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E o Rapé, o assunto do momento, hein?

E o Rapé, hein?: O assunto do momento? Eu tenho outros…

Por Jairo Lima

A secura desse verão amazônico tá de um jeito que o velho Juruá está com poucos metros de profundidade, enquanto seu ‘irmão’ da capital, o rio Acre, em breve ficará com menos de um metro…

Eu aqui passando mal com a falta de umidade fiquei matutando sobre três assuntos, que não são congruentes em sua totalidade, mas, que na essência, tem muito a ver um com o outro: rapé; 2a Conferência Indígena da Ayahuasca e; meu irmão querendo um ‘desenho’ pra fazer uma tattoo…

Sobre o rapé, assunto que escrevi bastante há uns dois anos atrás, a novidade foi que um grupo de txais buscaram o Ministério Público para denunciarem a banalização do uso e comércio do rapé indígena, pedindo apoio das autoridades para regulamentar e/ou criar mecanismos de proteção ao uso tradicional, pois, segundo os denunciantes, estão misturando o rapé com álcool e drogas, bem como o mesmo está sendo usado de maneira abusiva… etc etc….

Claro que sem muitas chances de dar algum resultado, mas, ao menos, vale a intenção pôr o assunto de volta ‘na roda’, ao mesmo tempo que traz para o papo as instituições do poder estatal.

Ora, que estão ocorrendo abusos isso não é novidade, e, infelizmente, não é só entre os dawa (não-índios) não. Tem muitos txais indígenas que vem esquecendo os cuidados com seu uso.

Como já escrevi sobre esse assunto, abordando algumas nuances sobre os cuidados com seu uso e, também, os exageros prejudiciais que podem lascar a saúde material e desequilibrar o yuxibu (espírito) das pessoas. Por isso, foco o papo de mais para pontuar umas questões bem interessantes, e que, certamente, não deve ser de conhecimento de muitos por ai, nesse mundão doido, que tem conhecimento disso:

Em primeiro lugar é preciso entender que esse boom de uso do rapé tanto nas comunidades como, também, pelos dawa só veio a acontecer há cerca de uns doze ou quinze anos. Pois é… os que já navegam nesses rios acreanos há mais de quinze anos sabe do que estou falando. Era a coisa mais rara topar com alguém usando rapé, mesmo nas aldeias, exceto em momentos específicos de rituais ou de alguma necessidade de limpeza.

Como esse costume caiu nas graças da galera eu não sei dizer, certamente deve ser uma história bem interessante que, com certeza, deve ter se iniciado com o aumento exponencial de dawa visitando as aldeias e, no contrafluxo, de indígenas indo para os centros urbanos realizar rituais e demais vivências, levando consigo, além da ayahuasca e do kambô, o rapé. Com certeza deve ser uma história interessante… vou pesquisar.

Certamente que este é um importante produto da ‘farmácia’ indígena, no trato das chagas do corpo e do espírito. No entanto, hoje, é inegável que o rapé virou ganha-pão de muita gente, seja índio, seja dawa.
Infelizmente, alguns menos esclarecidos – e outros que são charlatões mesmo – na busca de mercado, tem criado todo o tipo de ‘pirueta’ possível, seja no experimento de receitas de preparo, seja na ‘sacralização’ tanto do uso quanto do preparo do mesmo.

Estes dois movimentos, novas receitas e sacralização, pintam de ouro algo que, na verdade, é feito de latão. Explico: pra começar, se fosse pra usar a coisa ‘tradicional’ mesmo, teria que para de usar o tabaco que é adquirido nos mercados nas cidades, trocando-o pelas ervas utilizadas antes do contato com os colonizadores.

E digo pra vocês que, caso fosse assim, o número de usuários seria bem pequeno, Noutro canto dessa tábua tem a coisa da sacralização, com a criação de ‘feitios’ de rapé, onde evoca-se toda uma mística ritualística para prepará-lo e, ultimamente, esses tais ‘feitios’ que venho observando, ao menos aqui pelas redondezas, quando feitos pelos dawa ou, pior, para os dawa verem é, sem dúvida, um ótimo exemplo de como não fazer a coisa.

É incrível como o ser humano tem essa necessidade doentia de complicar ou adulterar as coisas mais simples da vida, só para dar sentido às fantasias e ‘viagens’ que passam por sua cabeça. Mas… beleza… o mote é entender que cada um tem o seu sagrado, então, certamente, os que já pegaram a pedra para jogar em mim devem ter toda uma teoria bem pirada para explicar essas coisas todas que eu refutei.

A questão é que já se perdeu o controle sobre a coisa toda. Grande parte do uso do rapé já se tornou vício mesmo, igual a fumar um cigarro ou, nos piores casos (acreditem) igual ao uso de outros tipos de ‘pozinhos’ por aí.

Já disse que o aumento da demanda é que dá vida ao mercado e ao uso indiscriminado das chamadas ‘medicinas’ indígenas. Assim, querer que os que o usam indiscriminadamente parem, seja por proibição de uma Lei (o que não ocorrerá, acreditem), seja por uma questão de respeito pela coisa é, grosso modo, uma utopia impossível de alcançar.  A começar que isso afetaria bastante o acesso a renda nas comunidades, sendo que, para muitos, esse mercado é o principal meio de acesso a recursos financeiros.

Que é preciso ter cuidado, isso é lógico. Que é preciso respeito, isso também, é lógico. Que é preciso ter educação, isso também, é lógico.

Pra encerrar esse assunto, digo pra vocês que acho bem nojento ver aqueles que o usam compulsivamente, principalmente quando em salas fechadas, e ficam expelindo aquele muco todo, sujando-se, ou gastando rolos de papel no lixo, que, por sua vez fica com um cheiro horrível… enfim.

O outro ponto, sobre a conferência indígena da ayahuasca, fico observando alguns movimentos de pessoas e grupos que, de uma hora para outra, descobriram que esse evento é algo importante de estar presente. Claro que me refiro aos dawa ‘dotor’, ou outros que acham ser esse encontro uma espécie de festival onde podem curtir com os txais o momento.

Eu mesmo me vi passando por uma espécie de ‘cerco a Lourenço’ (a Dedê Maia me ensinou essa), devido estar participando do grupo de organização do evento.

A questão dessa conferência ser algo importante para a reflexão e debate de assuntos importantes e atuais, tanto para os povos indígenas quanto para as instituições e parceiros que orbitam em torno das comunidades isso é claro.

O problema é quando a coisa cresce de um jeito que ‘aparece no radar’ de interesses daqueles que vêem a coisa toda como uma oportunidade de pôr sobre si holofotes, como bem disse o txai Ibã: viver no brilho…  – Tô fora disso e, de minha parte, quero distância de gente assim.

Por último, tem o caso do meu irmão me pedir um ‘desenho’ pra ele fazer uma tattoo. Com certeza ele deve estar se referindo a um ‘kene’ indígena, pois, como não sei desenhar nada além de um sol meio torto, certamente ele não deve estar querendo que eu faça algo pra ele.

Tô aqui pensando em como vou lhe explicar que os ‘kene’ são coisas sérias, principalmente quando o pintamos no corpo. São expressões mágicas de seres (yuxibus) encantados em animais, plantas e astros, de maneira que, raras exceções, os indígenas não usam de forma perene.

Os diferentes kene usados seja no dia-a-dia, sejam nos momentos ritualísticos ou de festas, representam o estado de espírito ‘do momento’, de quem o está usando e, por conseguinte, as forças que este está ‘chamando’ para si, para seu corpo.

Assim, com certeza, não parece ser algo muito bom, ou prudente, fixar permanentemente um kene, a menos que saiba seu significado mágico (e cultural)  e tenha-se certeza de querer perpetuar consigo essa energia. Eu mesmo não tenho um kene  tatuado, pois, ainda não alcancei o conhecimento necessário para decidir qual usar.

Sendo assim, não tenho como mandar um ‘desenho’ para ele.

É isso…

Mas, o que estes três assuntos têm em comum, apesar de serem tão diferentes?

Eles têm em comum o fato de que coisas que, a priori, é ‘papo de índio’ ou, que são, em sua essência, de ‘interesse’ dos povos indígenas aqui no Acre Indígena, transformaram-se em uma espécie de fetiche de uso comum e que, como todos os ‘gostos de massa’, só servem para ‘papagaiar’ a coisa toda…

Bem, como meu irmão é um dos poucos que leem meus textos, sei que ao menos um dos pontos que tratei na crônica de hoje já está devidamente esclarecido… ele não deve estar muito feliz, mas, certamente daqui há uns dois meses ele volta a me dar um ‘oi’…

Jairo Lima é indigenista, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua há mais de vinte anos junto aos povos indígenas do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, na região do Juruá, Acre.

Todas as imagens utilizadas neste texto são de autoria da artista visual Delfina Muñoz de Toro. Matéria publicada originalmente em junho de 2018. 

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