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Samba-Enredo: A Literatura Rebelde

Samba-Enredo: A Literatura Rebelde

O samba-enredo é parte de um gênero musical (o samba), é cultura, é história, é folclore e é especialmente literatura. Como peça literária, nos 65 a 82 minutos de duração que precisa ter, em muitos casos narra a História do Brasil e traça perfis de seus personagens, sempre com alguma mensagem além dos fatos que descreve.

Por Jaime Sautchuk

O samba é um gênero musical bastante novo, já que nasceu nas quebradas do Rio de Janeiro no início do século XX, o século passado, pois. E o samba-enredo é ainda mais recente, de meados da década de 1.940, também no Rio, como forma de preencher musicalmente os desfiles das escolas na avenida – ou no Sambódromo, como sugere a modernidade.

Antes disso, as escolas desfilavam ao som de músicas variadas, que nada tinham a ver com o tema do desfile. Hoje não, há regras bem definidas pra todos os aspectos do desfile. Cada agremiação define o tema do seu desfile e escolhe uma música que fala daquele enredo, montando uma história em torno dele, em versos e rimas, no formato de samba-enredo.

Martinho Filho, filho do sambista, grande compositor Martinho da Vila (Isabel), conta que, quando eram crianças, ele e suas irmãs causavam furor nos colégios que frequentavam, pelo tanto que sabiam de disciplinas como História e Geografia.  Esse conhecimento vinha dos sambas-enredo que decoravam ou liam com atenção, no caso de serem de outras escolas, em cada período de Carnaval.

“Os professores chegavam a desconfiar de nós três que sempre dávamos as mesmas respostas às questões… graças aos maravilhosos sambas-enredo que compunham o antológico LP chamado Samba-Enredo, que meu pai havia organizado, em 1980”, conta ele. E arremata: “Em 2008, já adulto, regravamos os sambas pela gravadora Biscoito Fino, convidando grandes intérpretes da música brasileira para regravá-las e revivê-las, com uma cartilha para acompanhar o CD”.

O desfile deve seguir algumas regras, que definem os itens a serem apresentados e o formato em que isso deve ocorrer. O casal de mestre-sala e porta-bandeira, por exemplo, é avaliado de acordo com especificações rígidas.

O mestre-sala não deve ficar de costas para sua companheira, rodopiando ao seu redor, como se a estivesse protegendo. Ela não pode, em hipótese alguma, deixar que a bandeira se enrole. A apresentação dura, em média, dois minutos e meio. Mas o quesito não tem tempo determinado.

Todo ano, fatos históricos se misturam com temas da atualidade, especialmente aqueles que são vitimas de má vontade da mídia e são pouco divulgados. Em recente artigo no jornal O Estado de S. Paulo, o escritor Luis Fernando Veríssimo se lembra da ex-vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ). Vejamos um trecho:

Vem aí outro carnaval, trazendo lembranças de outros carnavais, que trazem lembranças de outros, que lembram outros que, por sua vez, lembram outros, e assim por diante – ou para trás, até o primeiro tamborim. O carnaval deste ano vem carregado de memórias especiais, e não foi preciso ir muito longe para evocá-las.

Basta lembrar a Mangueira do ano passado, a Mangueira do belo samba-enredo História para Ninar Gente Grande, da Manu da Cuíca e do Luiz Carlos Máximo, e do inesquecível clipe do samba gravado para a TV pela Cacá Nascimento.

A Mangueira política, a Mangueira campeã. O começo – imaginaria você – de um levante, ou coisa parecida, contra o esquecimento que ameaçava apagar a Marielle Franco da memória nacional, não como um estorvo, mas como alguém que nunca existiu. 

O samba-enredo da Mangueira de 2019 citava Marielle entre outras guerreiras brasileiras, mas uma das alas do desfile incluía grandes retratos dela, aplaudidos pelo público.

Não se espera que uma escola de samba tenha o poder de denunciar assassinos e cobrar justiça a céu aberto, mesmo com um samba empolgante, mas o que desfilou na avenida aquele dia foi a ausência da Marielle, ao som de “Marielle presente” gritado da arquibancada. A ausência-presente de Marielle já dura muito. Dura desde o outro carnaval! 

Quem matou Marielle? Quem mandou matar Marielle? Doutor Moro, é com você. Como vai a investigação sobre a morte de Marielle? Alguém sabe? Alguém se interessa em saber? Não é uma vergonha para a nação esse grande silêncio em meio à batucada?

GRAVAÇÕES

O primeiro samba-enredo gravado foi “Exaltação a Tiradentes”, de Fernando Barbosa Júnior e Mano Décio da Viola, Estanislau Silva e Penteado, pelo cantor Roberto Silva, com o título reduzido para simplesmente “Tiradentes”, para o Carnaval de 1955, mas obteve pouca repercussão. O samba tinha sido apresentadooriginalmentepela Império Serrano, em 1949.

Em 1967, o samba-enredo da Mangueira “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato” fez sucesso no Brasil inteiro, em gravação de Eliana Pittman. Essa peça estimulou o lançamento do primeiro álbum de sambas-enredo, que reunia todos os sambas do ano, em 1968, intitulado “Festival do Samba”.

A vida imaginária dos personagens infanto-juvenil criados por Monteiro Lobato, que era de Taubaté, em São Paulo, em meio a temas de interesse nacional pelos quais o autor lutava, como o do “Petróleo é Nosso”, ganhou força com o desfile. A criação da Petrobrás também.

Até 1947, as escolas de samba cantavam dois ou três sambas durante o desfile,que não faziam alusão ao enredo. Eram compostos de um refrão,elaborado com antecedência, e, durante o desfile, eram feitas improvisações que davam volume a essas composições.

Em 1946, a instituição que, à época, organizava os desfiles das escolas de samba, proibiu a improvisação, exigindo que todas usassem o samba-enredo, baseado no tema daquele ano.

Ficou famoso neste ano o caso da escola de samba Prazer da Serrinha, que havia ensaiado o samba-enredo “Conferência de São Francisco” (de Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola).No momento do desfile, porém, acabou por apresentar um samba de terreiro, o que levou a escola a uma má colocação e precipitou o surgimento da dissidência Império Serrano, no ano seguinte.

Anualmente, as escolas de samba  promovem concursos internos, em que várias músicas são apresentadas ao público em suas quadras. Ao final, normalmente entre os meses de setembro e outubro, uma delas é escolhida como samba-enredo oficial do Carnaval do ano seguinte.

Algumas vezes, opta-se por fundir dois ou mais sambas-enredo que sejam do agrado dos membros da escola.O samba campeão embala a escola durante a fase de preparação, ensaios técnicos até ser apresentado no desfile de Carnaval.

O samba-enredo é um dos quesitos avaliados no julgamento dos desfiles das escolas. A evolução da escola depende bastante do andamento do samba e seu desenrolar na avenida. Algumas escolas preferem o samba mais calmo; outras, muito agitado; ou, ainda, mais romântico.

Tudo depende de seu estilo de desfile, que pode mudar de um ano pro outro. Escolas de Samba que tradicionalmente se apresentam com uma quantidade muito grande de componentes, em geral usam uma batida mais rápida, que é uma forma de acelerar o movimento dos foliões na avenida e manter a harmonia do conjunto.

SAMBA

 O samba é um gênero musical e dança com origem na cidade do Rio de Janeiro. A gravação da música “Pelo Telefone”, de 1916, é considerada o seu marco fundador.

O samba deriva de um folguedo com notável influência africana que emergiu na Bahia, o samba de roda. Este, por sua vez, guarda semelhanças com o coco, dança de roda mais antiga surgida na então Capitania de Pernambuco, com influência dos batuques africanos e dos bailados indígenas.

Apesar de ser, enquanto gênero musical, resultante de estruturas musicais europeias e africanas, foi com os símbolos da cultura negra brasileira que o samba se alastrou pelo território nacional, tornando-se uma das principais manifestações culturais populares do País.

Embora houvesse variadas expressões folclóricas no Brasil que se originaram do batuque (no Maranhão, em Pernambuco, na Bahia, em Minas Gerais e em São Paulo) sob a forma de diversos ritmos e danças populares regionais, o samba é entendido como uma expressão cultural urbana surgida no início do século XX na cidade do Rio de Janeiro.

A presença de baianas nas casas das chamadas “tias baianas” — migrantes da Bahia,que deixavam Salvador e iam se fixar no Rio, a nova captal do País —, comprovam a origem do samba. Foi ali que o samba de roda, entrando em contato com outros gêneros musicais populares entre os cariocas, como a polca, o maxixe, o lundu e o xote, fez nascer um gênero de caráter totalmente singular.

No início do século XX, a literatura carioca já registrava frequentemente o termo samba, que àquela altura estava cada vez mais distante de sua inspiração folclórica e mais próximo das situações em que diziam respeito ao ambiente urbano e já mestiçado da então capital brasileira.

Comparado com o maxixe e o tango, o samba aos poucos estava sendo pavimentado e, já dispondo de instrumentos percussivos, foi gradualmente ganhando popularidade como ritmo musical do Rio de Janeiro.

Avó do compositor Bucy Moreira, Tia Ciata foi uma das responsáveis pela sedimentação do samba carioca. Uma das principais lideranças negras da Cidade Nova, Ciata comandava uma pequena equipe de baianas que vendia doces e quitutes, confeccionava trajes de baianas para os clubes carnavalescos oficiais e era muito respeitada por parte da elite carioca. Segundo o folclore de época, para que um samba alcançasse sucesso, ele teria que passar pela casa de Tia Ciata e ser aprovado nas rodas de samba das festas, que chegavam a durar dias.

Ainda nas primeiras décadas do século XX, o samba urbano carioca começou a ser propagado pelo país e, no ano de 1930, foi alçado da condição “local” à de símbolo da identidade nacional brasileira.

No início, foi um samba associado ao Carnaval, posteriormente adquirindo um lugar próprio no mercado musical. Surgiram muitos compositores, como Hilário Jovino Ferreira, Heitor dos Prazeres, João da Baiana, Pixinguinha, Donga e Sinhô, mas os sambas destes compositores eram amaxixados, conhecidos como sambas-maxixe.

Os contornos modernos desse samba urbano viriam somente no final da década de 1920, a partir de inovações em duas frentes: com um grupo de compositores dos blocos carnavalescos dos bairros do Estácio de Sá e Osvaldo Cruz e com compositores dos morros da cidade, como em Mangueira, Salgueiro e São Carlos.

Não por acaso, identifica-se esse formato de samba como “genuíno” ou “de raiz”. A medida que o samba no Rio de Janeiro consolidava-se como uma expressão musical urbana e moderna, ele passou a ser tocado em larga escala nas rádios, espalhando-se pelos morros cariocas e bairros da zona sul do Rio de Janeiro. Inicialmente criminalizado e visto com preconceito, por suas origens negras, o samba conquistaria o público de classe média também.

O samba moderno urbano tem ritmo basicamente 2/4 e andamento variado, com aproveitamento consciente das possibilidades dos estribilhos cantados ao som de palmas e ritmo batucado, e aos quais seriam acrescentados uma ou mais partes, ou estâncias, de versos declamatórios.Tradicionalmente, esse samba é tocado por instrumentos de corda (cavaquinho e vários tipos de violão) e grande número de instrumentos de percussão, como o pandeiro, o surdo e o tamborim.

Com o passar dos anos, outros instrumentos foram sendo assimilados, e se criaram novas vertentes oriundas dessa base urbano carioca de samba, que ganharam denominações próprias, como o samba de breque, o samba-canção, a bossa nova, o samba-rock, o pagode, entre outras.

Desde a década de 1930, o samba é considerado a música nacional do Brasil, ressignificação dada pelo governo de Getúlio Vargas para fins de propaganda. Desta forma, o gênero atingiu todas as regiões do país.

Agremiações carnavalescas, sambistas e organizações de Carnaval, com o samba na ala musical,ganharam espaço em todo o território nacional, mesmo onde outros estilos musicais predominam (por exemplo, nas regiões Sul e Centro-Oeste todo o interior rural brasileiro, onde o sertanejo é o estilo mais popular). Em 2005, o samba de roda se tornou Patrimônio da Humanidade, com título da UNESCO.

 

CARNAVAL

Sempre relacionado ao samba, nos dias atuais, o Carnaval é muitíssimo mais antigo que o gênero musical. Festas populares, muitas delas pagãs, existentes desde o Egito antigo, passando pelo Império Romano e a Idade Média Ocidental, são apontadas como as origens desse folguedo popular.

Embora sendo parte do calendário cristão, particularmente em regiões católicas, muitas tradições carnavalescas se assemelham àquelas do período pré-cristão. Acredita-se que o Carnaval italiano, por exemplo, seja em parte derivado das festividades romanas antigas da Saturnalia e da Bacchanalia. As Saturnálias, por sua vez, podem ser baseadas nas festas dionisíacas da Grécia Antiga e em festivais orientais.

Cansada de tentar punir os festeiros, a Igreja Católica resolveu adotar o Carnaval como parte da sua liturgia, encaixada em período próximo (47 dias antes) da Páscoa. No entanto, a festa nunca perdeu seu conteúdo pagão, com apego a fantasias e máscaras, que, em tese, eliminam as diferenças sociais naqueles dias.

É bem verdade que a ligação do Carnaval com o samba, embora predominante em nossos dias, não é exclusiva. Bom exemplo é o dos folguedos momescos da Bahia, com os trios-elétricos, em que se emprega um gênero musical próprio, o axé.

A guitarra elétrica e outros instrumentos de cordas foram introduzidos nas festas há algumas décadas. Mas, podemos citar exemplos de gêneros musicais e danças mais tradicionais, como o frevo, o maracatu e outros ritmos de Olinda e Recife, no Pernambuco. Tudo cabe, no Carnaval.

Em todos os pontos do País, longe ou perto do mar, os blocos carnavalescos são presença constante, no mais das vezes como maneira de dar um caráter local aos festejos, nos bairros ou comunidades. É comum, também, o caráter político dados a esses grupos, com músicas e gestos de protesto ou reivindicação. Aos governos de plantão, cabe apenas a tolerância, já que reprimir só faz piorar a situação.

Um caso típico – e famoso no País inteiro – é o do Bloco do Pacotão, criado em 1.979, por um grupo de jornalistas de Brasília.

Seu nome já é uma alusão a um pacote de medidas editado pelo general Ernesto Geisel, então presidente da República. E a letra do seu primeiro samba, de nome “Aiatolá”, é uma homenagem ao líder iraniano que estava prestes a derrubar a ditadura reinante em seu país.

A música falava da ditadura daqui e pedia ajuda. A letra diz: “Ai, Aiatolá, venha nos salvar, que esse governo já ficou Ga-ga-ga-ga-Geisel, você nos atolou, o Figueiredo também vai atolar”…

Com a ascensão de líderes evangélicos a cargos públicos, em muitos lugares as festividades de Carnaval perderam o apoio oficial e até passaram a ser perseguidas. É o caso do próprio Rio de Janeiro, onde o pastor Marcelo Crivela, prefeito municipal, é avesso a esses festejos e faz de tudo na esperança de que não ocorram – uma doce ilusão, como comprovam os fatos, graças a Deus.

 

 REBELDIA

 As letras dos sambas-enredo, mesmo quando exprimindo revolta e indignação, não são diretas e agressivas no seu linguajar, como eram as músicas de protesto da época dos nossos festivais, por exemplo. Elas têm uma postura rebelde, que implica em algo mais amplo do que as palavras e melodias. Assumem um jeito diferente de encarar a vida, de narrar a História, dando voz aos mais fracos, dando vez aos mais humildes.

Esta, aliás, sempre foi uma das mais fortes características das escolas de samba do Rio. É certo que várias delas tenham, em diversas ocasiões, aceitado o desfile chapa-branca, recebendo altas quantias de dinheiro pra defender um tema ou encampar algum enredo de interesse de um patrocinador.

No entanto, o mais comum às escolas cariocas é estreitarem seus laços com a comunidade, esteja ela onde estiver. Suas alas de compositores são, normalmente, formadas por bons compositores, gente sensível aos anseios e demandas populares. Gente que vive no meio do povo e que, na hora de compor as letras, usa o próprio vocabulário das comunidades, sem falar na forma de abordar o enredo escolhido por sua escola.

Os temas indígenas, por exemplo, são constantes nos carnavais do Rio de Janeiro e do Brasil inteiro, não apenas por conterem as cores e toda a simbologia dos povos das florestas, pra falar de índios da Amazônia.

Mas, porque nos silvícolas há uma forma diferente de viver, mais próxima do gosto popular, e há, de igual modo, uma forte relação com a Natureza, com o meio ambiente. Há menos atrelamento ao consumismo, ao lucro, ao dinheiro e a esses símbolos capitalistas.

TIRADENTES

 Dentre os grandes sambas-enredo, destaca-se “Tiradentes”, na ocasião gravado por Chico Buarque de Holanda. É considerado o maior samba-enredo de todos os tempos. A impressão que se tem é de que seus autores conseguiram retratar nesta peça, de forma concentrada, tudo aquilo que se poderia dizer num enredo, mas espalhado por muitos outros.

Nele, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, é apresentado como símbolo-maior da coragem e da luta pela liberdade. A cartilha a que se refere Martinho Filho o descreve como “o primeiro grande mártir da Independência do Brasil, o mascate, tropeiro, minerador, comerciante e médico prático era, também, cirurgião-dentista, daí o apelido de ‘Tiradentes’”.

Era, enfim, um homem pobre, que vivia de ajudar os outros, de lutar contra o domínio português e pela liberdade, que começava pela separação do Brasil do domínio colonial. No movimento denominado “Inconfidência Mineira”, ele encontrava caminhos aos seus combates, mas chama atenção o fato dele ter sido o único condenado à morte – e executado na forca.

Este fato também é destacado no samba-enredo. Essas duas estrofes, com o refrão desta obra-prima, dão uma ideia do seu volume:

 EXALTAÇÃO A TIRADENTES

Joaquim José da Silva Xavier
Morreu a 21 de abril
Pela Independência do Brasil
Foi traído e não traiu jamais
A Inconfidência de Minas Gerais

Foi traído e não traiu jamais
A Inconfidência de Minas Gerais

Joaquim José da Silva Xavier
Era o nome de Tiradentes
Foi sacrificado pela nossa liberdade
Este grande herói
Pra sempre há de ser lembrado

Fonte: Xapuri 64 – Fevereiro/2020

Block

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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