O agrobolsonarismo
O presidente cooptou uma parte relevante do agronegócio, mas está longe de ter apoio incondicional…
Por Caio Pompéia/via Carta Maior
Em 2014, logo após a reeleição de Dilma Rousseff, pecuaristas de São Paulo criaram em Araçatuba, no interior do estado, a Frente Produtiva do Brasil. O movimento liderado pela União Democrática Ruralista (UDR) – uma entidade conhecida por posições extremistas em temas fundiários que vinha perdendo espaço em Brasília – se cobriu com as cores da bandeira nacional para espalhar críticas à lisura do processo eleitoral e atacar a corrupção, seguindo o cardápio da Operação Lava Jato. A iniciativa ajudou a dar corpo em municípios do Oeste paulista à oposição ao segundo mandato de Dilma e a radicalizar a aversão dos produtores ao PT. Foi o início de uma das frentes do agronegócio que se alinharia com Jair Bolsonaro, alguns anos depois.
Os pecuaristas reunidos na Frente Produtiva do Brasil tinham outra coisa em comum: estavam insatisfeitos com as elites do agronegócio e a proximidade delas com governos petistas. Dois anos antes da reeleição de Dilma, a UDR e a Associação dos Criadores de Mato Grosso do Sul (Acrissul) haviam comandado o Movimento Nacional Contra o Monopólio dos Frigoríficos, com o objetivo de confrontar a concentração industrial crescente na cadeia de carne, que reduzia o preço da arroba do boi. Para muitos dos bovinocultores, o fortalecimento de grandes frigoríficos – como JBS e Marfrig – era fruto de estratégia do PT para expandir as posições internacionais dessas corporações.
Ao mesmo tempo, a UDR e outras lideranças da Frente Produtiva do Brasil questionavam a legitimidade da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), uma das mais importantes representações do agronegócio. Essa reprovação atingiu ponto de ebulição com a articulação entre Dilma e a então presidente da CNA, a pecuarista e senadora Kátia Abreu (na época do MDB-TO, hoje do Progressistas). Afinidades pessoais haviam ligado as duas líderes, mas também interesses estratégicos. A presidente tentava explorar divisões no agronegócio, enquanto a senadora, julgando Dilma razoavelmente sensível a%u000s agendas que representava, via uma chance de ampliar sua influe%u002ncia em Brasília. À frente da UDR, o pecuarista Luiz Antônio Nabhan Garcia protestou quando Kátia Abreu assumiu o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, acusando-a de trair a própria classe.
Entre o fim de 2014 e o início de 2015, a Frente Produtiva do Brasil conseguiu ampliar rapidamente seu perímetro de mobilização, passando a reunir fazendeiros do Rio Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Em 22 de março de 2015, obteve um de seus maiores êxitos ao reunir cerca de quatrocentos fazendeiros em Dourados, Mato Grosso do Sul, com o objetivo de atacar o governo Dilma, criticar os tributos e as multas relacionadas a ilícitos ambientais e reclamar das ações de povos indígenas e de movimentos sociais – como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Nabhan Garcia e outras lideranças aproveitaram a manifestação para elevar o tom das críticas à CNA.
Cerca de um ano depois, em março de 2016, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) – o mais organizado e influente bloco multipartidário no Congresso Nacional, frequentemente chamado de “bancada ruralista” – manifestou posição em favor do impeachment de Dilma Rousseff. Com a destituição da presidente, em 31 de agosto daquele ano, os pecuaristas liderados pela UDR imaginavam encontrar um cenário propício em Brasília para aumentar sua incidência no novo governo. Não foi o que aconteceu. As críticas às elites do agronegócio haviam ampliado, nas associações dominantes do agronegócio, uma resistência aos bovinocultores da Frente Produtiva do Brasil. Essa resistência se manifestava em particular no Conselho das Entidades do Setor Agropecua%u001rio (Conselho do Agro), criado pela CNA, e no poderoso Instituto Pensar Agropecuária (IPA). O IPA abrange quase meia centena de associações relacionadas à agricultura e às indústrias, sobretudo as mais robustas financeiramente, além de operar como centro estratégico de decisões para o núcleo duro da bancada do agronegócio no Congresso.
A marginalização de tais pecuaristas, além disso, dificultava o acesso ao presidente recém-empossado, Michel Temer. A desmobilização parecia ser o futuro da mobilização, quando uma decisão do Supremo Tribunal Federal acendeu a nova fagulha que os fez recobrar a capacidade de organização. Em março de 2017, o STF considerou constitucional que a União cobrasse dos empregadores rurais pessoa física a contribuição para o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural) – um tributo usado pelo governo para custear parte da aposentadoria de trabalhadores do campo.
Em protesto contra a decisão do tribunal, líderes ligados à UDR e à Acrissul promoveram uma reunião de mais de mil fazendeiros na Praça Portugal, próxima à Esplanada dos Ministérios, em maio, quando o Senado debateu a pauta. Foi nesse ambiente que começaram a florescer as críticas dos pecuaristas ao Supremo, que eles passaram a identificar como um agente político.
Depois da audiência no Senado, ficaram patentes as diferenças internas no agronegócio quanto ao tema: enquanto a UDR e outras entidades politicamente secundarizadas em Brasília propunham a extinção completa das dívidas do Funrural, os frigoríficos, a CNA, a maioria do IPA e parlamentares da direção da bancada ruralista preferiram outra opção: pressionar o governo Temer a aceitar um refinanciamento das obrigações, em termos extremamente vantajosos para as elites dos sistemas alimentares.
Foi em conexão com os grupos que não aceitavam o pagamento das dívidas do Funrural que a candidatura do então deputado federal Jair Bolsonaro à Presidência ganhou impulso nos meios rurais. Em 31 de julho de 2017, o deputado participou em Gramado, no Rio Grande do Sul, de um evento com Nabhan Garcia. No encontro, o líder da UDR reclamou das agroindústrias, dos tributos e das fiscalizações ambiental e trabalhista, além de aproveitar para defender que, do ponto de vista dos fazendeiros, Jair Bolsonaro seria o candidato ideal à Presidência.
Bolsonaro logo notou que as divisões no agronegócio poderiam favorecê-lo e, em seu discurso de campanha, enfatizou as pautas que agradavam principalmente os fazendeiros com papel subalterno na cena política e econômica. Defendeu a redução de impostos para a agropecuária e a possibilidade de supressão das dívidas do Funrural, posicionou-se contra os movimentos sociais e contra os direitos territoriais de povos e populações tradicionais, fez críticas à fiscalização e à punição a ilícitos ambientais e propôs a facilitação do uso de armas de fogo por proprietários rurais. Era exatamente o que muitos desses fazendeiros queriam ouvir, e nenhum outro candidato à Presidência estava propondo na campanha de 2018.
As posições extremistas adquiriam maior impulso com outros fatores, como a desconfiança em relação aos partidos dominantes, o descontentamento com o aumento da concentração proprietária nas principais cadeias de commodities, a reação ao reconhecimento de direitos territoriais tradicionais – como os dos indígenas –, a contrariedade com a aplicação de regras ambientais e trabalhistas, além da perplexidade com o aumento do número de roubos no campo (de insumos, máquinas e implementos).
A estratégia de comunicação de Bolsonaro se materializou em duas táticas de campanha: a intensificação das visitas a festas e feiras relacionadas ao mundo rural e agropecuário, e o habilidoso e sistemático uso das mídias sociais. Nabhan Garcia teve papel fundamental em ambas as táticas.
O extremismo de Bolsonaro, no entanto, não foi bem recebido pela maioria dos parlamentares do núcleo da bancada ruralista, reunidos para um encontro com o candidato presidencial em 28 de novembro de 2017, na mansão do IPA localizada em Brasília. A oposição veio sobretudo de organizações empresariais do agronegócio que financiavam o IPA e tinham forte influência sobre os congressistas. Elas estimaram que as ideias de Bolsonaro poderiam trazer riscos às corporações. Como hoje se sabe, estavam corretas na avaliação.
Nem todas as associações ligadas ao IPA pensavam assim. Algumas delas, como as da soja, vinham se inclinando para posições mais radicais. Em sua campanha no final de 2017 para liderar a Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso (Aprosoja-MT), o produtor rural Antonio Galvan procurou cativar pequenos e médios sojicultores ao adotar um tom combativo com as transnacionais ligadas à soja e com os governos estadual e federal. Ao contrário dos produtores de soja gigantes (que operam com dezenas ou centenas de milhares de hectares plantados com a oleaginosa), os sojicultores menores sentiam de forma aguda as perdas em disputas distributivas com corporações e se ressentiam das dificuldades na interlocução com o Estado.
Uma vez no comando da Aprosoja-MT, Galvan passou a ter sob seu controle capitais financeiros e políticos incomparavelmente maiores do que os da UDR e, graças a isso, ampliou gradualmente a adesão de sojicultores ao movimento liderado por pecuaristas que emergira em 2017.
A articulação entre as duas correntes – uma comandada pela UDR, outra pela Aprosoja-MT– deu impulso a outra manifestação conjunta na capital federal, em 4 de abril de 2018, estrategicamente chamada de Abril Verde e Amarelo. A adesão foi expressiva, com a participação de cerca de dois terços das Aprosojas estaduais. Em Brasília, juntaram-se ainda representações de entidades locais e regionais de produtores de leite, café, cana, arroz e até frigoríficos médios (também descontentes com a concentração industrial na cadeia da carne), além de cerca de 170 sindicatos rurais – sobretudo de Goiás, Mato Grosso, Pará e Minas Gerais.
Foram os líderes do protesto Abril Verde e Amarelo que, após a vitória de Bolsonaro, apoiaram a ideia de nomear Nabhan Garcia para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
A contraofensiva das elites do agronegócio não tardou. Com grande poder para influenciar os votos de parlamentares, elas logo avisaram Bolsonaro de que o movimento que apoiava Nabhan Garcia não garantiria ao governo o apoio do Congresso.
O alerta das elites serviu para que o presidente abandonasse a ideia de nomeá-lo. A escolhida para dirigir o ministério foi a deputada federal Tereza Cristina (DEM-MS), que então comandava a bancada ruralista.
Para evitar um impasse com os líderes do Movimento Brasil Verde e Amarelo – como a articulação contrária ao pagamento das dívidas do Funrural passou a ser chamada –, Bolsonaro criou a abrangente Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, ligada ao ministério, e a entregou a Nabhan Garcia, que ocupa o cargo até hoje. O secretário começou a atuar como um agente do varejo político, viajando a diversas áreas do país para apoiar e mobilizar produtores com influência local, principalmente aqueles em embates fundiários relacionados a grupos étnicos e movimentos sociais. Em Brasília, sua agenda igualmente prioriza reuniões com associações municipais e fazendeiros dotados de poderes locais.[1]
A despeito de ter desagradado algumas representações no IPA, a decisão de Bolsonaro foi conveniente para a maioria delas. Com efeito, os interesses fundiários em sentido amplo, como a oposição aos direitos territoriais de populações tradicionais, são fatores que frequentemente fazem convergir diferentes segmentos ligados ao agronegócio.
Se a maioria das agendas fundiárias une distintos agentes do agronegócio, o mesmo não pode ser dito das questões ambientais. Em uma frente, líderes do Movimento Brasil Verde e Amarelo têm apresentado posições radicalizadas, que ficaram evidentes quando Galvan e Nabhan Garcia defenderam a extinção do Ministério do Meio Ambiente, e quando este último criticou duramente a Convenc%u027a%u003o-Quadro das Nac%u027o%u003es Unidas sobre Mudanc%u027a do Clima, tratado internacional para reduzir as emissões de gases de efeito estufa.
As elites do agronegócio, sobretudo as industriais e ligadas a atividades terciárias, enxergam ameaças nessas posições extremadas. Depois de um acordo costurado no IPA, acabaram convencendo Bolsonaro a não levar adiante as duas ideias. Mas não se mobilizaram para evitar as agendas antiambientais do governo, dentre elas a redução da fiscalizac%u027a%u003o de crimes ambientais, a contestac%u027a%u003o das unidades de conservac%u027a%u003o, o enfraquecimento de espaços participativos sobre as políticas para o meio ambiente e a tentativa de desacreditar o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que monitora o desmatamento na Amazo%u002nia.
No IPA, há dois núcleos dominantes. O primeiro é constituído por organizações que, embora não tenham aderido incondicionalmente a Bolsonaro, decidiram dar sustentação pública a parte das políticas do governo, como aquelas sobre o meio ambiente. Nesse quesito, duas das organizações mais atuantes são a CNA e a União da Indústria de Cana-de-Açúcar, que veem nas posições do governo uma oportunidade para aprofundar desregulamentações ambientais, como a que permite a expansão do cultivo da cana-de-açúcar na Amazônia e no Pantanal.
O segundo núcleo é liderado por representações que são mais suscetíveis a pressões internacionais, sobretudo de investidores ou importadores, como a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) e a Associac%u027a%u003o Brasileira das Indu%u001strias Exportadoras de Carnes (Abiec). Por causa dos riscos estratégicos ligados a temas ambientais, essas entidades precisam realizar mudanças calculadas nas cadeias em que atuam. São, portanto, agentes centrais para a moratória da soja na Amazônia, que proíbe o plantio do produto em áreas desmatadas após 2008.
Nos bastidores, contudo, tanto a Abiove quanto a Abiec frequentemente atuam em acordo com representações como a Aprosoja, a CNA e a Unica. É o que está acontecendo no caso da atual tramitação no Congresso de projetos que visam o enfraquecimento das regras de licenciamento ambiental. Os acordos entre elas se fazem seja promovendo a mobilização conjunta das entidades, seja evitando conflitos que ameacem consensos em temas fundamentais para todas – como os que permitem manter os baixos impostos cobrados das elites do agronegócio.
O aprofundamento de posições antiambientais no IPA, incentivado pelo Planalto, está fazendo com que a antes influente Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) perca espaço no instituto. Liderada por agentes de perfil mais sofisticado, ligados principalmente a atividades industriais e financeiras, a Abag se opôs a algumas das agendas do governo e da bancada ruralista sobre o meio ambiente, como a nova tentativa de modificação do Código Florestal em 2019. Mas seus líderes manifestam sua posição sobretudo em entrevistas à imprensa e em manifestos, que não se desdobram em ações políticas concretas junto ao Congresso Nacional.
Além de cooptar o líder da UDR, Nabhan Garcia, Bolsonaro agiu para selar outra aliança estratégica no âmbito do agronegócio, com a Aprosoja-MT. Essa aproximação deu impulso ao avanço de posições radicalizadas nas Aprosojas de outros estados. Consequentemente, a própria Aprosoja Brasil – que representa em nível nacional as diferentes associações estaduais – passou a ser alvo de disputas.[2]
Com isso, o governo trouxe o Movimento Brasil Verde e Amarelo para seu controle. Mas as manifestações, principal munição política do movimento, foram seriamente prejudicadas com a chegada da pandemia. Suas iniciativas se fragmentaram ao longo de 2020. Enquanto isso, Bolsonaro priorizou as negociações com os parlamentares da bancada ruralista, que impõem ao governo relações mais pragmáticas.
O movimento agrobolsonarista só despertou novamente, em âmbito nacional, no início de 2021, quando o presidente se encontrava crescentemente ameaçado em seu projeto de poder. Depois que o ministro Edson Fachin, do STF, anulou as condenações do ex-presidente Lula na Lava Jato, agentes do Movimento Brasil Verde e Amarelo começaram a organizar um grande evento em Brasília a fim de apoiar Bolsonaro, protestar contra o Supremo e contestar as medidas sanitárias de governadores para diminuir o avanço da Covid-19.
Procurando evitar mais conflitos no país no momento em que a pandemia se agravava, o general da reserva Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, se reuniu com Nabhan Garcia, secretário especial de Assuntos Fundiários, e Antonio Galvan, parceiro estratégico do governo que acabara de alcançar a presidência da Aprosoja Brasil. O general pediu a ambos que a manifestação programada para abril de 2021 tomasse a forma de uma carta política e não acontecesse presencialmente. Em seguida, gravou um vídeo com os dois líderes para divulgar publicamente o pedido.
No entanto, com a confirmação pelo plenário do Supremo da anulação das condenações de Lula, em 15 de abril, e a instalação da cpi da Pandemia, doze dias depois, o Movimento Brasil Verde e Amarelo voltou a organizar novo ato em Brasília. Dessa vez, foi estimulado por Bolsonaro, que, em uma de suas lives, afirmou que pretendia participar da manifestação. Mobilizando sua crescente influência, Galvan gravou um vídeo cobrando que sojicultores contribuíssem no financiamento do evento.
A manifestação “O agro e o povo pela democracia” aconteceu em 15 de maio, liderada por sojicultores, com o apoio principal de pecuaristas e produtores de cana-de-açúcar, e a participação de grupos evangélicos. As posições dos manifestantes estavam então completamente absorvidas pelas agendas do governo: a contestação aos poderes Legislativo e Judiciário – sobretudo o STF – e as críticas ao voto eletrônico, além de ataques a governadores e prefeitos pelas medidas de enfrentamento à pandemia. Em discurso durante o protesto, Bolsonaro enfatizou esses pleitos e convidou o ministro da Defesa, o general da reserva Walter Braga Netto, para discursar. Com uma fala breve e contundente, o general assegurou aos fazendeiros que as Forças Armadas estavam a postos para protegê-los.
A maioria das elites da agropecuária e das indústrias no IPA não aderiu ao protesto, preferindo manter negociações pauta a pauta com o governo, o que lhes garante maior margem de manobra e pressão política. Essa opção se refletiu na posição distanciada da bancada ruralista em relação ao protesto em Brasília. A CNA também não participou. Embora opere com as Aprosojas para proteger as políticas de Bolsonaro sobre o meio ambiente, viu a adesão ao movimento chapa-branca como estrategicamente perigosa. Tanto o IPA quanto a CNA são agentes políticos dominantes que, independentemente do governo no poder, têm espaço nas principais mesas de negociação. A maioria dos manifestantes, ao contrário, por serem politicamente coadjuvantes, depende do Executivo para ter influência em escala nacional.
O aumento das taxas de rejeição a Bolsonaro e seu esforço para desacreditar o sistema eleitoral eletrônico serviram de ingredientes para catalisar a mobilização pró-governo no Sete de Setembro de 2021, Dia da Independência. A manifestação foi precedida por ameaças de invasão do STF e de uma caravana de Galvan rumo à sede da Polícia Federal, em Mato Grosso, composta por uma fila de tratores decorados com a bandeira do Brasil. Sojicultor gaúcho que passou pelo Paraná antes de se instalar em Mato Grosso, Galvan é um dos investigados pelo STF em inquérito que apura supostas relações com o planejamento de atos violentos e antidemocráticos.
Qual é hoje a representatividade do movimento que, dentro do agronegócio, tem apoiado fielmente Bolsonaro?
Para responder essa pergunta, é indispensável considerar as hierarquias no campo político relacionado aos sistemas alimentares. No IPA, principal e mais influente núcleo do agronegócio, somente um número bastante reduzido de suas 48 associações tem participado da linha de frente do Movimento Brasil Verde e Amarelo – entre elas a Aprosoja Brasil e a Aprosoja-MT. Essa dupla está longe de ser irrelevante, dada a bem-sucedida tradução de poder econômico em poder político, no caso dos sojicultores. A aliança do governo com esses dois agentes se revela fundamental para a tentativa de Bolsonaro de ampliar sua influência nos principais fóruns do agronegócio. O presidente e Galvan têm sido eficientes ao mobilizar discursos e práticas que seduzem os pequenos e médios plantadores de soja, mas também parte dos grandes.
Os gigantes da soja, por suas vezes, têm reagido a essa radicalização. Blairo Maggi, por exemplo, um dos proprietários da Amaggi, contesta a partidarização nas Aprosojas em favor de Bolsonaro. Mas, apesar do seu poder econômico, ele é voz minoritária nessas entidades. E não fala – e tampouco é compreendido – somente como sojicultor, pois a Amaggi atua de modo verticalizado na cadeia da soja (ou seja, tanto nas atividades primárias quanto nas secundárias e terciárias ligadas à oleaginosa), representando também as traders.
A propósito, a principal associação das traders de soja no Brasil, a Abiove – muito forte no IPA e que reúne corporações como a Bunge, a Cargill e a chinesa Cofco –, esteve entre as organizações predominantemente industriais que, em 30 de agosto de 2021, assinaram um manifesto reprovando a escalada antidemocrática no país. Também referendaram o documento outras financiadoras do IPA, como a Abag, a Indústria Brasileira de Árvores (Ibá), a CropLife Brasil e o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para a Defesa Vegetal (Sindiveg) – as duas últimas relacionadas à produção de agrotóxicos.
A cisão no IPA entre os que apoiam e os que reprovam a adesão às agendas de poder de Bolsonaro não deve ser interpretada como uma divisão entre fazendeiros, de um lado, e indústrias, de outro. Há representações de atividades primárias ligadas a commodities muito relevantes, como o algodão, que têm procurado se afastar da partidarização do agronegócio, tal como pretendida pelo presidente. Essa é a direção tomada pela Associac%u027a%u003o Brasileira dos Produtores de Algoda%u003o, bem como a associação mato-grossense. Ambas têm lugar de liderança no IPA e redigiram, no contexto do Sete de Setembro de 2021, uma carta pública em defesa das instituições democráticas.
As diferenças se prolongam nas várias representações da pecuária ligadas ao IPA. Quando pregava a abolição das dívidas do Funrural, o movimento liderado pela UDR e pela Aprosoja-MT ainda detinha capacidade de atrair robustas entidades pecuaristas que financiam o instituto, como a Associac%u027a%u003o Brasileira dos Criadores de Zebu e a Sociedade Rural Brasileira. Essas organizações, contudo, não mantiveram o mesmo engajamento depois da partidarização das manifestações.
No Conselho do Agro, segundo fórum mais importante do agronegócio, organizado pela CNA e no qual predominam fazendeiros ligados às principais commodities agropecuárias (como café, milho, algodão, carne bovina e suínos), o Movimento Brasil Verde e Amarelo tem alcance minoritário. Alguns de seus membros mais importantes, como o Conselho Nacional do Café, ligado às grandes cooperativas do produto, são abertamente avessos a posições extremistas. Das dezesseis associações do Conselho do Agro, apenas duas apoiam amplamente Bolsonaro: a Aprosoja Brasil e a Federação dos Plantadores de Cana do Brasil.
A CNA, por sua vez, liderada pelo pecuarista baiano João Martins da Silva Júnior, tem mantido distância do movimento agrobolsonarista. Sua posição é acompanhada pela maioria dos 1 957 sindicados que a constituem. Apenas um número menor deles, que se distanciaram da orientação da CNA por defender o fim das dívidas do Funrural, migraram para a órbita do Palácio do Planalto. É uma quantidade relativamente pequena, de aproximadamente 170 sindicatos, concentrados em estados onde a agropecuária é robusta, como Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais.
Tudo isso implica dizer que não existe adesão irrestrita das elites do agronegócio a Bolsonaro, apesar do apoio ou consentimento que a maioria delas atribui a determinadas políticas do governo, como as relacionadas ao meio ambiente. Esses agentes dominantes do campo são sem dúvida bastante conservadores, mas atuam pragmaticamente, costurando pactos estratégicos e procurando impor suas pautas ao governo do momento, não importa qual seja. Para qualquer pessoa que ocupa o Palácio do Planalto, é essencial administrar bem as relações com essas elites, que exercem forte influência no Congresso Nacional.
Já com os grupos secundarizados do agronegócio, econômica ou politicamente, a situação é diferente. Eles encontraram no atual presidente um parceiro estratégico, que podia se valer de eleitores rurais, sobre os quais têm significativa influência, mas também das suas manifestações públicas. No contínuo encalço de poder, Bolsonaro precisa de agentes que possibilitem a ele simular, para o público das cidades e para os seus adversários, o apoio do “agro”, em particular, e das “massas”, em geral.
Caio Pompeia é doutor em antropologia social pela Unicamp e autor de Formação Política do Agronegócio (Elefante), realizou estágios em nível de doutoramento e pós-doutoramento nas Universidades Harvard e Oxford, respectivamente
***[1] A chegada da UDR ao governo federal com a ascensão de Nabhan Garcia teve outro desdobramento importante: o Executivo começou a administrar de perto as críticas às dívidas do Funrural. Nabhan Garcia, uma vez empossado secretário, logo modificou sua posição de aguerrido opositor do pagamento e passou a dizer que o governo não tinha como agir para efetuar seu cancelamento.
[2] Nesse processo, a Aprosoja Brasil iniciou campanha pública para derrubar a moratória da soja na Amazônia.
****Publicado originalmente na revista Piauí