Caminhoneiros: um movimento pra quê?

A semana que paralisou o Brasil

Politicamente, até agora, me parece que isso pode significar duas coisas:

peladireita

1.

A civil entre o establishment liberal-financista composto pela Globo e boa parte da mídia, mercado financeiro e centro-direita política (tucanos, sobretudo) contra a ultradireita que estava prometida para mais próximo das se precipitou.

Pela adesão popular e a fragilidade da esquerda, a ultradireita visualiza a greve como oportunidade de produzir efeitos de longo alcance que quebrem a institucionalidade a partir do caos social. É claro que todo é contrarrevolucionário: seu objetivo é se apropriar da revolta para neutralizá-la, mas até agora sabemos que a estratégia de confusão ideológica produzida via guerrilha virtual tem sido relativamente eficaz.

Ao mesmo tempo, o establishment liberal vem reagindo mediante a checagem de fatos, que dificulta a propagação de  e fatos alternativos utilizada pela ultradireita para propagar suas ideias lunáticas, e atacando com o argumento liberal-econômico esse segmento, refazendo a imagem de que estaria abastecido por um puro populismo.

O primeiro ponto é importante porque mina a infraestrutura de viralização conquistada pela ultradireita, filtrando as informações falsas e elevando o nível do na esfera pública. Não viola diretamente nada de democrático, uma vez que apenas prestigia a correspondência aos fatos objetivos, e com isso inviabiliza a propagação de boatos e outras ferramentas de pânico moral que consolidaram esse novo campo político. Se isso vingar, a extrema direita vai ter que redefinir toda sua estratégia comunicacional que, até agora, foi vitoriosa.

O segundo ponto é outro elemento interessante, já que, como disse no post anterior, Bolsonaro depende de uma adoção “pinochetista” do mercado para se viabilizar eleitoralmente — e vem tentando isso seguidamente mesmo contrariando seu perfil de militar nacionalista. O nó da greve pode deixar a contradição exposta e eliminar a ambivalência, dividindo e fragmentando a direita em dois polos antagônicos (o liberal e o fascista) que estiveram reunidos para derrubar o PT. Enquanto a extrema direita faz o discurso populista (“olhem o preço da sua gasolina! é roubalheira dos políticos!), a centro-direita sustenta o argumento liberal do “você paga a conta” (pela liberalização dos preços). Com isso, o establishment vê a possibilidade de minar, a médio prazo, o prestígio popular do populismo reacionário.

Nisso, o flerte do com o militarismo não apenas revela propriedades imanentes dessa política (1), como figura agora sobreposto como estratégia conjuntural. Desde a intervenção militar no Rio de Janeiro, fica claro que Temer busca legitimação desde cima, aproveitando a onda reacionária no Brasil para se cacifar via alto comando. Assim, enquanto o envolve as baixas patentes, conquistando os militares pelo ethos fascista, Temer negocia com as cúpulas, trazendo os militares para o interior do seu governo e usando a hierarquia a seu favor. Isso deve, por consequência, levar a uma rachadura que o Estadão — único órgão grande de imprensa hoje rigorosamente governista — já deu o tom: Bolsonaro e seus asseclas serão atacados por insubordinação, utilizando a hierarquia (um dos principais valores do militarismo) como trunfo contra o populismo fascista. Isso vale também pelo histórico militar de Bolsonaro. Com isso, firma-se desde cima uma aliança entre alto comando militar, finanças e patrimonialistas.

Claro que a Globo, por exemplo, sempre terá que equilibrar essa equação com a Lava Jato e a burocracia anticorrupção, que por sua vez é um discurso mais eficaz que a própria medida liberal do “você paga a conta”. Por isso a importância estratégica das eleições: é preciso retirar a oligarquia patrimonialista logo do poder e substituir por um governo mais higienizado (Alckmin e, no caso de dar tudo errado, Marina), a fim de corrigir essas incongruências e neutralizar simultaneamente a ultradireita (com a aliança militar e o bloqueio aos trolls) e a esquerda (com a pauta anticorrupção), fazendo valer aquilo que no fundo é o que mais importa: o programa econômico. Claro, enquanto Alckmin não decola tudo é extremamente preocupante para esse segmento. Por isso mesmo a greve pode ter sido uma oportunidade: eliminar logo Bolsonaro e o militarismo crescente da disputa para finalmente focar em quem pode ganhar as eleições como resto depois da guerra: Ciro Gomes.

Veremos se a estratégia do establishment vai funcionar, porque se der tudo errado o risco é ainda pior: o exército negar-se a obedecer à hierarquia e… bem, prefiro nem falar disso para não dar a ideia.

pelaesquerda

2.

O outro ponto é o quanto o momento é delicado para a esquerda. Diante de uma ampla mobilização com apoio popular, a resposta foi cética e desconfiada. Não apenas pela razão clássica, arquirrepetida durante 2013, de recusar aquilo que não pode controlar. Mas pela consciência de que ela própria não pode se apresentar diante de um movimento de alto intensidade popular porque não tem mais organização para isso.

As revoluções são períodos de desconstrução em que as formas configuradas perdem seus contornos e as chances aparecem. Quem tem o kairós se aproveita do momento e guia o processo para uma direção ou outra. Geralmente as organizações que controlam o processo posterior não eram do tamanho das massas que expressam a insatisfação rebelde nas ruas. Mas elas conseguem produzir um enganche nele e com isso dar-lhe forma, produzindo uma sequência institucional capaz de prolongar no tempo a explosão.

Hoje, nós não temos nenhuma organização nesse sentido.

Não creio que seja possível imaginar que um partido possa ocupar novamente esse lugar — isso já ficou bem patente em 2013. Mas também ficou patente que, quando uma fagulha chamada MPL deflagrou um processo incontrolável (literalmente, a policial que o diga) de indignação popular capaz de contagiar inclusive indivíduos em geral indiferentes à política, havia uma confluência de múltiplos movimentos, coletivos e organizações capazes de produzir uma estética e uma mobilização política à altura do momento. Isso tudo foi gestado pelas forças indígenas nas mobilizações ao longo do governo Dilma (como os Guarani Kaiowas), pela luta contra a urbanização gentrificadora e a arquitetura controlada pelas grandes construtoras, pela Marcha das Vadias, os movimentos e os movimentos contra a Lei de Anistia e em prol de uma Comissão da Verdade forte e efetiva. Esse ecossistema encontrou no MPL e na repressão policial uma ocasião para sair às ruas e com isso tornar aquela fagulha um verdadeiro incêndio que tomou o país.

Hoje sabemos que a fragmentação da esquerda é tão grande que não temos mais nem isso. E nem o que pode ser também uma autocrítica de 2013: a dificuldade de ligar o espontaneísmo e a estética subversiva avassaladora que conquistou os corações dos brasileiros com uma organização de longo prazo capaz de produzir transformações efetivas para além das explosões momentâneas, do “intenso agora”. Sem dúvida, o “intenso agora” é necessário para destituir o poder, como aliás estamos testemunhando desde então com o derretimento generalizado das instituições e a completa deslegitimação do status quo. Mas a “fase 2″ — como aliás a série Mr. Robot explora muito inteligentemente — é um tema que ainda falta começar a debater (começamos por aqui, mas ainda é pouca coisa) (2).

Com isso, prevalece entre nós o medo típico dos conservadores e a ideia de que a ameaça de uma subversão geral caminha para o lado do fascismo. Mas, se isso realmente é verdade — e é — as razões de produção estão muito menos ligadas à alguma ordem natural das coisas que da nossa desorganização generalizada, nossa incapacidade de produzir discursos capazes de contagiar, nossa incapacidade de nos conectarmos a uma rebeldia comum, a algo que possa produzir uma aliança improvável, heterogênea, que vá além do impulso identitário (de esquerda) que nos trancafia em um condomínio fechado onde só quem conhece as palavras-senha pode transitar.

Sem desenvolver essa nova gramática e essa nova composição de corpos e desejos, todo debate em torno de “quem é mais radical” mostra exatamente sua faceta inócua e moralista.( publicado no Facebook, sob o título A Greve dos Caminhoneiros: entre a guerra civil na direita e a desorganização da esquerda)

Fonte: Correio do Brasil

Publicado orgininalmente em 25/06/2018

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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