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O mito do Amaru, divindade ancestral peruana

O mito do Amaru, divindade ancestral peruana relacionada com as profundezas, a água e a fertilidade

Por Raial Orotu Puri

Desde a primeira vez que a conheci, em 2014, sou completamente apaixonada por essa história… Não tem como compartilhar só a lembrança: ela merece compartilhamento novinho em folha!

O AMARU

Versão de Danilo Sánchez Lihón

Houve um tempo em que uma grande seca se abateu sobre a terra. E como parecia que tudo estava condenado a desaparecer, não sobrou nada, nem mesmo vestígio do rebelde capim que cresce nos planaltos andinos. Pereceram plantas e ervas de colinas e baixadas, e até os líquens e os musgos que nascem nas pedras se extinguiram sob o sol implacável.

Os campos rachavam, sedentos e, e no leito de antigos rios e açudes abriam-se fendas e estendiam-se planícies poeirentas. As pedras ficavam em brasa, sem árvores que lhes dessem sombra, e sobre a terra parda, de cascalhos pequenos e cortantes, o vento assobiava.

Mesmo o Cantu, a única flor que resiste e floresce na aridez e na estiagem, sentiu murcharem suas pétalas, suas folhas e, depois, se consumirem as raízes. Dele só restava um ramo com um botão intacto, que pouco a pouco brotou entre os talos retorcidos.

Quando a flor se abriu, olhou ao longe a montanha sagrada e, recusando-se a morrer, transformou suas pétalas em asas, sua corola em peito e os espinhos de seu talo em plumas; do estame amarelo-azul-vermelho surgiu a fina cabeça de um beija-flor, que, sacudindo-se, se soltou com dificuldade da planta, que ficou para trás, calcinada.

Por um breve instante ele revoou no ar quente e, transformando sua fragilidade em força, rumou para o alto, em direção à cordilheira.

Chegou até a margem da lagoa de Wacracocha, incrustada na rocha mais dura, e contornou-a sem se atrever a beber, ou mesmo a sobrevoar suas águas, que se estendiam quietas numa concha prateada.

Depois de contemplar suas águas insondáveis, voou para o cume do Waitapalhana, o monte mais alto de uma cadeia de picos encrespados e profundos precipícios, onde jamais penetraram o falcão, o condor ou a águia.

Já exausto, o beija-flor pousou no cume congelado pelo vento. Com o coração sangrando e com o pouco de ar que lhe restava, suplicou ao monte:

  • Pai Waitapalhana, nós te adoramos, e te suplicamos que nos escutes, porque nas tuas entranhas fomos gerados. Tem piedade da terra! Salva-nos da seca!

Dito isso, despencou, e um feixe de plumas esparramou-se pela rocha intacta, manchando-a de vermelho.

O Waitapalhana experimentou uma profunda tristeza, que se uniu à aflição que sentia por ver a terra estéril e devastada.

Reconheceu no pássaro o perfume da amada flor de cantu, que sempre floresce enfeitando seu manto sagrado e embelezando os dias de duração de sua festa.

Tal foi sua dor e tão profundas as batidas do seu coração, que duas lágrimas de duríssima chora escorreram suas faces e, caindo das alturas por profundos precipícios, chegaram até as águas do Wacracocha, que se abriu, fazendo retumbar o universo.

O estrondo, a tristeza e as lágrimas do Waitapalhana chegaram até o fundo das águas e despertaram o poderoso Amaru, que dorme enroscado nas profundezas da cordilheira e cuja cabeça descansa no leito da lagoa encantada.

Lentamente, ele se espreguiçou. A terra sacudiu com violência. As montanhas caíram envoltas em pó. Os rochedos rolaram, fazendo um barulho ensurdecedor.

O Amaru deslizou suavemente a cabeça, enquanto se esticava. A princípio, só se percebeu um leve tremor na superfície da lagoa, depois, uma oscilação nas margens translúcidas e logo um marulho que estremeceu o granito, levantando-se, em seguida, uma turbulência de espumas e de águas agitadas.

No centro da lagoa, apareceu o divino Amaru, serpente alada, com a cabeça de lhama e rabo de peixe, de olhos cristalinos de um fulgor transparente, de focinho avermelhado e pálpebras perfeitas. Ele mergulhou e levantou a cabeça, coberta pela mesma lã branca e ruiva que lhe cobre o pescoço, a testa e as orelhas, e passeou seu olhar inocente num estranho encontro entre o dia de fora e a noite de dentro.

Com movimentos sinuosos, suspendeu-se no ar, ondulando estrondosamente seu corpo inviolável. O sol, ao vê-lo, irritou-se. Seus raios, confusos, reverberaram no espaço infinito. O amarelo de sua cara implacável transformou-se em roxo-vermelho-negro. Sua cabeça de fogo e seus olhos flamejantes explodiram de ira. E dez mil guerreiros de cor vermelha, queixos cobertos por barbas prateadas, munidos de elmos, couraças e esporas e cavalgando em briosos corcéis, lançaram-se a combatê-lo.

O Amaru, ao vê-los se aproximarem, saiu ao seu encontro, levantando-se imponente. Movendo a cauda, atacou com força demolidora, desorganizando os feixes de fogo.

Ao redor, ouviram-se uma descarga de raios, um estalido de escudos e lanças que se quebravam. Viram-se fulgores e ouviram-se estrondos. O Amaru ondulou seu corpo ágil ao vento. A luta foi feroz e incerta!

Do focinho agitado do Amaru começou a se desprender uma névoa, que se enroscou nos cumes das montanhas e se espalhou entre os penhascos. Do movimento de suas asas, precipitaram-se as chuvas, que foram caindo, gota a gota e, depois em torrentes. De sua cauda de peixe desprendeu-se o granizo em bolas redondas e transparentes, que, ao cair, escorregavam pelas encostas.

O corpo ardente do Amaru começou a soltar fogos dourados e brilho de prata, de cujos reflexos nasceu o arco-íris.
Assim voltou a correr a água, quando a vida parecia extinta. Caiu a chuva e iluminaram-se os olhos d´água. Renasceram os córregos e reverdeceram as ervas. Encheram-se os leitos dos rios e suavizaram-se as campinas.

 

 Raial Orotu Puri – Indígena do povo Puri. Graduada em Direito. Doutoranda em Antropologia. Chefe de Divisão no IPHAN/Acre. Assessora jurídica da Federação Indígena do Povo Huni Kui do Acre (FEPHAC). 

Notas da Autora:

O Amaru é um mito ancestral peruano, com diferentes versões, em algumas das quais o ser divino recebe o nome de Panki. Trata-se de uma divindade relacionada com as profundezas, a água e a fertilidade. A presente versão é de Danilo Sánchez Lihón.

Cantu, ou gantu, ou cantuta é uma flor de cor vermelha originária do altiplano andino, considerada sagrada pelos Incas.

Nossos antepassados dizem que nas escamas resplandecentes do Amaru estão inscritos todos os signos e assuntos; previstas todas as paisagens, todas as flores, o minúsculo orvalho e as cachoeiras impetuosas; todas as letras, todos os números e todas as chaves; as cestas cheias ou vazias, assim como os ataúdes lentos. Nelas, estão traçados todos os caminhos, bem como erigidas e extintas todas as cidades; residem todos os pressentimentos e todos os desalentos. Ali, nascem realidades e sonhos.

Ilustração da Capa Raízes da América Latina


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

 

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