Mulheres Guarani-Kaiowá repudiam violências do Estado

Um grito das mulheres Kaiowá e Guarani contra os colonialismos de dominação da terra, dos saberes e do corpo

Em carta após assembleia, que aconteceu de 10 e 14 de julho na Reserva de Amambai (MS), mulheres repudiam as violências do Estado nas mais diversas esferas de poder

mulheres Kaiowá e Guarani
Foto: Ruy Sposati

POR GUILHERME CAVALLI

O vozear de protesto é uníssono. Denuncia as políticas governamentais anti-indígenas que por diversas formas de dominação mantêm administrações coloniais. São práticas que desrespeitam “o modo de ser Guarani e Kaiowá” em políticas sobre a terra, educação e dominação dos corpos dos povos. O grito é resultado do VI Kuñangue Aty Guasu, encontro das mulheres Kaiowá e Guarani. Em carta após assembleia, que aconteceu de 10 e 14 de julho na Reserva Indígena de Amambai (MS), mulheres repudiam as violências do Estado nas mais diversas esferas de poder.

“Vivemos a insegurança pública no nosso cotidiano, tendo que lidar com o racismo, o preconceito, a violação de nossos corpos e de nossa cultura, com as violências dos não indígenas quando tentamos utilizar os dispositivos do estado que oficialmente deveriam nos proteger enquanto mulheres”. – Leia a carta final do encontro.

O documento encaminhado para as esferas competentes pelas políticas indígenas do Governo questiona às ações anti-indígenas do Estado brasileiro que confiscou a nação Guarani em “chiqueiros”.  “As reservas estão superpopulosas e não dispõem de condições de para a realização de nosso modo de ser”, pontua a carta. “Desde os anos 80, cansados desta realidade, iniciamos as retomadas das terras de nossos antepassados e começamos a recuperar a nossa dignidade humana, o nosso modo de ser, nossas matas, rios e nossas rezas”, reafirmam ao manter apoio as retomadas dos territórios tradicionais.

Retomadas: “Foi esta a forma que nós indígenas Kaiowa e Guarani encontramos para nos libertar das cercas do Estado e garantir o futuro de nosso povo”.

O documento denuncia também a decisão da 2° Turma da Corte do Supremo Tribunal Federal (STF) que anula o reconhecimento tradicional da Terra Indígena Guyraroká. O Ministério da Justiça (MJ) reconheceu em 2009 a tradicionalidade da TI após relatório apresentado pelo Grupo de Trabalho da Funai. Ainda assim, o posseiro da região pediu a nulidade dos atos no MJ. O Superior Tribunal Judicial (STJ) considerou inadequada a ação movida pelo fazendeiro, seguido pelo relator do processo no Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandoswski. No entanto, o ministro Gilmar Mendes contestou a decisão, acompanhado pelos ministros Celso de Mello e Carmem Lúcia.

Com três votos a um declararam que o particular tinha o direito sobre a terra. Em nenhum momento a comunidade indígena foi ouvida durante o processo. “O tekoha Guyraroka é nosso desde sempre, não é uma tese que atende os interesses dos ruralistas que vai nos tirar de nosso território. Podem até derramar o nosso sangue, mas não sairemos de nossa terra. Estamos dispostos a morrer em luta com nosso povo”, sustenta documento.

“Reafirmamos o apoio incondicional à Terra Indígena Guyraroka é a nossa terra”

Mulheres Guarani e Kaiowá
Mulheres Guarani e Kaiowá protestam em frente ao STF. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi
A quase total paralisação dos procedimentos demarcatórios de terras indígenas no estado do Mato Grosso do Sul demonstra a forte atuação de políticos locais contra os direitos tradicionais dos povos da região, reforçado pelos laços do governo de Michel Temer com o agronegócio. No MS, 74 terras indígenas encontram sem nenhuma providência no processo demarcatório.

“A judicialização dos processos de demarcação de nossos tekoha é uma afronta a nossa luta”.

A Terra Indígena Guyraroka, em Caarapó, é uma das 9 que estavam declaradas. O descaso com a política de homologação dos territórios tradicionais faz do estado o segundo com maior quantidade de casos de registrados em 2016: 18 assassinatos segundo o Relatório de Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, publicação anual do Cimi.  “Sem a demarcação das nossas terras, nós mulheres guarani e kaiowa não poderemos ter uma vida livre da violência”.

Uma década

Em 2017 um Compromisso de Ajuste de Conduta (CAC) firmado entre o Ministério Público Federal e União assumia o compromisso de identificação e demarcação do território tradicional de habitação das famílias kaiowá e guarani. Passados uma década, nada avançou no estado conhecido por domínio do latifúndio. “Exigimos que o CAC – Compromisso de Ajustamento de Conduta, firmado em 2007 seja cumprido e nossas terras demarcadas e devolvidas a nós, para que nosso povo não continue morrendo na mão do agronegócio, dos latifundiários e do estado”, escreve o documento. O MS tem 92% do seu território como propriedade privada, dos quais 83% são latifúndios.

 “Não deixaremos que a nossa terra seja vendida pelo presidente assassino deste país. A publicação dos relatórios de nossas terras tem que avançar, sem tekoha não tem vida”.

Genocídio de um povo

No Mato Grosso do Sul (MS) o integracionismo, realidade ligada à aculturação e assimilação, assumiu dissimuladamente o teor de . Vítimas do racismo sistemático que perdura cinco séculos, os enfrentam historicamente diversas violências – desde invasão dos territórios tradicionais até as políticas de “embranquecimento”.

“Nós entendemos que há várias tentativas de genocídio contra o nosso povo. Seja a nossa remoção forçada de nossas terras ancestrais e o confinamento nas reservas, seja a tentativa de tirar nossa língua e agora, a insistência do Estado em dizer que não sabemos cuidar dos nossos filhos e a insistência em tirar eles de nós”.

O documento divulgado após a VI Kuñangue Aty Guasu, encontro das mulheres Kaiowá e Guarani, retoma as incensáveis denúncias feitas pela Aty Guasu, grande assembleia Guarani e Kaiowá: crianças indígenas estão sendo retiradas das aldeias quase que semanalmente pelo Conselho Tutelar e levadas para abrigos da região Cone Sul do MS. A realidade foi denunciada pela organização indígena ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e ao comissário da Organização dos Estados Americanos (OEA), em reunião realizada em novembro na capital federal.

 “Não aceitamos a retirada de nossas crianças, a doação delas para não indígenas, não aceitamos o estado intervindo nas nossas formas de vida e cuidado com os nossos”.

A forma como são feitas as intervenções pelos “órgãos de proteção” desrespeita o modo de vida física e cultural do povo Guarani e Kaiowá e, segundo Aty Guasu, são fundamentadas em “conceitos e interpretações racistas, preconceituosas, primárias, ignorantes à diversidade dos povos indígenas”. Tais ações afrontam os direitos específicos, costumes e organização social do povo.

“O estado brasileiro retira a criança da sua família indígena e leva ela para o abrigo. Isso fere a nossa autonomia e culturalidade, pois quando a criança indígena é levada para a cidade é um lugar diferente, costumes diferentes, hábitos diferentes”.

As mulheres Guarani e Kaiowá solicitam que sejam construídas junto as comunidades alternativas para lidar com a situação das crianças “para que elas não sejam levadas para longe de nós, para viver e comer com o branco”. “É mais fácil o Estado negar nossos direitos do que se dispor a nos escutar, a dialogar conosco e a respeitar nosso modo de ser”.

Os casos em Dourados

Em Dourados vivem aproximadamente 215 mil pessoas, das quais 21 mil são indígenas. Contudo, 60% das crianças acolhidas nas instituições e abrigos pertencem a algum povo da região.  Dos 79 acolhidos em Dourados, 50 são indígenas. O levantamento do órgão do governo aponta que 88% das instituições de acolhimento são particulares – não governamentais.  Elas acolhem um total de 65 crianças e jovens indígenas, 50 só em Dourados (MS). Caarapó, Ivinhema, Maracajú e Rio Brilhante abrigam os outros 15 indígenas.

Dos 65 indígenas, 20 são crianças de até cinco anos de idade, na primeira infância; oito foram retirados de suas mães com menos de 1 ano; três retirados ao nascer, com poucos dias de vida. Em porcentual, 63% são de 0 a 11 anos e 37% de 12 a 17. Sexo: 69% meninas e 31% meninos.

 

mulheres Kaiowá e Guarani
Comunidade indígena Guarani Ñandeva de Yvy Katu, municípios de Japorã e Iguatemi (MS), fronteira com o Paraguai. Foto: Ruy Sposati/Cimi

Violência ao corpo

O desejo de incorporar os indígenas à sociedade, na construção de uma “identidade nacional”, segue vigente nos racismos institucionais sofridos pelos povos. As políticas vigorantes em uma conjuntura de dos povos indígenas assumem outros mecanismos de poder que garantem a continuidade da expropriação cultural, na velha e ebranquecedora prática de desconsiderar suas especificidades cosmológicas.

“Nós somos os maiores interessados em nossas vidas, e devemos ser ouvidos para quaisquer ações que alteram o nosso cotidiano”, deplora o ao denunciar as práticas de violação ao direito à .

In·cor·po·rar: dar ou adquirir corpo; assimilar (algo) ou ser assimilado; introduzir (-se); anexar (-se),
integrar (-se), reunir (-se).

Na política específica à saúde da mulher, o documento fruto de debates descreve uma série de desrespeitos as especificidades culturais. “Desde que nossas parteiras foram proibidas de atuar do nosso jeito tradicional, tendo que fazer o seu trabalhoescondidas e que fomos obrigadas a parir nos hospitais e fazer o pré natal do jeito da medicina não indígena, as violações ao nosso conhecimento tradicional, nossos remédios, nossas mulheres ñandesy, tem culminado com a morte de nossas parentes durante o parto nos hospitais”.

mulheres Kaiowá e Guarani
Comunidade do tekoha Tey’i Kue. Foto: Ana Mendes/Cimi

Segundo mulheres Kaiowá e Guarani, Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e hospitais desrespeitam “o modo de ser indígena”. “Não podemos ser atendidas por pessoas que não conhecem o nosso modo de ser e não conseguem comunicar conosco com dignidade”, relata o documento ao pedir tradutores Guarani nos atendimentos.

Mesmo que a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), elaborada a partir da Lei Orgânica da Saúde aos direitos diferenciados assegurados aos povos pelo artigo 231 da Constituição Federal, garanta a atenção integral e diferenciada, a carta expõe a não participação da gestão de saúde do povo. “É preciso que os nossos profissionais de saúde guarani e kaiowa sejam valorizados e contratados para trabalhar com e pelo o nosso povo”.

Jenipapo e Giz

A educação diferenciada, que integre a dinâmica dos povos como processo pedagógico, foi um dos pontos ressaltados no documento da assembleia de mulheres Kaiowá e Guarani. “[…] reiteramos que o nosso magistério indígena o Ara verá deve ser respeitado e seguir o que entendemos como melhor para nós”, sustenta o documento.

Quando a educação escolar é destinada aos indígenas, é necessário considerar que os modos de organização curricular e as práticas pedagógicas precisam ser construídos de diferentes maneiras.

“Este curso não pode se afastar do nosso movimento, pois ele foi criado por nós. É preciso que o curso Teko Arandu respeite a vida e as escolhas dos alunas e alunos, e que os professores tenham um perfil adequado para a compreensão da realidade guarani e kaiowa, e que sejam falantes da língua”. O Teko Arandu da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) é um curso específico destinado à formação em nível superior de professores de escolas indígenas. A iniciativa nasceu do Movimento de Professores Guarani Kaiowá e dos professores indígenas egressos da primeira turma do curso normal em Nível Médio, o Ára Vera.

Como encaminhamento, criou-se uma comissão de consulta com os membros do Aty Guasu e Kuñangue Aty Guasu que a partir de agora vai acompanhar todos os encaminhamentos realizados no Ara Vera e também no Teko Arandu. A comissão buscará responder às necessidades e aos anseios do povo.

ANOTE AÍ

Fonte: CIMI

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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