Setembro amarelo. Setembro vermelho cor de sangue. Setembro translúcido, como a sua indiferença…
Por Raial Orotu Puri
Pois é, estamos em setembro… Se de 2017 ou de 2016 – fase II, não sei dizer… Mas, seja de que ano for, é setembro, e passar por setembro, no Brasil de hoje, certamente é para os fortes… E o é também por ser um mês com uma relativa quantidade de datas consideradas importantes para o movimento indígena mundial, algumas delas comemorativas, outras nem tanto assim, e algumas, nem de longe…
Penso que é um mês um tanto bipolar: Setembro marca o início da primavera neste lado do hemisfério, e, em geral, existe certa associação entre essa estação e a renovação da esperança e da vida, e, no entanto, é o “Setembro Amarelo”, o mês da conscientização e prevenção do Suicídio…
Amarelo. Do ponto de vista das flores, é realmente uma cor que se mostra em grande evidência: Em setembro se abrem em profusão as flores dos ipês, cujo florescer no sul do país marca o fim do período de geadas (ou marcava, antes que cagalizassem o clima).
Amarelo é uma cor quente, segundo a gente aprende no ensino fundamental, e se opõe ao frio do azul, que, por sinal, está associado à depressão – e a um dos meus gêneros musicais preferidos. Particularmente, apesar de toda a associação positiva que posso fazer com o sol, ouro, Oxum e outras coisas alegres, sempre pensei que esta era uma cor muito apropriada para tingir o desespero. Da mesma maneira, é também uma boa cor para o não sentir que marca um estado para além do desespero…
Mas parece não ser disso que se trata… Eu que tenho mania de detalhes, fui atrás de entender o significado, e não encontrei nenhum, daí, tentei uma conclusão por mim mesma… Até onde posso compreender, o que se assinala é o alerta, a necessidade de se falar sobre um tema tão tabu, e necessário, a percepção de que existem, às vezes muito perto, pessoas gritando em silêncio uma dor que passa a ser maior e mais forte que os motivos para se continuar vivo…
Ou que às vezes, os pedidos de socorro que são lançados no ar são confusos demais para serem entendidos… Ou que simplesmente as pessoas à sua volta parecem pouco dispostas a entender esse outro que fala. Ou que, talvez, elas nem mesmo possam entender…
Seja como for, é preciso fazer um esforço. Estar atento e tentar, ao menos, tentar ouvir e tratar as dores do outro com a devida importância…
Às vezes essa é a diferença vital… Às vezes acolher ao invés de repelir pode ser decisivo… Mas, em tempos de virtualidade e superficialidade, ao que tudo indica as pessoas já não estão mais preparadas para a intensidade… Talvez seja por isso que haja tanta falta de compreensão hoje em dia…
E se trata sim, caso reste alguma dúvida, de um assunto muito presente e premente para aqueles envolvidos nas questões indígenas.
Ainda que os desavisados insistam em encarar nossas tradições como uma grande excursão feliz pelo exótico e pitoresco, no qual se entra comprando ingresso, lutar para estar vivo em um mundo que te pretende extinto é difícil, e pode ser desesperador…
Os números relativos ao suicídio dentre os povos indígenas é aterrador, sobretudo entre os Guarani, o que denota o fato de que esses números guardam uma relação estreita com a situação de extrema violência que toma de assalto a vida e o ‘cotidiano’ desses parentes, sobretudo, no estado do Mato Grosso do Sul.
Mas não é ‘apenas’ lá que isso ocorre, do mesmo modo que não são ‘apenas’ os parentes Guarani que têm cometido tais atos… Não é ‘só’ no Mato Grosso do Sul que é difícil ser indígena, e isso também não é exatamente uma questão recente – como já disse e redisse muito, nosso passado recente data já de mais de 500 anos…
Seja como for, penso que a reflexão não passa tanto por onde e quem, mas principalmente pelo porque, e o porquê, meus caros, me parece bastante evidente para que eu perca muito tempo explicando… Mas como sou dada a isso, vou gastar algumas linhas com isso… E faço isso mesmo sabendo que talvez quem leia encare isso como muito pequeno e trivial, uma lista fraca de “13 WHYS” que não têm densidade e consistência para justificar um atentado contra a vida…
Pois é… Só tem que a questão parece passar toda por aí, porque no fundo, mesmo nesse mundo inconsequente, todo mundo parece estar muito preocupado com isso na hora em que alguém se mata.
Só que geralmente fazem isso tentando achar uma maneira de culpabilizar aquele que se foi, e não gastando algum tempo para pensar no quão doente é uma sociedade que não ouve, ou silencia…
Quando ameaças, violências e assassinatos passam a ser o cotidiano da vida de alguém, eu não tenho dificuldades em compreender algumas escolhas, igualmente, a mesma compreensão se estende ao contexto de ser odiado, exposto, declarado inepto pelo simples fato de se ser quem se é, ou quando tudo o que nos dói é relativizado e minimizado ao ponto do nada ser… e, mais que tudo, entendo o que significa quando toda a sua dor e ser são tão invisíveis como se você de fato não existisse, e tudo o que tem valor para você é atingido pelo mesma desimportância…
É fácil querer deixar de existir, quando você sente que de qualquer forma você já não existe mesmo…
E bem, se for mais importante entender desde um nível macro, vamos ampliar a discussão: A data de 12 de outubro de 1492 lhes diz algo? 22 de abril de 1500, talvez? Ou quem sabe as datas desse setembro: 05, o Dia da Mulher Indígena, escolhido assim em memória de Bartolina Sisa, guerreira quéchua que foi esquartejada em 1782, condenada por liderar um levante anticolonial? 07 de setembro, esse dia tão cívico? Ou talvez o dia 13/09, em que se “celebram” os aos 10 anos da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas da ONU?
Esta última tem de ser com aspas… Aspas, porque eu passo essa data lembrando do refrão daquela ladainha da capoeira que fala em 13 de maio: “A história nos engana/Dizendo pelo contrário/Até diz a abolição aconteceu no mês de maio/A prova dessa mentira/É que da miséria eu não saio/Viva 20 de novembro/Momento pra se lembrar/ Não vejo em 13 de maio/Nada pra comemorar” (‘Rei Zumbi dos Palmares’, Mestre Morais)…
E isso não é o que eu penso, é uma consciência coletiva (não dizem tanto que a gente tem isso por aí?! ) de que não temos muito a comemorar neste país na data de 13 de setembro, com tantas coisas que atentam contra os direitos e garantias originárias, prova disso foi que esta data foi marcada em todo Brasil por uma série de protestos e manifestações em que lideranças indígenas e entidades apoiadoras – as pouquíssimas que realmente o são – tomaram as ruas para apresentar e reivindicar a continuidade do direito de existir…
Aqueles que puderam, foram… os demais, estiveram ocupados em levar adiante essa teimosia tão
persistente em nós, a de insistir em seguir vivo, apesar de tudo…
E antes que me perguntem, eu não estou querendo dizer que antes da invasão as pessoas eventualmente não se matavam. Acredito que sim, já que isso me parece algo corriqueiro à condição humana. Mas acredito, por outro lado, que os motivos aumentaram, na medida em que os nossos mundos foram estreitados. Como alguns já devem ouvido falar, o suicídio é um dos muitos males causados pela modernidade, e a modernidade, meus caros, é um dos muitos males causados aos povos indígenas. Provavelmente o maior de todos…
Por essa razão, a campanha do Setembro Amarelo nos envolve também, pelo menos desde o ano passado… Neste ano, o cartaz específico para os indígenas têm os dizeres: “Que nenhum indígena se suicide mais por tristeza e dor na alma provocadas por esta nação”. Isso. Exatamente Isso.
Essa nação causa dor e tristeza, rouba e nos nega a vida. Constantemente… Essa nação foi erguida sobre os ossos e o sangue de muitos povos. Neste processo, alguns foram totalmente dizimados, outros tantos resistiram.
E não é que alguns sejam mais fortes que os que não conseguiram, porque o que está em jogo aqui não é uma questão de força ou fraqueza, mas dessa lógica absurda de se ver obrigado a fazer da existência uma eterna guerra pela vida, e de ter de aceitar que o que dói em você pode ser entendido como nada mais do que uma frescura qualquer…
Talvez vocês todos, raion, não entendam bem o que é exatamente isso tudo o que eu estou dizendo…
Porque apesar de sermos humanos ‘tanto quanto’ vocês, é provável que não sejamos humanos exatamente ‘como’ vocês… Talvez o que dói em nosso ser seja mesmo então tão diferente e incompreensível…
Talvez por isso o português que a gente foi forçado a aprender para se comunicar com vocês soe tão diferente nos seus ouvidos… Talvez os ouvidos de vocês não tenham o mesmo espírito capaz de ouvir o que o nosso choro quer dizer… Talvez para vocês seja mesmo só uma lengalenga besta…
Mas quer saber? Acho que não… Acho que o problema não sou eu exatamente… Nem eu, nem nós… Acho que o problema são vocês, que também não ouvem a dor dos seus, como a gente ouve a dos nossos… Talvez por isso seja porque para nós dói tanto, e dói ainda mais a indiferença de vocês…
Apesar de tudo, eu queria explicar… Eu ainda acredito em explicações… E acredito que talvez, se alguns de vocês acordarem, talvez seja possível de fato mudar o rumo desse mundo mesquinho, e talvez seja possível que pelo menos alguns de nós deixem de morrer, por ato próprio ou de tantos outros que nos agridem… Então, por isso eu tento ainda explicar…
Para que essa nação, como diz lá no cartaz, não provoque mais dor e tristeza… Acontece isso mesmo, gente que me lê: viver nesse país, sendo indígena está doendo. Doendo de verdade. Doendo pra caramba. E vocês, nenhum de vocês, têm o direito de se levantar e acusar aquele que escolhe fazer a dor parar! (Isso, ao menos eu espero que fique claro…)
E acontece que, como já comentei em outros textos, ‘vida’ dentro da perspectiva indígena é algo muito maior do que meramente o ato de manter suas funções cardiorrespiratórias em funcionamento, e está ligado a manter o equilíbrio de um mundo onde a cosmovisão, a cultura e as dinâmicas são possíveis… É possível seguir vivendo sem isso tudo? É. Como disse Eduardo Viveiros de Castro, nós indígenas somos especialistas em fim do mundo. Mas dizer
isso e esperar que tal coisa seja vivenciada de forma confortável já seria exigir demais…
E eu queria também ser capaz de explicar outra coisa: queria que fosse possível que vocês que dizem que amam tanto a cultura indígena, por exemplo, poderiam fazer muito para fazer essa dor parar de um outro jeito que não fosse com a gente se matando… Vocês poderiam, por exemplo, mostrar que amam também a nós, e não apenas o que a gente tem… Queria que os que são indiferentes e omissos a nós se dessem conta que conosco morrem muitos mundos, e que no fundo, é também o mundo de vocês…
Queria que os que nos odeiam entendessem de uma vez que esse ódio todo é absurdo, e que a gente só quer ter esperança suficiente para ser capaz de seguir vivendo… Em paz… Queria que alguém entendesse o motivo dessa dor toda e a fizesse parar…
E dói tanto porque, como se já tudo não fosse o bastante, a gente ainda tem de se deparar com uma nebulosa notícia a nos perseguir os encalços.
Refiro-me à notícia do massacre sofrido pelos índios isolados, conhecidos como ‘flecheiros’, ocorrida no interior da Terra Indígena Vale do Javari, localizada na região da tríplice fronteira Brasil, Peru e Colômbia.
A notícia, inicialmente reportada como denúncia a ser apurada, depois confirmada pelo MPF, e, na manhã de 12/09 desmentida pelo portal Amazônia Real…
Agora declarações desencontradas é tudo o que resta… E, sei lá, mas tudo o que a gente não precisa é de mais uma data ‘comemorativa’ dessas no mês de setembro…
Considerando a região em que ocorreu, e o (des)interesse estatal em averiguar a veracidade de um crime que tem por vítimas indígenas, as possibilidades de se chegar a esclarecer se os fatos ocorreram ou não são mínimas…
Como se diz no Direito, “quando não há corpos, não há crime” (Goleiro Bruno que o diga…), e a comoção superficial e de vida curta da internet não é suficientemente consistente para provocar uma ação efetiva por parte de poderes públicos que poderiam averiguar se há alguma parcela de verdade nas informações divulgadas…
Verdade ou mentira que seja, continua sendo algo aterrador, porque quando se vive num mundo onde um massacre desses é uma possibilidade, isso significa que não existe chance de paz possível. Não aconteceu? Talvez não… Talvez não hoje… Mas e amanhã? Quem vai dizer que não pode acontecer? Corpos indígenas podem ou não jazer no solo da floresta densa, e este fato não comove o suficiente para que algo se mova e reaja no mundo raion, já que para este mundo quanto mais rápido e sem alarde viermos a desaparecer, melhor…
E sabe a ironia disso? É essa falsa ideia de segurança que se tem, de quem está isolado é que está bem… Sempre achei que era isso que vocês diziam quando enchiam a boca para dizer ‘volta para a aldeia, índio!’… Bom, eu muitas vezes me engano em meus julgamentos, isso é um fato…
Mas era isso que eu entendia, quando percebi pessoas tão incomodadas com a nossa presença nas cidades, quando pareceu que dizer ‘indígena’ foi lido como uma doença contagiosa de potencial máximo, quando as buzinas dos carros dispararam para que liberássemos o trânsito, nas vezes em que estive protestando com os parentes, mesmo neste último dia 13, em que nosso protesto tímido e pequeno parou uma rua de pouco movimento por apenas meia hora para que cantássemos e dançássemos diante da AGU, pedindo a revogação do Parecer 01/2017, que impõe um monte de condicionantes à nosso direito de ser quem somos…
Pois é… acho que eu devolvo a vocês a incompreensão… Eu não entendo buzinas de carros, palavras e gestos de nojo que nos repelem… Eu não os entendo, tanto quanto vocês não me entendem… E isso é uma pena…
E eu achava mesmo que lá, lá sim, os parentes estavam livres para Ser e Existir tal qual almejassem… Quem dera!
Mas infelizmente o que essa história nos mostra é que não existe lugar seguro para aqueles que sentem diferente demais para serem compreendidos… Pena! Que enorme pena que seja assim… A despeito de eu ser a mais pessimista de todas, eu sempre achei que algum dia esse mundo ia encontrar sua cura, lá guardada na densa floresta, nas mãos de uma velha índia de sorriso radiante e vívido… Riria ela até mesmo da sua cara de raion, de se achar tão inteligente e sabedor de tudo! E talvez você caísse na risada também… E seria provavelmente uma coisa bem alegre de se ver…
O problema é que agora eu sei que mesmo aqueles que se recusam ao ‘contato’, e que buscam se proteger dele se mantendo o mais distante possível de qualquer aproximação do mundo raion podem virar alvo…
Quanto ao resto todo, eu acho que não sei de mais Nada…
“(…) É por isso que no verso de uma folha de papel pardo
ele tentou outro poema
E o intitulou ‘Absolutamente Nada’
Porque era o que estava em toda parte...”
(Trecho de poema que consta no livro ‘As Vantagens de Ser Invisível’, de Stephen Chbosky).
Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua na Divisão Técnica do IPHAN/AC e na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC).
Todas as imagens são de autoria do artista acreano Mardilson Torres e foram selecionadas por nosso parceiro Jairo Lima
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