mas uma delas se destacava. Era de dois outros jovens empreendedores, Artie Kornfeld e Mike Lang, que tinham muitas ideias, mas nenhuma grana.
Inicialmente, eles propuseram a criação de um moderno estúdio de gravações de discos. Implantaria
uma linha de produtos diferente das grandes gravadoras já estabelecidas, mas capaz de, por isso mesmo, concorrer com elas e abocanhar grande fatia do mercado.

A ideia evoluiu pra realização de um festival de música e outras artes que fosse capaz de desvendar
novas tendências e que rendesse bom dinheiro. Com isso, reduziriam os custos e os riscos do estúdio. O evento seria realizado em local próximo a Nova Iorque, no estado do mesmo nome, onde estava o grosso do público que pretendiam alcançar. E seria entre os dias 15 e 18 de agosto, um período de entressafra da programação nesta área.

Um dos proponentes, Kornfield, de 25 anos, levava dupla vantagem no negócio. Ele era vice-presidente da Capitol Records, uma das grandes gravadoras de então, e conhecia bem o mercado. De quebra, tinha acesso às principais bandas de rock dos Estados Unidos e da Europa, o que facilitava a montagem do
elenco do festival.

Seria alugada uma área na zona rural, próxima da sede do município, pra receber um público máximo de 50 mil pessoas nos três dias de apresentações, com a opção de ingressos pra um ou mais dias. Seria erguida uma cerca de telas, de uns dois metros de altura, com várias portarias bem guarnecidas. No
interior, o palco com cobertura e bem protegido, banheiros químicos, com chuveiros, e pontos com
água portável em abundância.

Escolheram, então, a cidade de Woodstock, que, além de atender a esses requisitos, tinha uma infraestrutura adequada, com boa rede hoteleira, muitos restaurantes e  lanchonetes, e um bom esquema de segurança. Um local bastante sofisticado, mas, talvez por isso mesmo, meio metido a besta, a ponto de enjeitar o evento quando tudo já estava em andamento.

Lembranças de Woodstock

Faltava menos de um mês. Muitos artistas já haviam confirmado a participação e boa quantidade de ingressos já estava vendida. Ágeis, no entanto, os organizadores conseguiram o novo local, não muito distante dali, de modo a manter a programação prevista.

A vila de Bethel, por sua vez, havia sido, até a década de 1950, um concorrido centro turístico, com hotéis, resorts, motéis e restaurantes que atraíam um público em busca clima ameno de serra e uma famosa sopa de beterraba, muito apreciada pelos judeus.

A essa altura, porém, estava em franca decadência, com a rede hoteleira quase toda em ruínas e os moradores  empobrecidos pela falta de ocupação. Os turistas haviam sumido, por terem surgido opções mais  atraentes em outros pontos daquela parte do país.

O humorista e escritor Elliot Tiber morava na cidade, onde sua família tinha um hotel antigo, quase sempre vazio – “um fardo que nós carregávamos”, afirma ele no livro Aconteceu em Woodstock (Editora Best Seller, Rio de Janeiro, 2009). A população de uns  dois mil habitantes ficou dividida sobre a realização do festival, mas prevaleceu a tese de que aquela  seria a chance de soerguimento da economia local.

O único empresário próspero na localidade era Max  Yosgur, o melhor amigo de Elliot – justamente o fazendeiro que havia oferecido espaço aos  organizadores do festival. Ele criava gado e mantinha uma agroindústria leiteira, cuja produção (leite, manteiga, queijos, iogurte etc.) era distribuída por uma eficiente frota de caminhões em Nova Iorque e  estados vizinhos.

O fato de ele ser a favor de levar “um bando de hippies irresponsáveis” à localidade,  como diziam alguns moradores, foi o que mais pesou, no final das contas. Muitos até ofereciam tortas, frutas, sucos e comidas salgadas aos visitantes que pareciam em dificuldades.

Ademais, tampouco foi a “verdadeira mortandade” que alguns prediziam – morreram três pessoas: uma atropelada  por um trator, outra por um rompimento de apêndice e um terceiro por heroína em excesso, segundo um  relatório médico. E duas crianças nasceram no período, e os partos foram feitos por alguns dos 70 médicos que atenderam em centros montados em barracas.

Não seria necessário dizer que as estradas  da região ficaram plenamente engarrafadas, de modo que muitas pessoas deixaram seus carros a mais de 20 quilômetros e seguiram a pé. Já os artistas foram conduzidos em helicópteros até um heliporto que se comunicava com o palco por passarelas.

NO PALCO

Dos artistas e bandas convidados, poucas foram as recusas. Dentre elas, os Beatles, que justificaram com o fato de que não tocavam juntos havia três anos e estavam em processo de separação oficial. Já o grupo Led Zeppelin, também britânico, alegou que não queria “ser apenas mais um entre tantos”.  Depois, porém, seus componentes confessaram profundo arrependimento.

A falta de Bob Dylan foi sentida, mas ele alegou estar com um filho hospitalizado. De todo jeito, 32 bandas e artistas solos se apresentaram em Woodstock. O maior destaque foi Jimmy Hendrix, que empunhou sua esfuziante guitarra só a partir das 9 horas da manhã de segunda-feira, quando o festival era pra ter se encerrado  no final da tarde de domingo.

Ele era bastante ignorado pela mídia dos EUA, que o considerava rebelde demais. Ali, contudo, sua apresentação foi gigantesca, a ponto dele entoar o hino nacional de seu país e despedaçar a guitarra no chão, em meio a acordes que pareciam fluir no espaço.

A maioria dos participantes, no fim das contas,  era de artistas ianques, uns do gênero country (o caipira de lá), como Richie Havens, Arlo Guthrie e Joan Baez, esta mais politizada, e o restante do rock, como Hendrix, Janis Joplin, Joe Cocker e os grupos Creedence Clearwater Revival e Jefferson Airplane. Alguns britânicos, como o The Who.

De fora desse eixo, marcaram a presença o guitarrista mexicano Santana, que havia morado no Brasil, e o tocador de sitar indiano Ravi Shankar, que havia tocado anos antes com os Beatles e virou uma espécie de guru oriental nos meios artísticos internacionais.

PAZ E AMOR

A revolta da juventude contra o estado de coisas daquele mundo capitalista de 1969 ali se manifestou das mais diversas formas. Os padrões de comportamento (the American Way of Life) foram questionados no jeito de vestir, de comer, de namorar.

As crenças também deram lugar aos  ensinamentos orientais, especialmente os indianos; o poderio bélico do Pentágono contestado por gestos contrários à guerra genocida do Vietnã, então em curso; e o dinheiro resumido ao dito “um por todos, todos por um”.

O lema “Paz e Amor” continha muito mais do que a pregação da não violência e o apreço pelos demais seres humanos. Demonstrava a insatisfação generalizada com os pilares básicos do capitalismo. Era contra o ódio e a ganância, contra o consumismo e a acumulação de capital, contra o imperialismo do Tio Sam, empenhado em dominar o mundo pra obter maiores lucros e exportar suas próprias contradições, como pregavam os marxistas-leninistas.

A contracultura era um movimento que crescia no mundo ocidental de então, com características diferentes nos Estados Unidos, Europa,  América Latina e noutros continentes.

Lembranças de Woodstock

Especialmente em países europeus, se valorizava o socialismo, com destaque ao chinês, a ponto de ser muito difundido o Livro Vermelho, de Mao Tsé-Tung (hoje chamado de Mao Zedong). O “maoísmo” prosperava entre os jovens, principalmente os europeus, e também estava presente no grandioso  festival.

Havia, também, grande admiração pela revolução em Cuba, então ainda recente e muito viva,  simbolizada pelas figuras de Fidel Castro e Che Guevara. Fidel comandava o regime cubano, batendo de  frente nos Estados Unidos, e Guevara havia sido morto dois anos antes, em 1967, na Bolívia, tornando-se um personagem quase mitológico da luta pela libertação dos povos.

Havia, ainda, o mesmo sentimento em relação ao Pan-africanismo, que pregava a revolução socialista, com a tese de que um país africano poderia ser dirigido por governo que estivesse acima das etnias e diferenças culturais e que a África fosse unida. O líder marxista ganense Kwame Nkrumah influenciou
esse movimento com suas obras teóricas e ações práticas.

Ele foi primeiro-ministro e presidente de Gana, desde se libertou da Inglaterra, em 1957, até 1966, quando foi deposto por um golpe de estado. Ele não morreu porque estava em viagem a Hanói, então Vietnã do Norte e, ao voltar ao solo africano, exilou-se na Guiné, onde faleceu em 1972.

Mesma sorte não teve Patrice Lumumba, da República Democrática do Congo, que liderou a luta pela libertação do domínio belga, em 1960, mas ficou no poder por apenas 67 dias. Foi cruelmente assassinado e seu corpo diluído em um tonel de ácido. Outras lideranças do mesmo matiz despontavam na África naquele período. Julius Nyerere, da Tanzânia, Sekou  Toure, da Guiné, Tom Mboia, do Quênia, são três exemplos clássicos.

É certo que, naquele final da década de 1960, a esquerda revolucionária tinha seus próprios métodos de atuação, inclusive no Brasil, com essa forte influência internacional. Aqui, a luta armada contra a ditadura militar mobilizou mais de uma dezena de organizações, em ações inicialmente urbanas, que depois evoluíram também pra zona rural.

CULTURA DO SÁRI

No entanto, o que era mais marcante maior parte daquele público que foi a Woodstock, de mais de meio milhão de pessoas, era o comportamento hippie, do desapego aos valores dominantes no mundo capitalista da época.

Cabelos longos e desalinhados, trajes exóticos – o sári indiano, por exemplo –, com muitos colares e outros adereços (ou a simples nudez), a vida em comunidades, a produção de  artesanatos e a pregação da liberação do uso de drogas eram as suas marcas mais visíveis.

É bem verdade que os chamados hippies eram apenas uma parte da Contracultura, um movimento que influenciou fortemente a juventude dos anos 1960, mas envolveu, de igual modo, adultos e idosos. Tampouco o uso de drogas era tão generalizado quanto parecia – à época, as mais difundidas eram
maconha, haxixe, heroína e LSD.

Era principalmente um ideário de contestação à sociedade reinante, que se manifestava no comportamento e vestimentas, mas também na literatura, na música, nas artes  plásticas, no cinema, no teatro, na arquitetura, na educação, na filosofia, em muitos aspectos da vida, enfim.

Entre tantas manifestações da Contracultura, vale lembrar uma da música, no Brasil. Foi a Tropicália, surgida em 1967, que não era um gênero rítmico e melódico, pois misturava tudo, a começar por samba, rock e baião, mas sacudiu o cenário brasileiro da época.

Os cantores-compositores Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, José Carlos Capinan, Torquato Neto, o maestro Rogério Duprat, o artista gráfico Rogério Duarte, os grupos Mutantes e, depois, Novos Baianos  foram seus principais integrantes.

Entretanto, na literatura muitos autores são anteriores ao movimento massificado e são considerados inspiradores dessa doutrina libertária. Hermann Hesse, escritor e artista plástico alemão, por exemplo, morreu já idoso, sete anos antes de Woodstock, mas seus livros, como “Lobo da Estepe”, “Sidarta” e “Knulp”, eram presença nas bolsas e mochilas dos andarilhos, com  personagens marcantes desse jeito novo de encarar a existência humana, antiopressivo.

O também alemão Herbert Marcuse, naturalizado nos EUA, filósofo seguidor da doutrina clássica marxista, proclamava o fim da classe operária com a automação excessiva da sociedade industrial. E arrebatava simpatias pelo seu combate à tecnologia como instrumento de maior exploração por parte da classe dominante, a burguesia.

Ou seja, o desapego aos bens materiais supérfluos, desnecessários e fatores de dominação, era uma característica desse movimento, apesar da massiva pregação em  contrário dos grandes meios de comunicação. Um sentimento que ainda persiste entre grande parte da juventude nos países centrais do capitalismo.

Lembranças de Woodstock

Há coisa de cinco anos, uma detida e prolongada pesquisa nos EUA revelou os principais interesses dos jovens daquele país na sua vida. O item “ter um automóvel”, por exemplo, não constava da lista de dez preferências dos adolescentes de lá. Preferem o transporte público, coletivo, ou outros meios de locomoção, mais condizentes com as cidades que não comportam mais carros particulares.

No Brasil de hoje é bastante diferente, embora décadas atrás tenha prosperado, também aqui, a visão de que a solidariedade e o desapego aos bens materiais individuais sejam mais gratificantes à alma humana.

É certo que uma recente pesquisa do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) com o Instituto Ipsos demonstrou que, nas cinco regiões do país, a emissão de CNH (Carteira Nacional de Habilitação) caiu de 3 milhões em 2014 pra 2,1 milhões no ano passado. É significativo, pois o documento revela  projeto de carro, mas 58% dos jovens entre 18 e 22 anos disseram que pretendem “cuidar disso no futuro”. O motivo atual foi escassez de grana, não de interesse.


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