Não mora mais ninguém…

Não mora mais ninguém

 Com certeza, não foi na biografia de Gabriel García Márquez “Viver para Contar” onde li a história de um menino que, ao perder a mãe, teve como primeiro sentimento o de que nunca mais comeria arroz doce, porque era ela quem cozinhava o seu prato favorito

Por Ronaldo Correia de Brito

Através dessa privação, aparentemente insignificante, a criança elabora a imagem da orfandade, de um sem doçura, como acontece diante da constatação da morte, e a obra de García Márquez? Talvez, por algum deslizamento explicado pela psicanálise, ou porque o autor especializou-se no tema, falando sobre ele com humor e tragicidade.. Por que estabeleci uma relação entre o fluxo de memória desencadeado pela perda.
 
Em “Crônica de uma Morte Anunciada”, o assassinato do personagem Santiago Nassar é revelado já nas primeiras páginas. A narrativa se faz pela reminiscência dos acontecimentos que levam ao desfecho trágico, um passado tornado tão presente pela recordação, que até acreditamos que o final poderia ser alterado, e a morte anunciada acabasse por não acontecer.
 
“Cem Anos de Solidão”, o romance mais famoso do autor, também começa com uma reminiscência: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.”
 
Em “O nos Tempos do Cólera”, a personagem Fermina Daza só consegue chorar a morte do marido quando se encontra sozinha com as lembranças: “Tudo o que era do esposo lhe atiçava o pranto: os chinelos de borlas, o pijama debaixo do travesseiro, o espaço sem ele no espelho da penteadeira, o cheiro pessoal dele em sua própria pele.”
 
Chega até a abalar-se com o vago sentimento de que “as pessoas que a gente ama deviam morrer com todas as suas coisas.” Há um permanente deslizamento de significados. Pessoas e objetos se confundem e ficamos sem compreender se os mortos são lembrados por eles mesmos ou por alguma metáfora do que significavam.

Os egípcios, e até bem pouco os indianos, tinham o costume de enterrar os mortos com suas roupas, , mobiliários, porque acreditavam que eles fariam uso desses bens numa outra . Os motivos eram religiosos, e muitas vezes incluíam o sacrifício de esposas, escravos, parentes, animais. Foram encontrados túmulos com até cento e trinta corpos de pessoas, despachadas na companhia dos defuntos. De certa forma, cumpriam o desejo de Fermina Daza, o de levar para o além tudo o que pudesse recordá-los.

Como nos romances e memórias de García Márquez, o que me impressiona no relato das perdas, independente de quem seja o narrador, são os detalhes que cercam os acontecimentos funestos, deixando a morte, o fato em si, num plano secundário. Da mesma forma que o Coronel Aureliano Buendía não pensou na execução, Fermina Daza preferiu imaginar um meio de livrar-se das tralhas do marido, e o menino sentiu falta de quem cozinhasse arroz doce, todos nós fazemos o inventário dos nossos prejuízos quando morre uma pessoa amada.

O primeiro sentimento que experimentei quando me avisaram que o médico e musicólogo George Laederman havia morrido, foi o de que nunca mais escutaria música. Ao longo de muitos anos fui usuário da sua coleção de cds e dvds clássicos. Nossa amizade se confundia com as sonatas de Beethoven, as cantatas de Bach, os concertos de Vivaldi, as óperas de Wagner, os balés de Stravinsky. Desenvolvemos um dialeto próprio, um jeito cúmplice de nos mover na zorra do mundo, relevando apenas as notas musicais, as sinfonias em que nunca desafinavam violinos do mensalão, contrabaixos de paraísos fiscais, fagotes de políticos inescrupulosos.

Com George Laederman não existia tempo ruim, apenas música ruim. Ele nunca começava uma conversa perguntando “tudo bem?” ou “como tem passado?”. Perguntava se eu já tinha escutado uma nova gravação das partita de Bach, ou se ouvira Nelson Freire tocando os estudos de Chopin, ou árias seletas na voz de Kiri Te Kanawa. Se eu o consultava sobre um determinado concerto, ele me oferecia cinco versões diferentes da sua coleção que, perfilada, ocupava cem metros lineares de estantes, uma apreciável Alexandria sonora.

 

Ao tomar conhecimento da morte do amigo, pensei, como o menino do arroz doce que nunca mais ouviria música, que com ele haviam sido enterradas as belas sonoridades do mundo. Mas todas as músicas permaneceram, e nelas, a lembrança de Laederman, ou ele mesmo.

Existe um escritor peruano, pouco conhecido no Brasil, por conta do isolamento a que foi condenada nossa América do Sul, que reforça o mesmo ponto de vista de García Márquez sobre a permanência das pessoas nas casas e objetos, depois de morrerem.

Assim como em Pernambuco ignoramos o que escrevem os poetas cearenses, no Brasil desconhecemos a poesia do Peru, Chile, ou mesmo Argentina. César Vallejo, grande poeta peruano, escreveu um poema em , intitulado Não mora mais ninguém.

…quando alguém vai-se embora, alguém permanece. O lugar por onde um homem passou nunca mais será ermo. Somente está solitário, de solidão humana, o lugar por onde ainda nenhum homem passou.

Sim, as mãos que mexiam o arroz doce partiram, mas o afeto que impregnava o açúcar, misturado ao cravo e à canela, permanecem eternos.

Fonte: Blog do Ronaldo Correia de Brito
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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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