“Sob o encanto dos xapiris”
Quando eu era jovem e ainda não era xamã, eu não sabia sonhar. Era igornante e dormia como uma pedra jogada no chão. Era incapaz de ver as coisas da floresta durante o sono.
Mais tarde, entendi que não devia esquecer as palavras de Omama que nos vêm desde o primeiro tempo. Então, pedi aos xamãs mais velhos da minha casa para me transmitirem os cantos dos xapiri, para assim poder sonhar de verdade.
Antes, quando eu dormia, só via coisas muito próximas. Ainda não tinha em mim o sonho dos espíritos, que permite que a imagem dos xamãs viaje longe. Não conseguia contemplar as coisas do tempo de nossos ancestrais, nem ver o que eram de fato o trovão, o céu, a lua, o sol, a chuva, a escuridão e a luz. Eu aida era ignorante.
Foi só depois de ter bebido pó de yãkoana por muito tempo que pude conhecer a imagem de todas essas coisas. É desse modo, com eu disse, que os habitantes da floresta estudam, virando espíritos.
Os brancos são outra gente. A yãkoana não é boa para eles. Se começaram a beber sozinhos, os xapiri, chateados, só vão emaranhar seus pensamentos e a barriga deles vai cair de medo. A imagem da yãkoana só tem amizade por quem nasceu na floresta.
Depois de ter me tornado xamã, comecei a conhecer melhor os xapiri e, assim, a ampliar meu pensamento. Desde então, não paro de chamá-los e de fazer descer suas imagens. Quase nunca durmo sem responder a seus cantos à noite. Sempre os vejo dançar com gritos de alegria em meu sonho.
Quando eu era adolescente e ainda não sabia nada dos espíritos, às vezes pensava que os xamãs talvez cantassem à toa. Até perguntava a mim mesmo se não estariam mentindo sob os efeitos da yãkoana!
Mas depois de ter eu mesmo conhecido o seu poder, entendi que não era nada disso e que eles realmente respondem aos encantos dos xapiri. Aí, pensei: “Se eles só fingissem que viam os espíritos, acabariam ficando com medo do poder da yãkoana e parariam de bebê-la! Mas é o contrário: eles trazem mesmo as palavras de terras distantes de onde baixam seus espíritos! É verdade!”
Davi Kopenawa e Bruce Albert em “A queda do céu – palavras de um xamã Yanomami“. Companhia das Letras, 2010.