Na Posse do Jabuti, Cantando em Tom Maior
Por José Bessa Freire
Vai ter que amar a liberdade/
Só vai cantar em tom maior.
Vai ter a felicidade/
De ver um Brasil melhor.
Martinho de Vila – Tom Maior – 1968.
Rei morto, rei posto. Chega, enfim, o dia tão esperado em que o Jabuti toma posse como “Cuidador da Floresta”, com a realização de um festival de cantoria dos pássaros que foram silenciados no reinado da Onça, agora destronada. Apoiada pelo Grupo Sentinelas de Igarapé, a Onça se fingiu de morta para envenenar a festa. Essa é a história que vai aqui contada. Foi assim.
Inconformada com sua derrota, a Onça Biroliro acampou seus seguidores à beira do Igarapé da Caserna, que ficou infestado de jacarés e piranhas com os dentes engatilhados, poraquês de dois metros que torturavam com choque elétrico e o pequeno candiru que – dizem – invade a uretra humana.
A Onça sanguinária bolou o plano do silêncio para dar o golpe. Ordenou à Raposa Biro-Lira:
– Avise à floresta inteira que eu fui esfaqueada e morri. Convide todos os bichos para o funeral. Vou me fingir de morta aqui na beira do igarapé, talkey?
Quando o Jabuti-Piranga da Selva chegar perto, dou um bote e o estraçalho. Enquanto isso, os amigos da Onça acampados no igarapé, depois de tocarem o terror, me entronizam outra vez como “Rei da Floresta”.
Dito e feito. Se colar, colou.
O VELÓRIO
– A Onça morreu! A Onça morreu! Estão todos convidados para as exéquias. No velório tem bolacha, cachaça, cafezinho e muita regalia secreta – gritava a Raposa Biro-Lira, com um megafone na mão, arreganhando os dentes.
Os animais, que se aproximavam do falso cadáver, lubrificavam os olhos com lágrimas de crocodilo. Destoando, o Pato vinha cantando alegremente “kuen kuen”, mas Paca, Tatu, Cotia não. Atrás deles, Cavalo, Burro e Jumento, que não era o grande malandro da praça. Macaco, Gato Maracajá. Anta, Jararaca, Sucuriju e outras cobras desfilavam no meio do gado que mugia. Junto a eles Coelho, Porco, Bode e a dócil Ovelha.
Na fila dos pêsames, Lobo-Guará, Sapo, Marreco de Maringá, Caititu, Tamanduá, no cabelo e dinheiro na caixinha 2. Vieram bichos de outras florestas: Leão, Urso, Elefante, Girafa, Hipopótamo, Rinoceronte, Canguru e Zebra.
A Onça, que nem seu Souza. Com a respiração presa, as canelas esticadas e o olho de peixe de geladeira, esperava imóvel a chegada do Jabuti, que na verdade era um Cágado de sorte. Astuto, cheio de artimanhas, o sofrimento lhe deu sabedoria. Ele olhou de longe.
– Pode se aproximar, compadre – disse a Raposa.
Desconfiado, o Jabuti preferiu manter a distância:
– Ela está morta?
– Mortinha da silva – mentiu a Raposa Biro-Lira.
– Ela já peidou e arrotou? – perguntou o Jabuti em alta voz.
– E precisa? – retrucou a Raposa.
– Claro. Meu avô morreu na semana passada, e a Coruja só assinou o atestado de óbito depois que ele deu três peidos e três arrotos.
A Onça Biroliro ouviu tudo e, com a inteligência, a delicadeza e o recato que a caracterizam, trovejou e eructou três vezes com grande estrondo.
– Morto não arrota, nem bufa – sentenciou o Jabuti, que se picou. Na verdade, “deu às de vila-diogo”, conhecedor que era da vida misteriosa das expressões usadas na beira do rio Tejo. Saiu dali para subir a rampa. Se o golpe colasse, colava. Não colou. A Onça, que se gabava de ser imbrochável, brochou.
A FESTANÇA
Vai daí que, desmontado o golpe, a Onça mal-amada fugiu com sua familícia para “Me Ame”, na terra florida, onde foi lavar seu sujo tcherembó no Blue Lagoon, com despesas de viagem e hospedagem pagas pela bicharada. Decepcionada por não haver ninguém para recebê-la no cercadinho, lamentou:
– “As aves que gorjeiam aqui em ‘Me Ame’, não gorjeiam como lá na Floresta”. Efetivamente, “a bandeira de ‘Me Ame’ nunca será verde-amarela”, constataram os amigos da onça, abandonados, que não puderam segui-la e ficaram a ver navios e emas no lago Paranoá.
O Jabuti, já com a faixa de “Cuidador da Floresta”, organizou uma festança de arromba no chamado Festival do Futuro. Foram montados dois palcos à beira do lago, cada um com o nome de passarinhas sem asa: ‘Mingal’ e ‘Trinado do Fim do Mundo’, que costumavam “cantar como um passarinho / de manhã cedinho / lá no galho do arvoredo / na beira do rio”.
Posto que uma andorinha sozinha não faz verão, o Jabuti a todo mundo deu psiu psiu, psiu e convidou mais de 60 pássaros para cantarem a alegria. O Sabiá que andava pelo mundo e que tanto já voou, atendeu ao psiu psiu psiu e veio aliviar a nossa dor. Lá na gaiola, fez um buraquinho, voou, voou, voou, fugiu do terreiro e foi cantar no abacateiro, assim como o Tico-tico no fubá.
De repente, a mata inteira ficou muda para ouvir o canto de ébano do Uirapuru, seresteiro cantador do meu sertão, que dialogava com o sagrado. Sua canção subiu ao céu em sentida melodia, em forma de oração. Ouviu-se o canto melodioso da negra Graúna, a voz flauteada do Bicudo, o sotaque nordestino do Curió, a vocalização do Azulão, o trinado do Canário-do-mato e o gorjeio baixinho do Cricrió e do Corrupião de plumagem laranja.
PINGANDO MEL
“Amanhã vai ser outro dia”, “Futuro Ancestral” e “Outra vez Cantar” são três dos dez shows da cerimônia oficial na Esplanada do Bosque. Muitas Jabutizinhas, Tartaruguinhas, Tracajazinhos e Cagadozinhos se divertirão no Espaço Curumim, organizado para celebrarem, elas também, a esperança e a alegria, ouvindo o Martim Pescador cantar para as quelônias grávidas:
– Está em você / O que o amor gerou / Ele vai nascer / e há de ser sem dor / Ah! Eu hei de ver / Você ninar e ele dormir / fazê-lo andar / Falar, cantar sorrir. / E então quando ele crescer / Vai ser um quelônio de bem / Vou ensiná-lo a viver / Onde ninguém é de ninguém / Vai ter que amar a liberdade / Só vai cantar em Tom Maior / Vai ter a felicidade de / ver uma Floresta melhor.
Depois que o Jabuti subir a rampa pela terceira vez, pratos típicos da culinária da Floresta, sem agrotóxicos, poderão ser saboreados na feira gastronômica montada para o evento.
A boca do Bem-te-vi, que “pinga mel”, anunciará um novo tempo, do amor e não do ódio, do livro e não da arma, da vacina e não da cloroquina, de Deus ao lado de todos e não “above all”. Agora, empossado o Jabuti, quem quiser falar com Deus, não precisará mais subir em goiabeira. Basta “ficar a sós, apagar a luz, calar a voz, encontrar a paz, folgar os nós dos sapatos, da gravata, dos desejos, dos receios” como cantou Giló.
Foi assim que a floresta se salvou da destruição total. Não vai ser fácil pro Jabuti reconstruir tudo o que foi destruído na Floresta e fazer com que nossas várzeas fiquem com mais flores, nossos bosques com mais vida e nossa vida com mais amores. Mas só pelo fato de nos ter livrado da Onça sanguinária, já lhe somos eternamente gratos.
Acabou, porra!
P.S. Recriação a partir da literatura oral indígena em Nheengatu recolhida por Couto de Magalhães no Pará em 1875. O referido é verdade e dou fé, eu, o La Fontaine de igarapé, “passarim sem asa, eu sou tudo e nada, sou um sonhador” como quer Paulinho Pedra Azul em sua Cantiga de Tropeiro.
José Bessa Freire – Professor. Cronista. Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri, em www.taquiprati.com.br.
Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.
Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.
Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.
Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.
Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.
Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.
Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.
Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.
Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.
Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.
Zezé Weiss
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