Parecia de início para alguns que seria uma farsa passageira. Ledo engano. Durou 21 anos. Erguendo o “espantalho” da ameaça comunista, as vivandeiras de quartéis naquele período sombrio, também encasteladas nas principais redações de jornais, rádios e TVs, bradavam aos quatro ventos que era preciso pôr abaixo o governo legítimo de João Goulart. 

A tragédia que se seguiu, com cassações, aposentadorias compulsórias, prisões, exílios e mortes, já está por demais escrita e documentada. Como rescaldo tenebroso do processo, resta a aparição dos corpos de dezenas de ativistas que, sequestrados e mortos pelo porão, não tiveram suas famílias a devida elucidação.

O golpe, que começou com a participação do conservadorismo brasileiro e da quinta-coluna subordinada aos interesses estrangeiros, transmudou-se em ditadura eminentemente militar com a edição do famigerado Ato Institucional Nº 5. Nada mais do que o golpe dentro do golpe, em 13 de dezembro de 1968. 

Vindo de um círculo virtuoso no governo JK e da consagração de um plebiscito cujo resultado largamente majoritário dava ao governo João Goulart o apoio popular para as chamadas Reformas de Base, a interrupção do governo em 1964 legou ao país o atraso institucional, econômico e financeiro que até o presente não se conseguiu superar. 

O retorno dos golpistas à frente dos quartéis, quase 60 anos depois, é o reflexo mais cristalino do caráter autoritário e anti-povo produzido pelo golpe de triste memória.

A reconstrução do tecido social brasileiro pós golpe midiático-parlamentar de 2016 e da experiência trágica que foi o governo de ocupação do capitão Jair Bolsonaro exigirá das forças democráticas e progressistas um radical compromisso com a democracia.

Só a plena democratização da sociedade permitirá que os setores populares se organizem e exijam os direitos básicos de cidadania. A dolorosa experiência do autoritarismo deve sempre servir de espelho para que não se esqueça. Ditadura Nunca Mais! 


Block

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!