Políticas Públicas e Povos Indígenas: Uma reflexão necessária
Por: Jairo Lima
Merece reflexão, a meu ver, as chamadas políticas públicas “universais” cegas para a diversidade cultural e social dos povos indígenas no Brasil. Cheguei, inclusive a citá-las, em alguns casos, como exclusivas e preconceituosas. Isso gerou alguns incômodos.
É evidente o benefício das políticas públicas, mas elas ainda pecam por não possuírem espaço para adequações à cultura indígena. Pelo contrário, da maneira que se apresentam, é exigido que as culturas indígenas é que se adequem às exigências da lei, de aplicação universal e de impacto desigual entre indígenas.
Se olharmos com atenção, podemos detectar vários exemplos das dissonâncias dessas políticas para com a sociedade indígena. Nesta semana, reflito sobre o programa Bolsa Família, uma dessas políticas, mas aviso que o assunto não se encerra aqui, pois voltarei a esse tema, no futuro.
Outro dia presenciei grande celeuma entre participantes de um fórum sobre os benefícios ou malefícios do Programa Bolsa Família para os povos indígenas, tendo como ponto de discordância uma reportagem que mostrava os problemas vivenciados pelas comunidades do Xingu e que, a bem da verdade, não se diferenciam muito do que ocorre em relação aos demais povos indígenas no país.
O debate no fórum sobre os benefícios ou malefícios do programa, como o fluxo de famílias indígenas que se deslocam para os centros urbanos, chegou a um nível onde os argumentos deram espaço para ataques pessoais entre os participantes. Ao final, o assunto se esgotou sem que se chegasse a uma reflexão construtiva sobre o tema.
Eu “assisti” àquele debate com certo interesse, até porque, coincidentemente, entre os estudos e pareceres que escrevo tenho me dedicado, especificamente, a um para a Procuradoria Federal de Cruzeiro do Sul, sobre este assunto, atendendo à contestação do povo Ashaninka do Rio Amônia quanto às obrigatoriedades previstas para o acesso ao benefício.
Considero o Bolsa Família um programa interessante, mas infelizmente nele o espaço para adequação à sociedade indígena é ínfimo, resumindo-se, de maneira geral ao processo de adequação para o acesso e etapas de cadastramento para recebimento do benefício mensal. Assim, não há um olhar ou adequação à singularidade de cada povo ou, ao menos, de cada região onde este programa é implantado.
Foto: Andreia Farias
Uma questão que reforça o que exponho acima é a contradição quanto ao entendimento dos conceitos de “extrema pobreza” ou marginalização a que as comunidades indígenas possam estar sujeitas.
Nisso, há de se considerar também a “autoimagem” como parte da estima por si mesmo e para a valorização cultural. Se os conceitos de “marginal” e “extrema pobreza” forem diretamente ligados aos indígenas, isso pode causar danos à sua herança cultural tradicional e, também, à sua identidade. Sem contar a visão com que a sociedade envolvente os vê.
Vários grupos indígenas não se consideram “pobres” por não apresentarem uma renda mensal, pois argumentam que sua riqueza está nos bens que a natureza lhes oferece.
Ao mesmo tempo em que desejam serem inseridos no programa do Governo Federal, muito embora de maneira diferenciada, vivenciam intensamente essa contradição, pois, uma vez que se tornam beneficiários do programa, eles já não apresentam condições de abandoná-lo conforme a expectativa de que a transferência de renda teria um caráter imediato e permitiria, a longo prazo, a inserção do beneficiário no mercado de trabalho, tal como ocorre com a população não-indígena, embora saibamos que esse tema também merece maior investigação.
A tal lógica – a de saída do programa – não se aplica à população indígena. Esta discrepância ocorre porque iguala diversos grupos populacionais com diferentes perfis visando um único caminho, linear, que deveria ser trilhado e construído observando-se as especificidades de cada povo.
Em outras palavras, se a igualdade na condição de pobreza é a “porta de entrada” para o Bolsa-Família, a transformação desses em possíveis trabalhadores, na lógica de mercado de trabalho da sociedade não-indígena, seria a “porta de saída” do programa, expectativa que é frustrada quando se trata da população indígena (e rural, acredita-se).
Assim, ao fazer parte do público beneficiário do programa, as comunidades passam a depender cada vez mais daquela renda que é buscada mensalmente sem que essa relação seja acompanhada de meios que promovam a sua emancipação, de acordo com a realidade do nossos Brasil indígena, que é é um mosaico de diferentes situações e contextos.
Se por um lado temos indígenas no Mato Grosso, como os Guarani-Kaiowá, passando por situações que os impele à vulnerabilidade/ marginalização extrema em decorrência de sua luta fundiária e social, por outro, temos comunidades, como algumas no Acre, que vem desenvolvendo projetos de desenvolvimento comunitário próprios ou apoiadas pelos governos federal e estadual.
Por isso, é importante refletir quanto aos conceitos que permeiam o programa Bolsa Família (e as demais políticas públicas de combate à pobreza), bem como sua aplicabilidade às diferentes situações desse nosso “mosaico indígena”, já que os povos indígenas relacionam-se “entre dois mundos” (indígena e não-indígena).
Creio que temos que ter cuidado com as generalizações, principalmente quando analisamos questões tão complexas quanto o Bolsa Família, pois temos diferentes situações, regiões, populações, etc. O que, por si só, já restringe muito o campo de visão e de análise da situação. O que pode ser bom para as comunidades em algum município do MT ou do PR, pode ser um problema para outras nos rincões amazônicos, como no Acre.
Sem dúvida é possível afirmar que em alguma medida o Programa tem contribuído para a segurança e a sustentabilidade alimentar da população, seja viabilizando a compra direta de alimentos, seja proporcionando as condições para a compra de ferramentas e instrumentos que são/serão utilizados na geração de alimentos (especialmente nos roçados e na pesca).
No entanto, da maneira como está hoje, o acesso ao benefício cria mais uma frente de desafios enfrentados por muitas populações indígenas.
É premente haver mudanças estruturais neste programa, e esse ponto, de certa maneira, já vem sendo observado, conforme citado em um interessante documento intitulado “Estudos Etnográficos sobre o Programa Bolsa Família entre Povos Indígenas”, produzido pela Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação do (no momento extinto) Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
Nesse estudo é citada a necessidade da criação de um subsistema específico para o programa, com regras e procedimentos próprios, e que essa criação ocorra com a participação dos povos indígenas e suas representações.
Infelizmente, na atual conjuntura efervescente da política nacional, não sabemos se esse indicativo ainda está no radar das intenções governamentais, ou jaz esquecida em alguma gaveta ministerial.
Ao analisarmos situações que vem ocorrendo em muitos municípios, principalmente nos localizados na Amazônia, há de se considerar também que o fluxo de indígenas para os centros urbanos não é só por “culpa” do Bolsa Família, que faz com que as famílias se desloquem para as cidades.
Há de se levar em conta outros fatores que, cada vez mais, contribuem para esse deslocamento e, em alguns casos, a permanência das famílias no meio urbano: atendimentos de saúde, resolução de problemas diversos (registro civil, busca por benefícios junto ao INSS, etc). Ou seja, a ausência de políticas públicas adequadas à realidade dos povos indígenas.
Os diversos movimentos indígenas no Brasil nunca deixaram de exigir do Estado e dos órgãos da Administração Pública Federal a adequação, o aperfeiçoamento e a implantação de projetos e políticas específicas, destinadas a assegurar os direitos conquistados pelos povos indígenas nos últimos trinta anos.
Creio profundamente que a garantia de direitos conquistados e a transformação das políticas universais só serão possíveis com uma intervenção política em prol destes povos, temas esses que não vemos pautadas pelos representantes nas diferentes casas legislativas no país.
Ao contrário, uma lida rápida nas pautas semanais do Congresso Nacional faz com que sintamos um arrepio na nuca ou um frio na barriga, pois se constatam os movimentos diretos ou indiretos da politicalha nacional, que buscam solapar o pouco que se conquistou desde a promulgação da Carta Magna de 1988.
Jairo Lima é pedagogo, radicado no Vale do Juruá, Acre. Jairo publica crônicas semanais sobre questões indígenas e sociais em seu site: http://cronicasindigenistas.blogspot.com.br
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