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A cura pelas mãos do kumuã (pajé)

A cura pelas mãos do kumuã (pajé)

Centro de Medicina Indígena de Manaus já atendeu mais de duas mil pessoas que buscam de consultas espirituais a curas para doenças graves

LIEGE ALBUQUERQUE

A consulta é olho no olho. A conversa é longa e passa sempre sobre como é o dia a dia do paciente: o que ele faz, o que ele come, como tem lidado com suas emoções. O kumuã (pajé) que está atendendo de segunda a sexta no Bahserikowi’i Centro de Medicina Indígena de Manaus é Manuel Lima, da etnia tuiuca, e impressionou, desde a primeira consulta, o estudante Domingos Sávio da Silva Matos, de 15 anos. Um garoto ainda, mas que já esteve em coma por conta de pressão alta. “A maioria dos médicos que tenho ido desde os 12 anos nem olha direito para a gente”, conta Domingos. “O pajé tocou na minha cabeça para o benzimento e já me deu uma paz”.

Domingos está em tratamento há três semanas, diz que se sente melhor, cortou as “besteiras” que comia por determinação do pajé e tem ido ao Centro Médico duas vezes por semana. Mas só na última consulta, na sexta-feira (11/10), saiu com um medicamento, um pó feito de plantas amazônicas. A consulta é R$ 50 e o medicamento custou R$ 40. O pajé não pediu que o estudante parasse de tomar  qualquer medicamento alopático, mas que melhorasse sua alimentação e controlasse mais suas emoções.

Em dois anos e seis meses de funcionamento em Manaus, numa casinha simpática do século 19 no Marco Zero da capital amazonense, a rua Bernardo Ramos, foram mais de 2,5 mil atendimentos olho no olho como o de Domingos Sávio. Os pajés vêm de suas aldeias para temporadas de  atendimentos em Manaus: três se revezam. São viagens longas, de dias de avião e barco, porque todos vivem na região do Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira, município a 852 quilômetros de Manaus, com 95% de população indígena.

Segundo o idealizador e coordenador do Centro de Medicina Indígena, o antropólogo João Paulo Lima Barreto, da etnia tucano, a grande maioria dos atendimentos é de pessoas de outros estados: cerca de 70% ficam conhecendo o lugar através da página no Facebook e vem a Manaus, sem sequer marcar consultas. De fora do país, a procura é menor, concentrada em pacientes da Europa e Japão. Muitos medicamentos de uso contínuo são preparados depois da consulta e enviados pelos Correios.

Mulheres de 30 a 60 anos são cerca de 90% dos pacientes pacientes que procuram o Bahserikowi’i – e quase todos são não indígenas.  “Há desde consultas espirituais, pessoas em busca de mais paz, quanto casos graves de câncer, onde o paciente é aconselhado a continuar seus tratamentos da medicina não indígena, que não se deixe levar ao desespero de abandonar o que o está ajudando, mas agregar com o tratamento de bahsese (benzimentos)”, conta João Paulo.

Os bahsese, segundo o antropólogo, são a base da crença e da medicina indígena. “Diferente da medicina dos brancos, a nossa é de prevenção e raramente de tratamento. Os não indígenas, que são a maioria dos que vêm em busca de tratamento no Bahserikowi’i, estão sempre em busca de cura, sempre deixam a doença chegar”, destaca João Paulo.

Manuel Lima no Centro de Medicina Indígena de Manaus: para pajé da etnia tucuia, medicalização dos brancos está transformando a todos - indígenas e não indígenas - em dependentes químicos (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Manuel Lima no Centro de Medicina Indígena de Manaus: para pajé da etnia Tucuna, medicalização dos brancos está transformando a todos – indígenas e não indígenas – em dependentes químicos (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Para o pajé Manuel, de fala baixa e gestos lentos e firmes, a medicalização dos brancos está transformando a todos – indígenas e não indígenas – em dependentes químicos. “Essa nossa filosofia de prevenção e não curativa tem sido desvirtuada pelo tratamento apresentado aos indígenas, sem ouvir nossas crenças, pelo Ministério da Saúde há anos, nessa cultura da aspirina”, argumenta João Paulo Lima Barreto. “Quando saí de São Gabriel da Cachoeira para estudar em Manaus, há 15 anos, não tinha casos de diabetes, hipertensão ou suicídios entre os indígenas do Alto Rio Negro. Hoje já existem todos esses males”.

Um avanço nessa tentativa de manter aos indígenas que moram na área urbana da capital amazonense o tratamento tradicional indígena fora de suas aldeias foi o de, desde o início deste ano, todas as sextas, um pajé atender em parceria do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) com a Casa de Saúde Indígena (Casai) do quilômetro 25 da AM 010 (Manaus-Itacoatiara).

Segundo João Paulo, raramente há pajés mulheres. Ano passado, morreu aos 65 anos, em Iranduba, município vizinho a Manaus, a pajé Baku, da etnia sateré-mawé. “Há uma crença indígena que a mulher não pode atender quando está menstruada, o que provoca uma pausa nos atendimentos, talvez por isso não seja comum que mulheres sejam pajés”, diz. Os indígenas acreditam que se a pajé atender durante a menstruação pode “panemar” a pessoa atendida, ou fazer que a pessoa piore da doença, fique sem energia e força.

Ainda segundo o antropólogo, a formação dos pajés normalmente começa na adolescência, e há muitos protocolos a seguir, como abstinência sexual por alguns períodos e a restrição na dieta de vários alimentos e bebidas. “É um trabalho da vida toda para evocar esse poder de trazer à tona as substâncias curativas dos vegetais e minerais”.

Escrito por Liege Albuquerque

Liege Albuquerque é jornalista e mestre em Ciências Políticas (USP). É professora de jornalismo e publicidade na Uninorte/Laureate em Manaus, de onde faz freelances para diversos veículos. Foi repórter e editora de cidades e política em jornais como A Crítica, Amazonas em Tempo e Diário do Amazonas (em Manaus), Folha de S. Paulo e Veja (em São Paulo), O Globo e O Estado de S. Paulo (em Brasília). Trabalhou por oito anos como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo no Amazonas. É autora de dois livros infantis e tem um blog sobre maternidade com outras jornalistas:o maescricri.

Fonte: Projeto Colabora

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