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Medicamentos: viva a doença?

Medicamentos: viva a doença?

A hepatite tipo C é uma doença infecciosa sorrateira e assustadora, pois ainda mata cerca de 3 mil pessoas por ano no Brasil. Mas tem cura. E o mais eficaz nesse tratamento, o Sofosbuvir, é de amplo domínio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que atua no suporte do Sistema Único de Saúde (SUS), e de vários laboratórios privados brasileiros, que podem fabricar genéricos…

Por Jaime Sautchuk

No entanto, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) havia registrado sua patente em nome do laboratório Gilead, dos Estados Unidos, e assim impedido sua fabricação em larga escala, a custos muito menores. No final de setembro, porém, manifestações públicas de usuários e ações na justiça comum forçaram a quebra da patente.

O governo brasileiro vem pagando ao laboratório ianque R$ 190,00 por comprimido do produto. O tratamento completo pra cada pessoa chega a custar R$ 16.000,00 ao SUS. O mesmo tratamento, a partir de agora, vai ficar por R$ 2.750,00, com o medicamento produzido por um consórcio liderado pela Fiocruz. Ou seja, terá um custo seis vezes menor, o que representará economia de R$ 1 bilhão anual aos cofres públicos.

Este é um exemplo de caso atual, bem brasileiro, que dá uma ideia do gigantesco tamanho desse negócio dos medicamentos. Mas é apenas uma faceta de um mundo que envolve o uso gratuito do conhecimento popular e o bem- estar do ser humano, mas também o desvio de profissionais da Medicina, de agências reguladoras e tantos outros aspectos, até bater em cifras astronômicas.

VIVA A DOENÇA

No mundo de hoje, a maior parte desse negócio é controlada por duas dezenas de laboratórios, a maioria dos quais com sede nos Estados Unidos. Eles gastam bilhões de dólares em pesquisas sobre medicamentos, mas seu objetivo não é eliminar as doenças e, sim, mantê-las sob controle, garantindo o consumo dos seus produtos.

Ou seja, o interesse maior dessas empresas não é encontrar a cura definitiva dos males que afligem os seres humanos. Mas tampouco é deixar que os doentes morram. Estes precisam ficar bem vivos – e bem doentes – pra que consumam mais e mais medicamentos, gerando lucros fantásticos a esse cartel do mal, conforme revelações feitas nos últimos anos.

O médico e biólogo molecular britânico Richard J. Roberts ganhou o Prêmio Nobel de Medicina (1993) por suas pesquisas a respeito de alimentos transgênicos, razão pela qual sempre foi muito criticado por outros cientistas ligados à defesa do meio ambiente. Entretanto, com o espaço que passou a ter na mídia global, ele acabou se tornando uma potente voz contra a indústria de medicamentos.

Em entrevista ao jornal espanhol El País, no ano passado, ele acusou essas empresas de investirem muito mais em propaganda do que em pesquisa e desenvolvimento de produtos que sejam eficazes. A elas não interessa criar fármacos que curem, mas sim apresentá-los como o que há de mais avançado ao alcance da , enganando o consumidor.

“A elas interessa desenvolver medicamentos cronificadores das doenças, que não curam de todo e devem ser consumidos de forma serializada, de modo que o paciente experimente uma melhora que desapareça quando deixar de tomar o medicamento”, resume Roberts.”

Nessa mesma linha, são citados casos de laboratórios que chegam a pagar universidades do mundo inteiro pra que não prossigam pesquisas que levariam a resultados revolucionários na cura de algum tipo de câncer, por exemplo. E se essas instituições prosseguirem nos programas, sofrem todo tipo de retaliação, através de propaganda e outros artifícios. O medo como arma.

Há, também, ações organizadas sobre agências reguladoras, pra que adotem este ou aquele medicamento nos mais diversos países. Nisso, a arma mais usada é a da de gestores públicos que exercem funções de comando nos órgãos de controle.

CONTRATO MÉDICO

Nenhum outro setor da economia usa métodos tão refinados de propaganda e publicidade quanto o de medicamentos. O requinte já pode ser visto nas embalagens dos produtos, com rótulos e bulas que contam mentiras de modo sutil. Mas vai até uma relação promíscua com profissionais do setor de saúde, como farmacêuticos, enfermeiros e principalmente médicos, em que os princípios éticos desaparecem.

Os laboratórios de aproveitam da relação quase fraternal que se cria entre médicos e pacientes, por exemplo, pra interferir de modo a angariar clientelas e aumentar suas vendas.

Não são todos os profissionais, é claro, mas grande quantidade deles. Isso, no mundo inteiro, mas com menos sutilezas em países em desenvolvimento, com grandes populações e padrões de consumo como o Brasil. Com o detalhe de que, aqui, o é grande cliente, através do SUS (Sistema Único de Saúde).

A relação do paciente com o médico gera um contrato implícito, em que se fixa uma espécie de fidelidade, pois uma pessoa coloca sua vida nas mãos de outra, como algo natural, na mais sincera boa-fé.

Assim, o profissional de branco passa a ter certa autoridade sobre o atendido. Afinal, a ele cabe diagnosticar o mal e prescrever o tratamento necessário, o que inclui os medicamentos a serem empregados, muitas vezes receitados pela sua marca, não pelo princípio ativo.

É estranho que nas folhas de pagamentos das indústrias farmacêuticas haja quantidades exageradas de profissionais de saúde e mesmo de doentes que dirigem entidades solidárias. É uma variedade enorme de gente influente, que inclui diretores de academias de ginástica, SPAs e clínicas de atendimento psicológico. O que é muito mais esquisito, porém, é que entre os contracheques no final do mês haja alguns com os nomes de pesquisadores de universidades e até editores de respeitadas revistas científicas.

DENÚNCIA EM LIVRO

Esse modo de agir da indústria farmacêutica é o tema de um livro do médico e pesquisador dinamarquês Peter C. Gotzsche, difundido mundo afora e já editado no Brasil. Seu título é Medicamentos Mortais e Crime Organizado – como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica (Bookman Editora, Porto Alegre, RS, 2016), com versão virtual gratuita.

Professor da Universidade de Copenhague, ele escolheu dez dos maiores laboratórios do mundo, esmiuçou suas listas de produtos e seus métodos de comercialização, que ele compara ao crime organizado. A máfia italiana fica parecendo uma comportada congregação de moços perto dessa indústria.

Ao participar de recente congresso médico no Rio de Janeiro, Gotzsche falou com a imprensa brasileira e disse não temer processos judiciais por classificar a atividade dos laboratórios como “crime organizado”. Segundo ele, os fabricantes “sabem que estão errados e repetem de novo e de novo”. Ele arremata: “Eu documentei crimes cometidos pelas dez maiores farmacêuticas entre 2007 e 2012. Esses crimes estão crescendo, e isso não é surpresa.”

Em verdade, já em seu livro ele reproduz depoimento de um ex- -vice-presidente do laboratório Pfizer, que reforça sua posição. Diz o executivo: “É assustador quantas semelhanças existem entre esta indústria e o crime organizado. O crime organizado ganha quantias obscenas de dinheiro, como a indústria. Os efeitos colaterais do crime organizado são matanças e mortes, e os efeitos colaterais são os mesmos nesta indústria. O crime organizado suborna políticos e outros, e assim faz a indústria farmacêutica…”.

Muitas vezes, sem saber, os pacientes viram cobaias em pesquisas que os laboratórios estão realizando em torno de uma determinada doença, buscando os resultados que mais lhes convenham. As pesquisas de Gotzsche começaram com os diagnósticos e tratamentos de câncer de mama em clínicas europeias, em que eram enganadas e tratadas sem que precisassem.

Ele dedica grande atenção, também, à área da Psiquiatria. Nela, o medicamento é prescrito sem nenhum controle e seus resultados são avaliados de forma bastante subjetiva. Por isso mesmo, é um dos filões mais apreciados pelos laboratórios, que investem pesado em drogas e na assistência a profissionais desse ramo da Medicina.

O fato é que os pacientes se tornam viciados em psicotrópicos e passam a ser usuários permanentes. Quando interrompem o tratamento, apresentam os sintomas da abstinência, mas em geral os psiquiatras não reconhecem prescrições indevidas. Segundo Gotzsche, “eles aprenderam com a indústria farmacêutica que nunca devem culpar a droga, mas sim a doença”.

Promover medicamentos que afetam as funções do cérebro é prática corriqueira. Ele cita vários casos, desde o maior deles, que é o do Valium (diazepan), produzido pela Hoffman-La Roche, que se tornou a pí mais vendida do mundo.

Ainda na década de 1970, essa farmacêutica suíça foi multada na Europa com base em lei antitruste, pelos métodos usados na comercialização desse tranquilizante. Mas ela seguiu com a prática em outros continentes – mesmo no Brasil, onde o Valium é muito conhecido (e usado).

FICÇÃO E REALIDADE

O escritor britânico John le Carré se baseou de longe em fatos ocorridos na localidade de Kano, na Nigéria, pra escrever seu romance O Jardineiro Fiel, lançado em 2001, que envolve a indústria farmacêutica. O livro virou o fi lme do mesmo nome dirigido pelo cineasta brasileiro Fernando Meirelles (2005), que levou o tema às telas do mundo inteiro.

A obra gira em torno do suposto assassinato da esposa de um diplomata que serve na embaixada do Reino Unido em Nairobi, no Quênia. Ela é uma militante social, e o assassino é um médico amigo da família, com quem ela manteria relações extraconjugais, de modo que o caso foi dado como crime banal.

Não satisfeito, porém, o diplomata largou os jardins que cuidava e tomou as investigações pra si. Logo descobriu que a , em verdade, foi morta porque havia desvendado experimentos do grupo farmacêutico KVH (Ka11 CAPA rel Vita Hudson) com populações africanas e ameaçava denunciá- los. Os testes eram secretos e feitos com a conivência de governantes locais, que eram subornados pra que os escondessem.

Mais uma vez, entretanto, a ficção encontra ecos na realidade. Outro caso, este narrado por Gotzsche em seu livro, é pura verdade. Em 2012, o laboratório Pfizer, com sede nos Estados Unidos, passou a ser investigado pelas autoridades do seu país por crime de “suborno no estrangeiro”. O caso ganhou volume, mas a empresa preferiu pagar pesada multa de 60 milhões de dólares pra que o processo fosse encerrado.

Segundo o tribunal federal dos EUA, um dos subornados pela Pfizer era um médico croata, que morava em Zagreb e recebia mensalmente por “serviços de consultoria”. Em verdade, era ele quem decidia quais medicamentos seriam adotados pelo serviço público de saúde de seu país e era pago pra defender os interesses do laboratório nisso.

No processo do tribunal, o juiz ressalta “a falta de conexão entre as declarações da indústria farmacêutica de ‘padrões éticos mais elevados’ (com destaque na sua publicidade) e a realidade de sua conduta”.

VERSÃO NACIONAL

O Brasil é, hoje, o quinto maior mercado de medicamentos do mundo, segundo dados corroborados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Não é à toa, pois, que também seja um dos principais alvos das empresas multinacionais deste setor, que mantêm no país o mesmo sistema de influência utilizado mundo afora.

Este talvez seja o setor da economia em que a distinção entre o capital nacional e o estrangeiro é mais clara, mais bem delimitada.

medicamentos

Diversas entidades congregam fabricantes, algumas das quais de modo mais abrangente, com pautas mais gerais, mas sempre de modo separado, pela origem de seus proprietários.

Os laboratórios multinacionais são representados, principalmente, pela Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), criada em 1990, cujos afi liados são responsáveis por 80% dos medicamentos de referência disponíveis no mercado brasileiro.

Conforme a pesquisadora Najla Passos, em artigo publicado pela revista Carta Capital, essa ação é bem visível em forte esquema de lobby no Congresso Nacional. Ali, as grandes farmacêuticas fazem marcação a corpo sobre deputados e senadores, angariando simpatias com financiamentos de campanha, promoção de eventos e patrocínio de viagens internacionais.

A Interfarma, por exemplo, firmou uma parceria com o Brazil Institute do Woodrow Wilson International Center for Scholars, com sede em Washington, e juntos patrocinaram viagens de 32 parlamentares brasileiros aos Estados Unidos e à Europa, onde participaram de seminários sobre ciência, tecnologia e inovação, entre 2.011 e 2.013.

O diretor do Brazil Institute é o jornalista brasileiro Paulo Sotero, que, de 1990 a 1996, quando o Brasil discutia os termos da sua abertura econômica, atuava como correspondente do jornal Estado de S. Paulo na capital norte-mericana. le é o organizador do livro O Congresso Brasileiro na Fronteira da Inovação, que narra a experiência dessa parceria do Brazil Institute e com a Interfarma.

Conforme Sotero conta no livro, a parceria realizou três conferências acadêmicas no Wilson Center, do Massachusetts Institute of Technology, no Brazil Institute do King’s College, de Londres, e no Instituto das Américas, sediado na Universidade da Califórnia, em San Diego. Além de fazer um tour pelos países que visitavam, os parlamentares de cada grupo participaram, em média, de 40 horas de conferências sobre os mais diversos aspectos de sobre inovação, patentes e pesquisa clínica.

Vários parlamentares integram o que é chamado de “bancada do medicamento”, que nas últimas legislaturas era liderada pelo ex-senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), atual ministro das Relações Exteriores. Esse grupo foi o responsável pela aprovação, em 1996, da Lei 9.279, a Lei de Patentes, apontada como um forte instrumento dos laboratórios estrangeiros.

“É a Lei de Patentes que evita a entrada de medicamentos genéricos no mercado, mantém os monopólios dos grandes laboratórios e, consequentemente, faz com que os preços dos remédios fi quem mais caros”, explicou Jorge Bermudez, vice-presidente da Fundação Oswaldo Cruz.

Essa lei permite que empresas tenham o controle sobre fórmulas de medicamentos que, muitas vezes, são partes da farmacopeia brasileira, que é riquíssima e de domínio popular. Aliás, na época de sua discussão e posterior aprovação, circulou pelo Congresso Nacional minuta de proposta original escrita em inglês.

medicamentosSe de um lado há opositores dessa legislação, que buscam reformar a Lei de Patentes pra corrigir essas falhas, de outro há forte pressão dos representantes de laboratórios estrangeiros no sentido de ampliar sua abrangência.

Na Câmara, tramita o Projeto de Lei (PL) 4961/05, do deputado Mendes Thame (PSDB-SP), que prevê a alteração da Lei de Propriedade Industrial (9.279/96) para introduzir na legislação a concessão de patentes de seres vivos. A justificativa é de que o Brasil pode ficar atrasado em relação a outros países. Mas isso não é verdade, pois a Suprema Corte dos EUA já se posicionou contrária ao patenteamento de recursos da ou de origem genética.

SAÚDE PÚBLICA

Embora bastante criticado, o Sistema Único de Saúde (SUS) é considerado um dos serviços públicos mais bem estruturados do mundo, comparável ao britânico, que foi sua inspiração. Sua criação foi precedida de extensos estudos e debates, até que virasse parte da atual Constituição Federal, aprovada em 1988.

E sua implantação vem ocorrendo desde então, com altos e baixos, de acordo com as intempéries. No momento, ele vem sendo alvo de pesados cortes promovidos pelo chamado ajuste fiscal do atual governo federal. E seu futuro é incerto, pelo que se deduz das propostas lançadas durante a campanha presidencial.

De toda forma, sua eficiência depende bastante dos governos estaduais e municipais, gestores das redes de atendimento. Filas e queixas quanto aos serviços dos centros de atendimento não refletem a realidade. Em outro lugar, naquele mesmo momento, haverá uma equipe do SUS fazendo alguma cirurgia de alta complexidade, inclusive transplantes de órgãos.

De todo jeito, no que se refere a medicamentos, a ação do SUS é nacional e tem um histórico de modo bastante satisfatório, segundo pesquisa entre médicos e pacientes. Seguindo manual da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), também subordinada ao Ministério da Saúde, e utilizando a Relação Nacional de Medicamentos (Rename), o SUS deve manter remédios sempre disponíveis.

Essa Relação é constantemente revisada e atualizada pela Comissão Técnica e Multidisciplinar de Atualização da Rename (Comare), instituída em 2005. Ela é composta por órgãos do governo, incluindo instâncias gestoras do SUS, universidades e entidades de representação de profissionais da saúde. Uma das funções desse órgão é assegurar transparência na compra de medicamentos.

A partir de 2013, por lei federal, passou a ser obrigatório rastrear medicamentos desde a sua produção até a venda, combatendo a entrada e circulação de medicamentos falsificados e ilegais no mercado brasileiro. A rastreabilidade é realizada por um código de barras individual com as informações do produto e, por meio deste código, o medicamento é monitorado em todas as etapas que passar até chegar ao consumidor final.

PACIENTES ORGANIZADOS

É muito comum pacientes se agruparem em associações, pra debater seus problemas comuns, trocar conhecimentos e lutar por pautas coletivas. Contudo, essas entidades são constantemente assediadas pelos laboratórios, que se achegam de jeito matreiro, oferecendo apoio. Fornecem amostras grátis de remédios, estudos científicos sobre a doença e promovem eventos.

No Brasil, essas agremiações acabam tendo muita importância a portadores de doenças crônicas, mas elas são facilmente manipuladas pelos laboratórios. Delas é que partem, por exemplo, campanhas pra que o SUS incorpore determinado tipo de medicamento. Muitas vezes, porém, é exigida uma marca específica, não se aceitando sucedâneos que o serviço público disponha ou possa oferecer.

Vale lembrar que os medicamentos são classificados como “de referência”, “similar” e “genérico”. O primeiro é aquele que foi descoberto pela ciência, como princípio ativo; o segundo é aquele fabricado posteriormente, igual em tudo, menos na marca que o outro ostente; e o terceiro é o que tem o mesmo princípio ativo e a mesma finalidade, mas é fabricado e apresentado de forma mais simples, o que permite um preço final mais barato.

No entanto, perante a Anvisa todos são iguais, pois só devem receber o registro após os testes comprobatórios que o órgão deve providenciar, segundo previsto na legislação brasileira. Desse modo, na hora da compra, o SUS deve escolher prioritariamente aquele cujo preço seja mais favorável.

Por isso, também, a importância da cassação, pela Justiça Federal, da patente do Sofosbuvir, de que falamos no início desta matéria. Em verdade, o princípio ativo desse medicamento não é uma propriedade do laboratório Gilead, que pretendia dar ele a classificação de “de referência”, obrigando o SUS a dar preferência a ele, não a “similares” ou “genéricos” também disponíveis no mercado.

Casos diferentes, no entanto, são os de associações de diabéticos do interior do Maranhão, por exemplo. Sua causa principal era acabar com longas e penosas viagens à capital, São Luiz, pra sessões de hemodiálise. Após anos de luta, grupos de pacientes conseguiram que o governo do Estado construísse centros de hemodiálise em seis diferentes cidades do interior.

Em uma delas, Pinheiro, as obras atrasaram e, em julho passado, os diabéticos fi zeram uma manifestação que paralisou o centro da cidade de 90 mil habitantes. Não teve dúvidas, as obras foram retomadas em ritmo acelerado.

Já em Ribeirão Preto, São Paulo, ocorriam no mesmo período atividades em protesto contra falhas no atendimento dos diabéticos na rede pública de saúde local. Era comum a falta de medicamentos, insulina em especial, e outros insumos, como cateteres e seringas. Mas, também ali, o atendimento foi rapidamente regularizado.

Há casos, entretanto, em que se formam movimentos de pacientes afetados negativamente por algum medicamento. Em alguns casos, pedem indenização financeira por danos. Em outros, salvam vidas dali pra diante. E muitas vezes ganham volume mundial.

Um caso trágico, que se tornou bastante conhecido é o do Rezulin, uma droga usada no tratamento do diabetes tipo 2. Como havia sido autorizada pela Foods and Drugs Administration (FDA), nos EUA, em 1997, ela foi chancelada também por outras agências reguladoras ao redor do mundo, inclusive a Anvisa, no Brasil.

Seus efeitos colaterais eram, porém, devastadores, pois a droga atacava o fígado. Após três anos de largo uso, só nos EUA foram registrados 90 casos de cirrose hepática, 10 transplantes de fígado e 63 mortes por causa dela. Assim, a FDA proibiu sua fabricação. Logo em seguida, a Anvisa também a retirou do mercado no Brasil, mas sem guardar estatísticas de seus possíveis efeitos por aqui.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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