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Luto no Zoim: da religiosidade popular ao autoritarismo da classe dominante

Luto no Zoim: da religiosidade popular ao autoritarismo da classe dominante

O pacato vilarejo de Olhos D’Água começou a ser ocupado entre os anos de 1910 e 1940. Inicialmente habitavam por aqui os povos originários. Depois surgiram os povos remanescentes de quilombos e proprietários de terras.

Por Iolanda Rocha

A história de Olhos D’Água começou humildemente com uma promessa. Pessoas que foram escravizadas e que habitavam esta região ficaram sabendo que estava surgindo a ideia da volta da escravidão no início do século XX. Diante da tal brutalidade possível, uma senhora ex-escravizada fez uma promessa a Santo Antônio de Pádua que, se caso não voltasse a escravidão, ela construiria uma capela para Santo Antônio.

Daí começou a devoção. Um fazendeiro da região doou umas terras para a construção da capela e posteriormente de uma igreja. O vilarejo foi crescendo e desmembrado do município de Corumbá GO, quando foi emancipado com o nome da cidade de Santo Antônio do Olho D’Água.

O tormento de Olhos D’Água começou com a mudança da capital do Brasil, do Rio de Janeiro para o Planalto Central. Dada a ganância e a vaidade, uma família de fazendeiros da região resolveu roubar o título de cidade emancipada e levar a sede do município para as margens da rodovia que ligava Goiânia a Brasília no início dos anos 60. A cidade passou a se chamar Alexânia.

Esta foi a primeira tentativa de destruição de Olhos D’água.

No início da década de 1970, a professora da Universidade de Brasília, Laís Aderne, juntamente com o seu esposo, Armando, que ainda reside em Olhos D’água, chegaram ao vilarejo e perceberam a triste situação de escassez, fome e abandono do poder público, representado pela prefeitura de Alexânia e pelo estado de .

O casal começou a se reunir com moradores da região em 1973 para pensar uma forma de melhorar a local. Surgiram vários artesãos organizados e começaram a ensinar para os mais jovens, e rurais apresentavam muitas iguarias da região a partir dos frutos do Cerrado e das colheitas da roça.

Em diálogo com a professora Laís Aderne, decidiram criar uma feira para escoar a mercadoria produzida. A professora Laís sugeriu a criação da primeira FEIRA DO TROCA para o ano seguinte, 1974.

Várias pessoas conhecidas de Brasília foram convidadas para conhecerem os produtos e trazerem os objetos como roupas, calçados, utensílios domésticos, entre outros, para trocarem em Olhos D’água. Nesse momento o pequeno vilarejo passou a ser conhecido. Portanto, a ideia da Feira do Troca surgiu há cinquenta anos.

Neste ano de 2023, foi realizada a 97ª FEIRA DO TROCA. A partir da primeira Feira do Troca em 1974 ficou definido que deveria acontecer duas edições por ano, na praça principal de Olhos d’Água. E que seria nos primeiros finais de semana dos meses de junho e dezembro.

Para surpresa da comunidade local, a prefeitura de Alexânia, juntamente com a paróquia do município e a diocese de Anápolis, resolveram destruir a , a história e a economia de Olhos D’Água pela segunda vez. Alegaram que a Feira do Troca não podia mais acontecer na praça da igreja de Santo Antônio, porque esta era uma festa profana e que não estava de acordo com os valores cristãos. Para agravar a situação do pacato vilarejo, a igreja solicitou a derrubada de árvores extremamente importantes do bioma Cerrado, como um frondoso pé de Jatobá, para a construção de calçadas em volta da praça.

A tristeza da população foi imensa com a agressividade às árvores, justamente em um momento crítico de discussões mundiais sobre as mudanças climáticas e o aumento do desmatamento do bioma Cerrado.

A paróquia de Alexânia, representada pelo padre Cleyton Francisco Garcia, conseguiu dividir a comunidade, muitos membros da igreja local. O mais grave desta situação é que o Padre Cleyton, não satisfeito com a derrubada do coreto da praça, a retirada da feirinha de sábado, a destruição das árvores, a proibição da Feira do Troca na praça, juntou-se com o prefeito Allysson Lima e solicitaram a presença da polícia militar do estado de Goiás para dar segurança às suas atrocidades.

Logo depois que ocorreu a feira de junho, a comunidade foi surpreendida com informações, veiculadas em vídeo da transmissão da missa em Alexânia, que não deveria mais ser realizada a Feira do Troca na Praça da igreja.

Depois de anunciada a notícia, a comunidade local se mobilizou para tentar impedir a retirada da Feira do Troca da praça. Várias reuniões ocorreram com representantes da prefeitura, do Ministério Público e também do IPHAM – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, onde foi dada a entrada no processo de tombamento da Praça principal de Olhos D’Água.

O pacato vilarejo deixou de ter paz e passou a encarar uma “ santa” onde moradores da cidade de Alexânia foram convidados a participar de atividades religiosas no local e a disputar um terreno religioso em Olhos D’água, que dizem ser uma cidade do Senhor Jesus. Imagino que Jesus Cristo, o dos evangelhos, está ao lado do povo camponês, dos artesãos, marceneiros e do povo simples do interior.

No dia dois de dezembro, véspera da 97ª Feira do Troca, a polícia do Estado foi chamada pela paróquia de Alexânia para dar segurança ao padre, que temia haver algum protesto devido à proibição da Feira na praça da igreja.

Alguns atos e cortejos ocorreram pacificamente durante o dia. No início da noite a Polícia Militar proibiu qualquer atividade na praça principal. Algumas pessoas se indignaram e não aceitaram o autoritarismo. Diante disso, a polícia usou spray de pimenta para dispersar as aglomerações e levou arbitrariamente uma trabalhadora presa, a qual tentava trabalhar em um estabelecimento na praça da igreja.

A Feira do Troca significa para a comunidade, artesãos, comerciantes, donos de pousadas e trabalhadores em geral, um momento para circulação da economia local. Além da preservação da cultura e da história.

O evento que ocorre duas vezes por ano e tem sido fundamental para garantir a econômica das pessoas que vivem por aqui. Espera-se que avance o processo de tombamento da praça e que a Feira do Troca volte a acontecer no local onde sempre aconteceu: na praça principal de Olhos D’Água. E como lema para a luta a comunidade escolheu a palavra de ordem: A PRAÇA É DO POVO COMO O CÉU DOS PASSARINHOS.

 

HORA DA PARTIDA

Por Iolanda Rocha

O vilarejo dorme.

Entre lágrimas e mágoas,

passarinhos noturnos

enterram simbolicamente a sua Maria Preta.

Os olhos se enchem de água…

coração partido,

no silêncio, um gemido,

um adeus às irmãs árvores

que tombaram, pela insensibilidade

e ganância dos demônios,

que não sentem dor,

que preferem ignorar e, sem ,

esquecem que na morte de um, de uma,

morreu um pouco de cada qual de nós.

A Praça, ai, a Praça, como dói…

a Praça de Olhos D´Água

tem cheiro de chuva e orvalho de dor.

Jatobá, Maria Preta…

Adeus, partam em paz,

mas que fique conosco a indignação.

Que façamos das lágrimas

um símbolo de luto, luta, ação,

e que não descanse

o nosso coração,

pela Praça, pela Feira, pelas árvores, pelos passarinhos,

pelo aconchego de quem chora e luta

por uma vida que tenha vida.

Adeus, Adeus,

Chegou a hora da partida.

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Iolanda Rocha – Educadora. Socioambientalista. Conselheira da . Foto de capa: Iolanda Rocha.

 
 
 
 
 
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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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