Selva, não! Silva!
O Mendes, major da reserva do Exército, meu vizinho do quarto andar, sabe que eu sou comunista desde criancinha e, sempre que pode, tenta me provocar….
Por Antônio Carlos Queiroz (ACQ)
O Mendes, major da reserva do Exército, meu vizinho do quarto andar, sabe que eu sou comunista desde criancinha e, sempre que pode, tenta me provocar.
– Ô, Queiroz, usando máscara até hoje! A pandemia já acabou, porra!
– Ô, Mendes, tem agora as partículas das queimadas em suspensão. Elas deixam os crepúsculos bonitos, vermelhos que nem a bandeira da China, mas os pulmões da gente sofrem, camarada!
– Tsk! Tsk!
Com todos os muxoxos e bolsonarices dele, tenho compaixão do Mendes, talvez por causa da diabetes que consome ele aceleradamente, coitado!
– “Consome ele” está errado, Queiroz. É “que o consome”. E no Brasil esse mal tem gênero masculino: “o diabetes”!
O Mendes é terrível. Além de diabetes, sofre da gota e de gramatiquice, a mania de corrigir a fala dos interlocutores, como se nós fôssemos soldados do Napoleão Mendes de Almeida.
Hoje de manhã encontrei o Mendes comprando uma bandeira do Brasil e uma toalha do Bolsonaro. Diz ele que vai participar da parada do Sete de Setembro na Esplanada. Ao se despedir, ele berrou:
– Selva!
Sem pestanejar, fiz o ele ca mão e respondi uma oitava mais alto:
– Silva! De Luiz Inácio Lula da Silva, ô, Mendes!
https://xapuri.info/hoje-e-dia-de-chico-mendes/
Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.
Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.
Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.
Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.
Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.
Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.
Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.
Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.
Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.
Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.
Zezé Weiss
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