Rádios comunitárias

Rádios comunitárias: extinção sumária para silenciar um povo quase sem voz

Querem calar de vez um povo quase sem voz

”As rádios comunitárias são importantes instrumentos de mobilização e de trocas na comunidade. Por serem abertas à participação popular, são atores democráticos e democratizantes”, diz Pedro Martins Coelho sobre a extinção súbita, ao apagar das luzes de 2018, pelo governo Temer/Kassab, de 130 emissoras comunitárias

Por Léa Aarão Reis/ Carta Maior
Das quatro mil e 756 rádios comunitárias da rede brasileira, espalhadas pelo território nacional, 130 foram cassadas por decreto, sem discussão com a sociedade nem com justificativas, no último dia de 2018. O Conselheiro Político da Associação Mundial de Rádios Comunitárias, AMARC/Brasil, o jornalista e pesquisador do assunto, Pedro Martins Coelho, rompe o silêncio da mídia e do governo atual sobre o grave assunto e mostra o significado das comunitárias para milhões de cidadãos.

Ele comenta também as manobras traiçoeiras que, ao que tudo indica, têm por objetivo enfraquecer a existência e a atuação da rede dessas rádios, a qual, pela extraordinária capilaridade no país, tende a ser um alvo da apropriação de grupos político-partidários associados ao novo (des)governo e, em especial, dos neopentecostais da bancada evangélica em Brasília.

Na conversa com Carta Maior Pedro Martins Coelho levanta e comenta questões preocupantes. Por que há nove anos não há avisos de habilitação de novas rádios? O objetivo é o de fechá-las? Por que o tratamento (privilegiado) concedido às redes comerciais pela Anatel não contempla as comunitárias? E qual o interesse obscuro da agência em sufocar essas emissoras? Entregá-las ao partido político atualmente no poder? Torná-las instrumento de proselitismo religioso?

Carta Maior – As 130 rádios comunitárias extintas por decreto, para as quais não está havendo renovação de outorga, estão disseminadas por quais regiões?

Pedro Martins Coelho – Tivemos rádios fechadas em praticamente todas as regiões. O número maior aparece nos estados do nordeste. Também há muitos fechamentos em São Paulo, em geral rádios do interior. A imensa maioria não está localizada em grandes cidades. Neste link é possível ver a publicação do diário oficial com as rádios fechadas:

https://www.jusbrasil.com.br/diarios/223178454/dou-secao-1-31-12-2018-pg-13?ref=goto

CM – Quais as providências legais da Abraço, a Associação Brasileira de Rádio Comunitária, e da Amarc a esse fechamento arbitrário e inesperado, sem abrir uma discussão, um chamamento à sociedade, e considerando o vazio da política nacional em todo início de ano?

PMC – A Amarc já está fazendo um levantamento em parceria com a Artigo 19, a ONG de Direitos Humanos criada em Londres há mais de trinta anos, para, neste primeiro momento, avaliar todos os casos de extinção das rádios e analisar as motivações que levaram aos fechamentos. Ou seja, primeiro queremos ter clareza dos motivos alegados pelo Ministério para definir nossa atuação. O fato causou grande estranheza por ter se concretizado no último dia do ano e pelo número de rádios fechadas.

CM – Você diria que há um movimento que pretende sufocar a existência e o funcionamento das comunitárias como elas são hoje?

PMC – Com a liberação do proselitismo religioso e político-partidário, parece que sufocar as rádios comunitárias virá com uma máscara, implementando uma apropriação do que sempre foi um ponto de resistência e construção democrática para afirmar um protofascista e antidemocrático.

CM – Por que desde 2010, os pedidos de avisos de habilitação (inclusive no Rio de Janeiro) de 256 emissoras não andam?

PMC – Ainda tivemos avisos de habilitação depois de 2010. O último para a cidade do Rio foi em 2010. Em 2016, pouco antes do Golpe, o governo Dilma lançou um plano que previa avisos de habilitação para 256 cidades, entre elas o Rio de Janeiro. O mesmo foi engavetado por Temer. O atual Ministério da Tecnologia, Inovações e Comunicações, o MCTIC, alega que não há interesse das comunidades nos avisos. O baixo número de inscritos não revela que as pessoas não querem se comunicar, mas tem grande relação com a falta de políticas públicas. Assim como Darcy Ribeiro falava sobre a , a crise das rádios comunitárias faz parte de um projeto de poder.

CM – O processo de renovação de outorga das rádios, no entanto, vem desde quando?

PMC – Desde 2010 as rádios vêm passando por renovações de outorga e nunca vimos a extinção de um número tão grande das mesmas de uma vez só. No atual cenário de enfraquecimento de nossa é muito preocupante o que aconteceu.

CM – Uma coisa que você ressalta, em entrevista sobre o assunto, e com toda razão, é o fato de se querer extinguir as rádios sem debate público.

PMC – O Ministério, o MITMIC, antes de qualquer coisa, deveria ser promotor do direito à comunicação e não um mero escritório burocrático. Fechar 130 rádios ligadas a 130 comunidades significa calar a voz de diversos atores sociais e dificultar sua organização enquanto ativa. Isso não pode ser visto como normal. O Ministério deveria buscar diálogo para analisar formas de incentivar e fortalecer as rádios comunitárias, ver suas demandas e pesquisar o porquê de, ultimamente, serem poucas inscrições sempre que é aberto um aviso de habilitação.

CM – E considerando também, Pedro, que o tratamento dado às emissoras comerciais é bem diferente.

PMC – Sim. É preciso reforçar que esse tipo de tratamento não é dado ao setor empresarial. Quando as rádios AMs passaram pela sua crise, no passado, ampliaram a banda FM para salvar os negócios daquelas emissoras. E, agora, o novo ministro já falou que quer dialogar mais e multar menos as empresas de telecomunicação. Queremos que as rádios comunitárias sejam tratadas como o que são: uma peça fundamental para a democratização da comunicação e por conseqüência, de toda a sociedade.

CM – Como você pode esclarecer para as populações urbanas, para os que vivem nas grandes cidades e não têm familiaridade sobre o funcionamento de uma rádio comunitária, o significado da rede para as comunidades?

PMC – Uma rádio comunitária é, a princípio, um veículo escolhido por determinada comunidade para se expressar. Esse veículo ajuda a organização da comunidade, oferece informação e dá voz a novos atores em nossa sociedade. Cada rádio comunitária deve ter seu modelo de organização e zelar para que sua construção seja feita pela própria comunidade em um processo orgânico que fortaleça a mesma.

CM – Em outros países, como essa rede funciona?

PMC – Nós da Amarc/Brasil, temos uma visão que vem de boas experiências ao redor do mundo e vê a comunidade como comunidade de interesse, não precisando necessariamente ser delimitada por um território. Nesse sentido, defendemos que o alcance e a potência das rádios sejam definidos no diálogo acerca da necessidade de quem requer a outorga.

CM – E o que diz a legislação brasileira?

PMC – Infelizmente, a lei brasileira é extremamente restritiva e define comunidade somente pelo caráter territorial. As rádios devem ter 25 watts de potência (internacionalmente isso sequer é considerado como baixa potência, mas como baixíssima potência) e um quilômetro de raio de alcance. Isso restringe bastante a atuação das rádios que são atores políticos importantes na organização das comunidades.

CM – A questão de interferência eventual de sinais é recorrente. Como é isto?

PMC – A lei fala somente que se a rádio comunitária causar interferências será punida, mas nada sobre o caso de ela sofrer interferências. É um absurdo completo e mostra a prioridade do

Estado Brasileiro.

CM – Qual é a importância de uma comunitária na vida cotidiana de populações mais ou menos distantes dos grandes e médios centros?

PMC – Em primeiro lugar, as rádios são um importante instrumento de mobilização e de trocas na comunidade. Por serem abertas à participação popular, são atores democráticos e democratizantes. Em localidades longe dos centros urbanos elas ganham muito protagonismo pela identificação que criam com as

comunidades e por dar coesão a esses grupos que passam a se sentir representados no dial. As rádios costumam ser importantes também na construção cultural desses espaços, dialogando com as raízes de onde se localizam.

CM – E em situações de calamidades públicas? Como elas atuam?

PMC – Há exemplos interessantes de atuação, sim. Como o da Rádio Comunidade de Nova Friburgo, que durante a tempestade que devastou a cidade, em 2010, foi fundamental para que as pessoas pudessem encontrar parentes desaparecidos. As rádios são atores sociais que cumprem os papéis mais diversos na medida do possível, sempre com um diálogo que flui da mobilização social.

CM – É grande a capilaridade (política inclusive) das comunitárias. É por isto que o novo governo está querendo intervir no funcionamento atual dessa rede tão importante que pode ser, num movimento desvirtuado, instrumento de proselitismo religioso e doutrinação de evangélicos além de transformá-las em agentes político-partidários?

PMC – É importante ressaltar que a decisão de liberar o proselitismo religioso e político-partidário nas rádios comunitárias foi uma decisão do Supremo Tribunal Federal sob a alegação de que a proibição seria contra a de expressão. Um total absurdo, pois a premissa para proibir proselitismos é a de que as rádios sejam veículos que acolham a e a pluralidade que cada comunidade possui. Quando você permite este tipo de prática nas rádios está determinando, por exemplo, que quem tiver religião diferente daquela rádio não poderá participar. Quando escolhemos o critério de comunidade como sendo vinculado ao território de ação da rádio, seria importante que ela fosse acolhedora a todos

e todas daquelas comunidade.

CM – E mais um motivo de preocupação advém da relação preferencial assumida pelo atual governo com as igrejas neopentecostais.

PMC – Na atual conjuntura de avanço das igrejas neopentecostais com relações espúrias com o atual grupo que governa o país, a situação fica ainda mais preocupante, sim. Para se ter ideia, depois dessa decisão, tramita no Congresso Nacional um projeto que prevê mais um canal para operação das comunitárias e o aumento da potência das rádios de 25 para 150 watts. O projeto original previa 300 watts. Se pensarmos que em 2012 um projeto que previa 100 watts de potência foi vetado, vamos somando pontos que nos levam a conclusões preocupantes. O que seria um avanço com aumento de mais um canal e da potência parece estar dentro de um projeto de apropriação das rádios comunitárias do país por setores neopentecostais.

CM – Qual a programação das rádios, de modo geral? Qual o alcance no espectro?

PMC – Ela varia de acordo com a comunidade. Em geral, a programação dialoga com a realidade local. Atualmente, é destinado apenas um canal da banda FM para as rádios comunitárias que varia de acordo com a região. O alcance previsto pela lei 9.612 é de um quilômetro de raio.

CM – E por que a legislação restringe a programação de publicidade nas comunitárias? Qual o motivo alegado?

PMC – O motivo alegado é que as rádios são sem fins lucrativos. Mas elas não precisam ter fins de miséria. O ideal seria que, por ser sem fins lucrativos, pudessem arrecadar e reinvestir em melhorias nas rádios e no pagamento de contas. Ou alguém acha que rádio comunitária não paga luz, não precisa de manutenção dos equipamentos etc?

CM – E a razão real?

PMC – A razão real é que se trata de um projeto para que as rádios comunitárias tenham a maior dificuldade de se desenvolver e “não atrapalhem” a vida das comerciais. Ou seja, uma forma de limitar o acesso ao direito à comunicação desse setor social. Se elas têm uma outorga, deveriam ter os mesmos direitos que as demais rádios.

CM – Mas há um projeto que pretende ampliar a potência das rádios.

PMC – Sim. Em 2012 foi apresentado um projeto que poderia aumentar a potência das rádios para 100 watts. A Abert fez um lobby fortíssimo após o mesmo ser aprovado em primeira discussão na Câmara. Aí, foi rejeitado no Senado e na segunda discussão na Câmara. Agora, vem um projeto que aumenta para dois canais e a potência vai para 150 watts. Isto, logo depois de o STF aprovar a liberação do proselitismo. Diante do alto grau de interferência do STF nos rumos políticos do país nos últimos anos, é muito difícil não ficar preocupado com o que se apresenta.

CM – Há exemplos práticos da diferença de tratamento dado pela Anatel às emissoras comerciais – privilégios, por exemplo. Não se aplica multa quando há infrações e elas são muitas. O que a legislação diz sobre o papel policial desse órgão que tem até o poder de fechar emissora comunitária?

PMC – A Anatel é a única agência reguladora com poder de polícia e esse poder é utilizado somente contra as rádios comunitárias. Não se vê batidas da Anatel em grandes rádios comerciais ou em operadoras de telecomunicação. Ela claramente atende interesses do setor empresarial e da garantia de seus negócios. O Ministério que inclui as comunicações já declarou esse ano que não deseja praticar mais tantas multas para as operadoras de Tele, e anuncia querer ampliar o diálogo com o setor. Nunca vimos tal declaração para as rádios comunitárias. Nas rádios comunitárias é a política do pé na porta seja qual for a irregularidade (e com uma lei que restringe direitos não é difícil cometer algum erro); para os grandes empresários é o diálogo para ajustar as normas aos seus modelos de negócio.

CM – Por que as rádios têm dificuldade de se apresentarem inteiramente legalizadas, de cumprir a burocracia que devem cumprir e a papelada que deve estar sempre em dia etc.?

PMC – A dificuldade é que o processo de uma rádio geralmente tramita em Brasília. Até 2015 eram necessários 33 documentos. Uma portaria reduziu para sete. Foi um avanço. Mas, como geralmente elas possuem dificuldades financeiras, fica muito difícil fazer o acompanhamento do processo. A não ser as que possuem “padrinhos” em Brasília…

CM – Quer nos enviar o link de uma rádio em ação para o leitor poder acompanhar o trabalho de uma delas?

PMC – http://www.independenciafm.com.br/ A Rádio Independência fica na cidade de Independência, no interior do Ceará e possui um trabalho bem interessante e com bastante mobilização na comunidade.

CM – É como se houvesse uma visão hegemônica de que as comunitárias devem permanecer ”pobres, poucas e de pequeno alcance. ” O que há por detrás dessa visão?

PMC – Pobre porque não podem conseguir recursos via publicidade. Poucas porque têm somente um canal na banda FM e pequenas porque a visão da lei é que comunidade é algo que tem somente um quilômetro de raio. Por trás dessa visão é implementado um projeto de limitação das vozes que são fruto de organização social e não possuem os fins determinados pelo capital.

ANOTE AÍ

Fonte: Carta Maior

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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