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O Brasil do desamparo

O Brasil do desamparo

O Brasil do desamparo

Há seis anos, um dos mais respeitados intelectuais da atualidade, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, reforçava em entrevista ao Observatório da Imprensa o caminho exitoso que o Brasil traçava no combate à extrema pobreza. Hoje, passados três anos da gestão do governo Jair Bolsonaro, e contrariando declarações de personalidades mundiais sobre a erradicação da pobreza no país durante a última década, o retrato do Brasil em 2021 é a fome…

Por Bruna Obadowski/via Mídia NINJA

De acordo com levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), o Brasil tem hoje quase 20 milhões de pessoas que passam 24 horas sem se alimentar.

Essa situação pode se agravar com o fim do maior programa de transferência de renda voltado à erradicação da fome no Brasil, o Bolsa Família (PBF) atrelado ao fim do Auxílio Emergencial. Sozinho, o Bolsa Família chegou a beneficiar mais de 14 milhões de famílias brasileiras, que temem voltar à situação de insegurança alimentar a qual foram duramente submetidas durante anos.

(A Lente)

Essa realidade, Maria Quitéria da Conceição, 44 anos, conheceu na pele. Nascida em São Paulo, ela sabe bem como é a vida daqueles que sobrevivem em situação de vulnerabilidade no maior centro comercial do Brasil. Sem estudar, e desde os oito anos pedinte nas ruas da capital, aos 14 teve seu destino atravessado pela morte de sua mãe, o que a obrigou, mesmo sem nenhuma condição econômica ou social, a ser dona de seu destino.

Desamparada, durante sua juventude fez parte dos números que retratam a infância e a adolescência de grande parte da população que vive abaixo da linha da pobreza no Brasil. Nos anos 90 ela vivenciou a realidade convergente aos números atuais. Atualmente, 17 milhões de crianças com até 14 anos de idade vivem em situação de insegurança alimentar. Como se não bastasse, ainda há os números alarmantes apontados pela Fundação Abrinq, onde 1,6 milhão de jovens entre 15 e 17 anos estão fora da escola e, a cada ano, cerca de 500 mil meninas entre 10 e 19 anos têm filhos. E o que também é muito grave: 2,5 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos trabalham. Números que ela conheceu de perto no passado.

Aos 15 casou-se e engravidou de seu primeiro filho. Outros vieram na sequência com o mesmo parceiro, na época com 17 anos. Aos 25 já estava em seu segundo casamento, onde teve outros cinco filhos. Sem estudo, puxava carroça em São Paulo para ter o mínimo de renda.

Tinha dias que eu puxava até 700 quilos na carroça cheia de papelão com as crianças junto. A gente ganhava muita coisa, comida, pão, lá a gente chama de freguês, então já era conhecida e ganhava, acho que ficavam com dó das crianças, relata ao lembrar dos dias de carroceira na Zona Norte de São Paulo.

Já adulta, mãe de dez filhos – dos quais três morreram ainda criança – ela deixou de fazer parte das 13 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza e passou a compor o número expressivo de brasileiras chefes de família que, desde 2004, tem uma garantia do mínimo para sobrevivência, o alimento. Essa leve ascensão deu-se após ser contemplada pelo Programa Bolsa Família. Quitéria é claramente o prospecto a que Bauman se referiu em 2016.

(A Lente)

Além da alimentação, o Bolsa Família deu condições para que Quitéria saísse de uma situação de violência doméstica que vivenciava com seu ex-companheiro em São Paulo. Em busca de uma vida melhor, ela partiu rumo a Mato Grosso. Na época, os R$ 200 reais do bolsa família eram sua única garantia.

Atualmente desempregada, Quitéria sustenta sua família com pequenos bicos em uma cooperativa de reciclagem em Cuiabá (MT), onde vive desde 2013. O desemprego assola categoricamente sua família, que tem como a única renda fixa o dinheiro do programa, o qual é beneficiária há 17 anos.

(A Lente)

No cenário  das mudanças da organização familiar pautado no Bolsa Família, Quitéria é um exemplo de mulheres que romperam amarras rumo à liberdade da violência doméstica. Segundo reportagem da Carta Capital, o programa, criado no primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), foi uma das iniciativas mais feministas que esse país já adotou. “Ao privilegiar as mulheres como principais beneficiárias, teve papel importante ao dar a elas autonomia e contribuir com o fim de ciclos de violência”.

Em entrevista concedida em 2010, Marilena Chauí foi categórica ao reconhecer a importância do programa para as mulheres chefes de família. “O Bolsa Família produziu uma desestruturação da família, porque ele produziu a perda de lugar masculino e a presença forte da figura feminina. Isso mudou as relações de poder dentro do interior da família, isso mudou o lugar da mulher nas pequenas comunidades e pequenas sociedades”.

Até 2016, 92% das famílias beneficiárias tinham mulheres como titulares. Do ponto de vista administrativo, a opção pela titularidade preferencial feminina decorre da definição legal já existente nos programas de transferência de renda condicionada, anteriores ao PBF, e por ele unificados em 2003. Sob a ótica conceitual, segundo apontou o relatório 2331 do IPEA, “essa opção ratifica a perspectiva já existente nesses programas, e embasada em análises empíricas sobre os gastos domiciliares, de que a transferência monetária direta à mulher reforça sua utilização em prol de toda a família”.

Enfrentando desafios convergentes aos de Quitéria, Lucimara Abadia de Souza, 52 anos, sente sua sobrevivência ser ameaçada com o fim do programa, o qual é beneficiária há 18 anos. Sem saber do fim do Bolsa Família e da aprovação do novo decreto que criou o Auxílio Brasil, Lucimara se preocupa com o futuro. “Hoje eu paro pra pensar como será amanhã. Onde é que nós vai parar. Nós da classe pobre tá acabando, isso é fome!”.

(A Lente)

Lucimara começou a trabalhar na roça aos nove anos, quebrando milho. Suas mãos de criança não davam conta, e ela quebrava um a um, o que estendia o tempo do serviço. Com 17 anos, era mãe solteira. Seu primeiro filho morreu aos 23, atropelado por uma caminhão de lixo no aterro sanitário enquanto trabalhava. “O dia de amanhã é o mais triste pra mim”, lamenta ao lembrar dos dez anos da morte de seu filho.

(A Lente)

“O que eu passei, eu luto pros meus filhos não passarem. Mas to vendo que eles estão indo pro mesmo caminho. Tem dois no lixo comigo. Não é que to desclassificando de onde tiro meu alimento, mas não queria que eles seguissem aquele caminho de sofrimento meu. Eu queria coisas melhores pra eles”, conta emocionada ao relatar a falta de oportunidade para os filhos no mercado de trabalho. O medo também assola o futuro de seus netos.

(A Lente)

(A Lente)

O cenário de desemprego no país em 2021 é desolador. Segundo levantamento publicado em junho deste ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil acumula 14,8 milhões de pessoas buscando trabalho. A taxa e o número de desempregados são os maiores desde o início da série histórica, iniciada em 2012.

Para agravar a situação, – ampliada com as consequências da política econômica vigente e à Pandemia por Covid-19, recentemente Lucimara sofreu um acidente enquanto trabalhava no lixão, teve sequelas no movimento do pé, ocasionado por uma perfuração, e está impedida de carregar peso por problema na coluna.

Atualmente os filhos mantêm a casa, no total com três adultos e três crianças. A renda fixa também virou uma grande vilã. Sem poder trabalhar, sua única certeza é o Bolsa Família somado ao Auxílio Emergencial, que também foi encerrado. Depois de 19 meses e de atender 67 milhões de famílias, o programa do governo federal pagou o último depósito em novembro. Sem o Auxílio Emergencial e sem ter ideia da implementação do Auxílio Brasil, ela prevê que sua renda cairá para apenas 41 reais mensais.

(A Lente)

Nós não estamos passando fome ainda porque tá tendo bastante doação lá no lixão, senão nós estaríamos passando fome.

Sem gás e com a água cortada, sua família direcionou todo o ganho do mês para o exame que ela necessita. “Eu queria é só me tratar pra poder trabalhar”. Há um mês parada, ela não consegue fazer o tratamento pois o exame no Sistema Único de Saúde (SUS) não tem data para acontecer. Diante de todas essas dificuldades, Lucimara sonha que tudo volte a ser como antes. “A gente comia três vezes por dia. Abria a panela e tinha carne”.

Longe de ser seu único drama, Lucimara também teme o retorno ao trabalho. Isso devido ao expressivo número de novos catadores no aterro sanitário de Cuiabá, uma realidade visível diante da crise econômica que assola o país. Segundo ela, com o aumento da concorrência, fica mais difícil tirar o necessário para a manutenção da casa.

(A Lente)

O desemprego fez o número de catadores no Aterro Sanitário de Cuiabá mais do que dobrar durante a pandemia. Há um ano eram 100 trabalhadores no local. Agora já são mais de 250, segundo o Movimento dos Catadores de Materiais Recicláveis. Lucimara relata que já contou 500 pessoas em um único dia, todas em busca dos resíduos para garantir a sobrevivência.

(A Lente)

Do outro lado da cidade, Dona Ana se vê na mesma situação que Lucimara. Ela, que é catadora há mais de dez anos, também enfrenta dificuldades para garantir a renda. “Muito catador mesmo. Aumentou a quantidade. Muita gente perdeu o serviço”, relata.

Nascida em uma usina de cana-de-açúcar na zona rural de Santo Antônio de Leverger, Dona Ana leva no corpo as marcas dos anos de trabalho. Chegando aos 66, luta pela aposentadoria. A perda do Bolsa Família há alguns anos – devido a falta da guarda legal dos netos, – desestruturou a casa, levando-os a ter ainda mais dificuldades.

(A Lente)

(A Lente)

(A Lente)

(A Lente)

A realidade que bate à porta de Dona Ana e sua família também subscreve as páginas extensas que marcam os relatos e relatórios do Brasil de 2021, o abismo da deterioração econômica – que deve se agravar também com o fim do Auxílio Emergencial.

A partir dos dados inéditos apresentados pelo economista Waldir Quadros à Carta Capital, é possível ter dimensão de como o fim de tais programas podem comprometer a renda das famílias de baixa renda. Segundo ele, 11 milhões de famílias brasileiras nas quais todos os membros estão desempregados, vivem exclusivamente do auxílio de programas sociais como o Bolsa Família, seguro desemprego, auxílio emergencial e aposentadoria. O buraco é ainda mais fundo. “Grande parte dos 44 milhões de brasileiros estão em situação de vulnerabilidade social absoluta, pior que a dos pobres e a dos miseráveis”, relatou.

Não é difícil temer o futuro diante de uma conjuntura de abandono das políticas sociais. Ao acabar com o Bolsa Família e o Auxílio Emergencial no momento em que a fome cresce no país, impulsionada pelo alto desemprego e uma absurda inflação da cesta básica, o governo federal lança à própria sorte cerca de 25 milhões de famílias.

É nesta conjuntura que nasce o Auxílio Brasil. Criado por meio da Medida Provisória 1.051, em 9 novembro de 2021, ele revoga automaticamente a  Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, de criação do programa Bolsa Família, reconhecido e premiado mundialmente como um dos principais programas de políticas sociais do governo brasileiro, que já vinha sofrendo cortes há três anos. A redução dos auxílios vem sendo realizada desde o início da gestão do atual presidente Jair Bolsonaro. O governo reduziu em R$ 3 bilhões o orçamento do Bolsa Família em 2018. Em 2019, foram R$ 32,5 bilhões destinados ao programa e em 2021,  R$ 29,5 bilhões.

Diante dos números apresentados pelos estudos do IPEA sobre as conquistas do Bolsa Família, nasce o questionamento sobre a necessidade da criação do novo programa que inicia com data para acabar. Em 2018, o PBF reduziu a pobreza em 15% e a extrema pobreza em 25%, além de responder por 10% da redução da desigualdade observada no Brasil entre 2001 e 2015.

Diante de mudanças significativas que podem decidir o futuro de milhões de famílias brasileiras, o sonho de Lucimara é voltar a ter a vida que tinha antes, com dignidade.

 
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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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