Partiu seu Feliz, grande artista do Rio Negro

Partiu seu Feliz, grande artista do Rio Negro
 
Morre Feliciano Lana, que traduziu em as paisagens do Rio Negro, na densidade e força de sentidos que elas têm para seus povos
 
Feliciano Pimentel Lana faleceu ontem às 4h da madrugada, em São Francisco, comunidade situada no Alto Rio Negro, onde foi sepultado, hoje, na presença de familiares. Aos 83 anos, o artista plástico desana, de estilo inconfundível, deixa uma extensa produção que se espalhou por muitas publicações e acervos de instituições nacionais e internacionais, tornando-se uma marca do Rio Negro . Ele era um artista expedito e versátil, expressando seus conhecimentos minuciosos das narrativas, da e das paisagens do noroeste amazônico em seus desenhos e pinturas.
Feliciano Lana, artista da etnia Desana, nunca se cansou de pintar a paisagem do Rio Negro
Feliciano nasceu na comunidade desana São João, no Médio Rio Tiquié, tendo recebido o nome de benzimento de Sibó, “filho do sol”. “Minha me carregava indo na roça” – conta ele, sobre quando ainda era bebê. “Eu lembro muito bem quando eu estava passando no caminho da roça, caía chuva. Aí eu percebia que ela estava me carregando no pescoço. Aí vinha pensamento da minha vida. Pouco a pouco e fiquei já menino. Ela morreu depois que entrei no colégio” (entrevista recente feita pelo antropólogo Thiago Oliveira).
Feliz percorreu a trajetória de sua geração: estudou no colégio de Pari-Cachoeira, quando esse ainda estava em obras e ele ajudou, como todos os alunos, em sua construção – nesses os missionários católicos concentravam muito poder na região e adotavam práticas educativas rigorosas; depois que completou a sexta série, foi trabalhar na Colômbia, inclusive no caucho (seringa), como muitos outros parentes do Tiquié, onde permaneceu cinco anos; na volta casou-se com Joaquina Machado, tukano de Pari-Cachoeira.
Foi nesse tempo que começou a colaborar com o padre lituano Casimiro Béksta, recém-chegado à região e muito interessado nas narrativas e xamanismo . Em um dos primeiros trabalhos que Feliciano entregou-lhe, preocupado com a dificuldade de expressar certas ideias, resolveu desenhar alguns episódios descritos por seu sogro, velho conhecedor. Assim nasceu sua arte, expressão das narrativas de seu povo e que, mesmo despretensiosamente, revela de forma singular o mundo desana. Esse trabalho de registro dos conhecimentos dos kumua (especialistas nos encantamentos rituais) a pedido do missionário acabou sendo também fonte de aprendizados para Feliciano.
Na década de 80, o garimpo de ouro na serra do Traíra – que pode ser alcançado por trilhas na a partir de afluentes do Tiquié – e o assédio das empresas mineradoras, além da presença militar crescente na região, trouxeram grandes impactos e transtornos para as comunidades do Rio Tiquié. Muitos de seus moradores se viram trabalhando no garimpo ou produzindo farinha para abastecer aqueles que lá se encontravam. O ouro inicialmente farto atraiu muitos comerciantes, que lá chegavam através do agenciamento de regatões (os caixeiros viajantes fluviais), assim como de suas mercadorias.
A primeira vez que encontrei Feliciano, em 1993, ele ainda estava em São João. Eu trabalhava rio acima, com os Tuyuka, mas parei com ele para entregar-lhe um pagamento e pegar alguns desenhos a pedido de Berta Ribeiro. Ela tinha trabalhado nessa comunidade principalmente com Luis Lana e seu pai, tendo inclusive contribuído para a elaboração do de narrativas “Antes o Mundo Não Existia” (cuja primeira edição é de 1980 e, a mais recentes, de 2019).

Mudança para São Gabriel

Feliciano mudou-se para São Gabriel da Cachoeira em meados da década de 1990, e se instalou com sua família no alto da pedra da Fortaleza, sendo os únicos moradores. O local fica bem próximo das ruínas já irreconhecíveis do forte construído pelos portugueses mais de dois séculos antes, em 1763, e que foi estrategicamente posicionado junto a uma garganta em que o Rio Negro se estreita de forma única em todo o seu curso. Justamente por isso, muito tempo antes, como contam as narrativas de origem, esse local foi escolhido pela Gente da Transformação para capturar e matar uma cobra-monstro chamada Diadoe – a cobra traíra, colocando aí um matapi gigante, que Feliciano ilustrou com diferentes nuances.

rs57556 lana1 scr

Gente da transformação esquartejando Diadoe, em pintura de Feliciano Lana

Ele não se cansou de pintar a paisagem vasta e incrível do Rio Negro e suas serras, que se abrem à vista do alto da fortaleza. Sabia o nome de casa montanha – Basebo, Wariró e suas filhas. Dona Joaquina, mais velha que ele, era também conhecedora e muito lhe ensinava.
O tempo passou, Joaquina faleceu, e Feliciano teve que deixar a fortaleza e mudar-se para o Areal, bairro que estava surgindo na periferia da cidade, local mais distante e bem menos agradável. Mas ele resistiu e seguiu pintando e curando, já que era muito procurado por ser também um benzedor reconhecido.
Calmo e generoso, muito aberto a novos desafios e para transmitir seus conhecimentos, produziu uma obra sensível, expressiva da cosmologia dos povos Tukano e quase onipresente nos trabalhos de antropólogos, historiadores e artistas que tratam do Rio Negro. Seus trabalhos estão em instituições diversas como o Museu de Arte de Belém, o Museu da Amazônia e o Museu Britânico, com o qual estava colaborando recentemente.
Toca fazer um inventário de publicações que trazem seus desenhos e pinturas, que deve se aproximar de uma centena, no Brasil e fora, além de exposições e animações.
Feliciano não negava trabalho, abordou todos os temas: da roça, árvores, peixes, artefatos e utensílios, cenas de trabalho, retratos de mulheres e homens em suas atividades, sentimentos e afecções, festas, rituais, elementos citados nos benzimentos. Mas sua predileção era ilustrar as narrativas mitológicas, quando expressava de forma criativa, às vezes cifrada mas ao mesmo tempo singela, conceitos e perspectivas centrais para esses povos.

rs57497 prn 064 020 scr

Feliciano Lana, em foto de 1997, é considerado um dos principais artistas plásticos indígenas do Brasil
Feliciano frequentava assiduamente e mantinha uma relação próxima de colaboração com o Instituto Socioambiental (ISA) em São Gabriel da Cachoeira, onde convivia com as pessoas da equipe e outros parceiros e pesquisadores que aí passam e se hospedam, além de contribuir com suas publicações e desenvolver algumas oficinas de desenho.
Com a anunciada chegada da pandemia ao Alto Rio Negro, ele contou sobre sua preocupação por já ser mais velho e vulnerável, e que iria seguir para o interior, onde tinha seus filhos. Como tem acontecido em São Gabriel, que concentra serviços bancários e comércio, no entanto, muitos demoraram a sair da cidade. Quando surgiram os primeiros casos, já de transmissão local, ficou evidente a gravidade da situação.
Apenas no Areal, Dabaru e Graciliano, bairro vizinhos onde ele vivia, até ontem já haviam 55 casos confirmados, com seis mortos. Ele saiu da cidade com sintomas de , e não mais resistiu em São Francisco, conforme nos chegou a notícia, via radiofonia.

Deixe seu comentário

UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

PARCERIAS

CONTATO

logo xapuri

REVISTA