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O que ler e como ler durante a pandemia

O que ler e como ler durante a pandemia: o Ocidente abraça o Oriente, Tereza D´Ávila e Chuang-Tzu

Por Leonardo

 Por mais que o mundo moderno se tenha secularizado, o fato é que grande parte da encontra seu sentido de nos caminhos espirituais de suas respectivas culturas.

São muitos os caminhos espirituais. Sem desmerecer outros, quero enfatizar dois que estão na base de duas grandes culturas: a do Ocidente e a do Oriente. Cabe recordar que não é saber sobre a Suprema Realidade, mas experimentá-la a partir da totalidade de nosso ser.

O Ocidente afirma: há o caminho da comunhão pessoal com a Suprema Realidade que inclui o Todo. O Oriente sustenta: há o caminho da comunhão com o Todo que inclui a Suprema Realidade.

No Ocidente predomina a comunhão pessoal e dialogal com a Suprema Realidade que na judaico-cristã e muçulmana se chama simplesmente Deus. Não se trata de uma experiência intelectual, da cabeça, mas amorosa, do coração  que sente, ama e vibra, envolvendo todo o ser. Mestres desta experiência, entre outros, são São Francisco de Assis, Santa Tereza d’Avila e São João da Cruz, Teilhard de Chardin.

Diz São João da Cruz em seu Cântico Espiritual referindo-se a Deus: “Mostra tua presença!/ Mata-me tua vista e formosura./Olha que a doença  de não se cura/Senão pela presença e a figura”(verso 11).

Santa Tereza d’Avila não é menos efusiva em sua Aspirações de vida eterna: “Vivo já fora de mim depois que morro de amor/porque vivo no Senhor/que me quis para si./Quando lhe dei o coração/coloquei nele esse letreiro/ que morro porque não morro”(verso 1).

Este modo de falar é do enamoramento, do encontro íntimo e profundo com Deus. A partir desta comunhão eu-tu, se entrevê Deus no Todo e em cada ser como aparece na mística cósmica de São Francisco que emocionalmente chama as criaturas como minhas irmãs e meus irmãos. São João abre sua primeira epístola assim: “Aquele que nós tocamos, que nossos olhos viram, que nossos ouvidos ouviram, isso nós vos comunicamos”. É uma experiência concreta, tocar, sentir e ver.

No Oriente a experiência primeira reside no Todo. Nada está isolado. Tudo está relacionado formando o Grande Todo. O mestre yoga responde à pergunta: “Quem és tu? Ele aponta para o universo e diz: tu és tudo isso, toda a realidade, parte do Todo, tu és o Todo”.

Nossa errância consiste em termos perdido a sagrada de que somos um elo da única e grande corrente da vida, parcela do Todo; não fazemos uma experiência de não-dualidade com todas as coisas: somos árvore, somos pássaro, somos as , estamos mergulhados no Todo. E o Todo se chama Tao, a Suprema Realidade presente em tudo.

Tomas Merton, que no Ocidente viveu a experiência do Ocidente, traduziu A via de Chuang-tzu (Vozes 1993). Alguém perguntou a Chuang-tzu: ”Mostra-me onde o Tao pode ser encontrado? Ao que ele respondeu: Não há lugar onde o Tao não possa ser encontrado: ele está na formiga, na vegetação do pântano, no caco de ladrilho, no escremento; e arrematou: o Tao é grande em tudo, completo em tudo, integral em tudo. Estes aspectos são distintos, mas a Realidade é o Uno” (p.158-159). Como se depreende, as coisas são diversas, mas todas desaguam no Uno, no Tao.

Como se processa uma experiência de não-dualidade? Os orientais propõem como primeiro exercício: a experiência da luz. Ela incide sobre nossas cabeças, pervade todo o organismo, atravessa as paredes da casa, o jardim, a cidade, o , toda a e se estende por todo o universo. A pessoa, feita luz, se sente unida a cada coisa, ao Todo.

O caminho do Oriente e o caminho do Ocidente não são antagônicos, mas complementares. Ambos visam, fundamentalmente, criar em nós o que tanto procuramos: um centro a partir do qual tudo se liga e re-liga e nos permite viver o Todo. Pouco importa o nome com o qual chamamos esse centro. Mas ele corresponde àquilo que significa Deus, Tao,  Alá, Javé. Olorum. Esse centro está em nós, mas também nos desborda. É o mistério vivo e interior de nossa vida e do universo.

Temos também entre nós a experiência espiritual que subjaz às religiões afro-brasileiras ou outras que assimilam elementos africanos. Tudo gira ao redor do axé. Ele corresponde mais ou menos ao que é o Shi para os orientais ou o ruah, pneuma, spiritus  para os ocidentais: uma energia cósmica que pervade toda a realidade e tem nos seres humanos os principais portadores.

O exu não é o demônio que cabe exorcizar, mas a principal expressão do axé. O axé atua dentro de nós, como força de irradiação e de captação de boas energias, colocadas a serviço dos demais. Por não entenderem a profundidade até ecológica destas religiões de origem africana, elas são difamadas e até perseguidas por grupos neopentecostais que pouco têm de espiritual e de sentido do sagrado de  todas as coisas.

Somos seres espirituais quando mergulhamos  em nossa profundidade e nos damos conta de que somos parte de um Todo que nos transcende. Somos habitados pelo espírito, aquele momento da consciência pelo qual temos a percepção de sermos parte de um todo e que o Todo está em nós.

A espiritualidade ocidental ou oriental tem a ver com a experiência da Suprema Realidade, não com um saber, expresso em doutrinas, dogmas e ritos. Tudo isso é parte das religiões que nasceram de uma experiência espiritual mas que não são a espiritualidade. Podem fomentá-la como podem sufocá-la por excesso de doutrinas.

Elas são água canalizada, não fonte de água cristalina. Dessa água todos temos sede. Ao bebê-la nos fazemos mais humanos e abertos uns aos outros e ao Todo.

Leonardo Boff escreveu Espiritualidade: um caminho de realização, Mar de Ideias, Rio 2016, e Meditação da luz: o caminho da simplicidade, Vozes 2010.

 


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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