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O Brasil é racista e posso provar

O é racista e posso provar

As coisas não nasceram para dar certo, somos nós que fazemos as coisas acontecerem” – Sérgio Vaz

Joceline Gomes

Sou pós-graduada em Gestão de Políticas Públicas de Gênero e Raça na de Brasília. Pela primeira vez na minha trajetória acadêmica, a maioria do docente era de mulheres e negras. Foram apenas duas turmas, e já na minha, os recursos estavam escassos. Não abriram outras. Nesse mês de novembro, em que celebramos a Consciência Negra, é preciso falar sobre políticas públicas para o povo preto. Quando falamos “políticas públicas” pensamos logo em leis, legislação, e não poderia ser diferente. Por isso, baseada em um texto de Leandro Ribeiro, queria apresentar uma série de leis direcionadas para a população negra. O que não significa que sejam positivas. Vem comigo.

1837 – Primeira lei de educação: negros não podem ir à escola.

Lei nº 1, de 14 de janeiro de 1837: “São proibidos de frequentar as escolas públicas: Primeiro: pessoas que padecem de moléstias contagiosas. Segundo: os escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos”. A lei nº 1 do Brasil já mostrava para quem era esse país. Definitivamente não para os negros.

1850 – Lei de terras: negros não podem ser proprietários.

Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850: aprovada no mesmo mês e ano da lei Eusébio de Queirós (Lei nº 581 de 4 de set de 1850), que previa o fim do tráfico negreiro. A Lei de Terras, como ficou conhecida, foi uma antecipação de grandes fazendeiros e políticos latifundiários que queriam impedir que negros pudessem ter terras. A abolição estava surgindo no horizonte e tudo que eles menos queriam é que negros pudessem ser seus concorrentes. Soa familiar?

1871 – Lei do Ventre Livre

racismo nobrasil reproduc3a7c3a3oLei nº 2.040 de 28 de set de 1871 – filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir desta data ficariam livres. Agora me diz, uma , ainda que livre, vive como? Com a mãe. Se a mãe é escrava, logo… pois é. A realidade é que essas crianças cresciam escravas e permaneciam assim até que a mãe fosse liberta – algo conquistado pela compra da carta de alforria por meio das irmandades de negros ou mesmo pela fuga. Mas pela lei que não foi.

1885 – Lei do Sexagenário

Lei nº 3.270 de 28 de setembro de 1885 – concedia aos escravos com mais de 60 anos de idade. Quem sobrevivia até 60 anos com as péssimas condições de , alimentação, moradia, sono, vida que a escravidão estabelecia? Sem contar que a lei apresentava um artigo que determinava que o escravo, ao atingir os 60 anos, deveria trabalhar por mais 3 anos, de forma gratuita, para seu proprietário.

1888 – Lei Aurea

Lei nº 3.353 de 13 de maio de 1888 – 388 anos de país depois… A maioria dos escravizados já tinham conseguido sua liberdade por meio da fuga, da compra de alforria e dos movimentos abolicionistas negros. Foi uma lei pra acalmar os ânimos internacionais, porque o país já tava sofrendo com a pressão permanente de países como a Inglaterra. Tava pegando mal já, sabe como é, essa parada de relações internacionais, diplomacia e tals… Mas é aquela, aboliu mas as condições de trabalho continuavam as mesmas por muito tempo. Foi uma lei só pro Brasil dizer que aboliu. Daí que veio a expressão “pra inglês ver”. O Brasil foi o último país ocidental a abolir a escravidão. E o fez sem nenhuma política reparatória, sem nenhum tipo de indenização às vítimas deste que foi o mais cruel e duradouro crime contra a humanidade. Aliás, os senhores de engenho é que queriam indenização, por perderem “mercadoria”. O documentário A última abolição (que estava em cartaz e teve baixíssima bilheteria) explicou que Rui Barbosa queimou as notas fiscais e outros registros da escravidão exatamente para não ter que ressarcir essas compras. Esse filme inclusive explica com riqueza de detalhes, documentação histórica e contextualização de grandes estudiosos do tema como a abolição feita sem reparação reflete nas desigualdade sociais sofridas pela população negra até hoje. Recomendo.

1890 – Lei dos vadios e capoeiras

Código Penal – Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890 (atenção, 2 anos depois da abolição) – os que perambulavam pelas ruas, sem trabalho ou residência comprovada, iriam pra cadeia. Bem como os que estivessem jogando ou portando objetos relativos à capoeira.

CAPITULO XIII

DOS VADIOS E CAPOEIRAS

Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite; prover a subsistencia por meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes (…)

Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: Pena – de prisão cellular por dous a seis mezes.

Paragrapho unico. E’ considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta.

Agora pensa aqui comigo: quem andava pelas ruas, sem trabalho ou residência comprovada após a abolição? Eram mesmo “livres”? Dá para imaginar qual era a cor da população carcerária daquela época? Você sabe a cor predominante nos presídios hoje? Pois é. Pesquisa aí rapidão.

1968 – Lei do Boi

Lei nº 5.465, de 3 de Julho de 1968. 1ª lei de cotas! Não, não foi pra negros, foi para filhos de donos de terras, que conseguiram vaga nas escolas técnicas e nas universidades (volte e releia sobre a lei de 1850!!!).  Mas deixo uns trechinhos pra vocês:

Art. 1º. Os estabelecimentos de ensino médio agrícola e as escolas superiores de Agricultura e Veterinária, mantidos pela União, reservarão, anualmente, de preferência, de 50% (cinqüenta por cento) de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos dêstes, proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural e 30% (trinta por cento) a agricultores ou filhos dêstes, proprietários ou não de terras, que residam em ou vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio.

UMA COTA DE 50% CINQUENTA POR CENTO PARA LATIFUNDIÁRIOS E SEUS FILHOS. 50% na área rural e 30% na urbana. 80% bichão. Ou seja, a reparação para a população negra não teve, mas os latifundiários precisavam sim de cotas, 80% de vagas reservadas para eles e seus filhos. Eles precisavam estudar, gente! Tá certo.

1988 – Nasce nossa ATUAL CONSTITUIÇÃO

Foram necessários 488 anos para ter uma que dissesse que racismo é crime! Ainda assim, na maioria das ocorrências, se minimiza o racismo enquanto injúria racial e nada acontece. Vou deixar uns artigos aqui só pra reflexão do nosso momento atual:

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

      II – prevalência dos direitos humanos;

      VI – defesa da paz;

      VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;

Ainda bem que a Constituição é obedecida, né? Show. Será?

2001 – Conferência de Durban

O nome completo é: III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas. Foi realizada em setembro de 2001 e de lá saiu uma declaração, da qual o Brasil é signatário, sabia? O Estado reconhece que terá que fazer políticas de reparação e ações afirmativas. Mas, não foi porque acordaram bonzinhos. Não foi sem luta. Foram décadas de lutas para que houvesse esse reconhecimento. E olha que até hoje tem gente que ignora, hein?

2003 – Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003

Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Que não é cumprida até hoje na maioria das escolas né? O nome disso é racismo institucional. Não é interessante ensinar cultura africana e afro-brasileira nas escolas. Afinal: “Um povo sem o conhecimento da sua história, origem e cultura é como uma árvore sem ” – Marcos Garvey. A quem interessa que o povo preto tenha consciência? Pois é. Lembrando que essa lei foi assinada na segunda semana do primeiro governo Lula. Só um fato histórico mesmo pra refrescar a memória.

2009 – 1ª Política de Saúde da População Negra

Portaria nº 992, de 13 de maio de 2009. Que prossegue sendo negligenciada no sistema de saúde. Quem são as maiores vítimas da obstétrica? Quem recebe menos anestesia? Quem é menos tocada em uma consulta ginecológica?

2010 – Estatuto da Igualdade Racial

Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Em um país que se nega sequer a reconhecer a existência do racismo, ter aprovado o Estatuto foi um passo. Se a lei “pegou”, é outra história.

2012 – Cotas nas universidades

Lei 12.711 de 29 de agosto de 2012, que estabelece a reserva de vagas. A revolta da casa grande sob um falso pretexto meritocrata. A mesma lei já estabelece uma reserva de 50% das vagas para estudantes de escolas públicas, mas toda vez vem um tInHa qUe sEr pRa pObRe e nÃo pRa nEgRo.

Não desmereço o trabalho de nenhum dos irmãos e irmãs que lutaram para que cada uma dessas políticas de ações afirmativas fossem aprovadas. Pelo contrário, reconheço a luta e os honro. A questão é que o racismo estrutural brasileiro não permite que essas legislações sejam aplicadas na prática. Seguimos tentando.

Como vocês podem ver por essa linha do tempo, e pelas execuções diárias do povo preto, nossa sociedade é extremamente racista e ainda escravocrata. Muita coisa ainda não mudou. Mas os direitos conquistados com muita luta podem ser perdidos num piscar de olhos. Resistamos, portanto.

*Joceline Gomes é jornalista e dançarina. Pós-graduada em Gestão de Política Públicas de Gênero e Raça pela Universidade de Brasília, compreende a importância da mídia e das artes para a construção e desconstrução de preconceitos e estereótipos.

** Texto originalmente publicado na coluna de Joceline Gomes na Rádio Eixo

Fonte: Favela Potente

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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